PAULO SORIANO RECEBE PRÊMIO LITERÁRIO EM MINAS GERAIS - Notícias Literárias
O
autor Paulo Soriano, mantenedor deste blog, participou, na noite de 23/02/2018,
no auditório da OAB de Ponte Nova/MG, da solenidade de entrega do prêmio
alusivo ao XII Concurso Literário
"Prof. Mário Clímaco", promovido pela Academia de Letras, Artes e Ciências de Ponte Nova-ALEPON, presidida pelo
artista plástico e jornalista Ademar Figueiredo. Com o seu trabalho
“Depende...”, Paulo Soriano foi laureado, em 1ª lugar, na categoria crônica, em
nível nacional.
Abaixo,
publica-se o texto vencedor.
DEPENDE...
Não foi em Pontezinha que Judas perdeu
as botas. Quanto a isto, não tenho dúvidas. É preciso andar mais meia légua de
estrada de terra batida, que serpenteia a caatinga mineira como uma cascavel
preguiçosa, para chegar ao lugar onde está enterrado o velho par de botas.
Pronto, chegamos a Águas Belas! Não foi lá, ainda, que Judas perdeu as famosas
botinas. Não. O traidor esqueceu, inadvertidamente, o seu calçado precioso em
Umbuzais, duas léguas adiante, virando à esquerda, mas o Diabo o encontrou e o
enterrou definitivamente em Águas Belas. É lá onde o vento faz a sua enigmática
curva. Todavia, evapora imediatamente sob o sol escaldante e não refresca
ninguém.
Águas Belas não tem água (nem poderia
ter, naqueles áridos sertões sem veredas), nem é bela (na verdade é muito feia).
Fica no fim do mundo e algo mais. O mundo dá um jeitinho, se esgueira nas
frestas recurvas do espaço-tempo e adentra um pouquinho no inferno. É nesta
zona indefinida e tórrida que fica o nosso lugarejo. Ele tem apenas seis
casebres de taipa rebocada — dois dos quais inabitados — e nada mais. Tudo
indicava que seria um trabalhinho muito fácil recensear aquele gato-pingado de
gente. Não foi.
A casinha caiada dum verde-limão horroroso
foi a última a ser visitada.
O senhor Eusébio Rocha me recebeu com
cortesia. Fez-me sentar no sofá esburacado, serviu-me um café agreste e
cheiroso e me perguntou o motivo de minha visita. Explicado o meu propósito — o
velho Eusébio sentiu-se importante, não é todo dia que o Governo dá as caras —,
peguei a prancheta com o formulário e comecei a entrevista.
— Quantas pessoas moram em sua casa,
senhor Eusébio?
— Aí, depende... — disse ele, muito
sério, maneando a cabeça branca. —Pode ser uma, mas podem ser três. Por causa do
meu nome, eu sou três: eu, Zé e Bio. Depende do ponto de vista...
Tasquei uma pessoa apenas no formulário
do IBGE. Eusébio era um velhinho tão simpático quanto matreiro, logo vi.
Erguendo a vista, perguntei-lhe quantos anos tinha.
— Aí, depende... Mas acho que tenho
dezenove.
— Senhor Eusébio, isto é impossível —
afirmei com veemência. — O senhor tem idade de ser meu pai! Talvez, meu avô!
— Mas eu disse que dependia. Depende do
ponto de vista. Ainda agora, dia 29 de fevereiro, completei anos. Foi a décima
nona vez que fiz um aniversário de verdade, no dia verdadeiro.
Pus 76 anos no formulário, após um
breve cálculo mental. Perguntei quanto ele ganhava. Mas, antecipei-me, dizendo:
— Depende, não é mesmo, meu bom homem?
Depende do ponto de vista...
— Isto mesmo — confirmou o ancião
finório. — Nos meses que têm 31 dias, ganho menos por dia. Em fevereiro, sempre ganho um pouco mais. Salário-mínimo de
aposentadoria rende mais quando fevereiro tem 28 dias. Não tanto assim em ano
bissexto. Eu nasci em ano bissexto, acho que já disse...
Registrei o salário-mínimo no
formulário.
Perguntado se sabia ler e escrever, ele
disse, mui sabiamente, que dependia: sabia ler e escrever (um tiquinho de carreirinha) em brasileiro,
mas não em americano.
Havia algumas outras questões pendentes
de preenchimento, mas não me dei ao trabalho de perguntar. Não agora. Se
perguntasse, passaria a tarde inteira ali, escravo do velhinho manhoso. Olhei
ao redor. Nenhum livro, nenhum eletrodoméstico (naquele além-fim-de-mundo não tinha obviamente energia elétrica). Havia,
sim, um radinho de pilha numa estantezinha improvisada de tábuas e tijolos
crus. Eusébio era sem dúvida católico: a imagem da Virgem Santíssima num
relicário milenar dizia tudo. Ao pé da estátua, aberto, um antigo santinho de
falecimento de uma senhora de meia idade: viúvo. Dei o meu trabalho por
encerrado. O bom velho me indagou se eu não teria mais perguntas.
— Tenho, sim — respondi. — Apenas uma. Mas
só pergunto se o senhor me prometer que não me responderá com “aí, depende...”.
O velho assentiu com um sorriso maroto.
Fiz a derradeira pergunta:
— Por que o senhor responde tudo com
“aí, depende...”?
— Ah, meu filho!... — disse ele,
piscando um olhinho ladino, mas cumprindo rigorosamente a palavra empenhada:
— Aí, vareia...
Bela crônica! Parabéns!
ResponderExcluirMuitíssimo obrigado, cara Lilian!!!
ResponderExcluirUm texto delicioso desses que nos deixam um bom sabor de boca.
ResponderExcluirMuito obrigado, amigo!
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