A NOITE DO LOBO - Conto de Terror - E. S. Siqueira
A NOITE DO LOBO
(E. S. Siqueira, Menção Honrosa no Concurso Bram Stoker de Contos de
Terror)
Onde que será que se meteu o Tião, perguntava Maria ao fechar a janela
de tábuas da tapera onde viviam. Lá fora a lua cheia clareava a noite como se
fosse dia. Dentro da casa, à luz de querosene, ela se preocupava com o marido.
Foi até o quarto e caminhou até a cama onde estava a bebê de poucos dias,
embrulhada nos panos. Sorriu ao ver a filha, admirando-a com amor e afeto.
Deixou o quarto. Deve estar na venda,
voltou a pensar no marido. Aquele home quando bebe esquece das horas. Caminhou
pela pequena cozinha, mexeu em alguns vasilhames. Estava inquieta. Ele sabe que não gosto de ficar sozinha.
Pegou a lamparina de querosene e voltou para o quarto, colocando-a sobre uma
mesinha.
Deitou na cama, ao lado da filha e
ficou pensando no batismo do dia seguinte. À tarde iriam até a vila da Guapiara,
onde, na capela de Nossa Senhora, a pequenininha Ana seria batizada. Pensou nos
padrinhos. Antônio Vaz e Cândida. Eram boas pessoas e saberiam cuidar da
enteada. Virou-se na cama e ficou olhando a bebê dormir, sob a luz bruxuleante
da lamparina. Lá fora, ventou. Maria podia ouvir o barulho das árvores. Uma
coruja piou. Sentiu um arrepio e fez uma pequena oração. Voltou a pensar em
Tião, preocupada e, ao mesmo tempo, brava. Era noite de sexta-feira, lua cheia
e Maria tentou afastar da cabeça as histórias que sempre ouvira. Começou a
sentir medo e rezou.
Maria sentou-se na cama, encostada na
cabeceira. Rezava quando ouviu um grito do urutau. Sentiu um arrepio.
Levantou-se e ficou caminhando pelo quarto. Onde
aquele desgramado do Tião se meteu,
perguntava-se. Ouviu um barulho no terreiro. Ficou atenta. Deve ser ele que está chegando. Odiava toda vez que o seu saía para
a venda e ficava a noite toda. Escutou e ouviu um barulho. Os cachorros
começaram a latir, furiosos. Maria ficou tensa. Não deve ser ele, os cachorros estão latindo. Seu coração disparou
e ela sentou-se na cama, trêmula. Ouviu outra vez o urutau gritar. Seus pelos
se arrepiaram. Lá fora, ouviu-se o barulho de novo. Os cães ladravam com raiva.
Ouviu passos no terreiro.
Ela tremia, sem coragem de levantar-se
e averiguar o que acontecia. Quase chorosa, rezava a Deus e pedia que Tião
chegasse logo. Estava morrendo de medo. Lá fora, o barulho continuava. Os
cachorros ladravam. O urutau gritava. Uma coruja gritou. Ventou. Maria soltou
um ai-meu-deus e fez o sinal-da-cruz.
Pegou o terço na cabeceira da cama e começou a desfiar as contas, rezando. Pai-nosso que estais no céu, santificado
seja o vosso nome... Mais barulho, dessa vez perto da casa. Os cachorros
ganiam, assustados. O urutau gritou. Maria tremia, nervosa. Olhou para a filha,
rezando e pedindo proteção. Ave-maria,
cheia de graça, o Senhor é contigo... Ouviu um rosnado, baixo. Os cachorros
começaram a ganir, lamentando-se. Assustados.
Uma batida na porta. Maria deu um pulo.
O terço na mão. Murmurava a quinta ou sexta Ave-Maria. Olhou para a cozinha,
escura. Os ouvidos atentos. Outra batida na porta. Ela tremia. Será que é o Tião, perguntava-se. Uma
batida. Maria se levantou, tremendo, entre os dedos o terço, passando as contas
numa oração muda. Caminhou até a porta do quarto e encarou a entrada da casa. A
porta estava fechada. Silêncio. Um dos cachorros ganiu. A coruja piou. Ela deu
mais uns passos, tremendo. Outra batida, um arranhão. Deu um pulo. O coração
disparou.
Voltou correndo para o quarto,
chorando. Tremia de medo. O coração parecia querer pular para fora. Ouviu
passos do lado de fora. O que quer que seja saíra da porta, percebeu a mulher.
Ficou atenta. O urutau voltou a gritar: foi...
foi... foi... Continuou a rezar o terço. Os cachorros ganiram assustados.
Uivaram. Ai, Nosinhora, me ajuda,
pediu num murmúrio. Voltou a ouvir passos rodando a casa. Orelhas em pé, os
pelos arrepiado. Fez o sinal-da-cruz e continuou a rezar o terço. Quase
desmaiou quando bateram na janela, perto da cama. Deu um grito. Ai, Nosinhora! Um arranhão na janela.
- É um lobisomem, meu Deus. Socorro,
minha Nosinhora. Ave-Maria cheia de
graça, o senhor é convosco, bendita seja entre todas as mulheres...
Outro arranhão. Uma batida mais forte.
A janela estremeceu. Um rosnado. Ao longe, o urutau gritou. Foi... foi... foi... Maria tremendo de
medo, deitou-se na cama e abraçou a bebê que acordou chorando. Ela tentou
acalmar a criança que com custo parou de chorar. Outra batida na janela, mais
forte. Um arranhão. Outro rosnado. Então, ela ouviu o uivo. Seu corpo todo
tremeu de medo. Ele veio buscar minha
filha porque num tá batizada.... Ai, Nosinhora, minha mãezinha,
me ajuda, pelamor de Deus. Outro
uivo e as batidas na janela ficaram mais forte. Maria deu um grito. Começou a
rezar, pedindo ajuda aos céus. Tião, cadê
ocê, meu Deus? Os arranhões
continuaram. A madeira da janela tremia. Os uivos rompiam o silêncio da noite,
juntando-se com o grito do urutau.
Os cachorros voltaram a latir furiosos.
Os arranhões na janela pararam. Ouviu um outro rosnado. Os cães ganiram,
amedrontados e ficaram quietos. Fugiram,
pensou Maria. Me ajuda, minha Nosinhora!
Ai, meu Deus! Socorro! Silêncio. Ela tentou ouvir algum ruído, mas nada
acontecia. Começou a se acalmar. Ele se
foi... Então, o uivo cortou a noite, bem perto, do outro lado da parede. Os
arranhões na janela voltaram. Maria tremia. Chorava. Estava assustada.
Continuava os arranhões contra a janela. Rosnados do lobisomem. Um uivo. Um
grito do urutau. A madeira da janela tremia. Não resistiria por muito tempo.
Maria chorava. A menina voltou a chorar, o que pareceu atiçar mais ainda o
lobisomem.
Ao ouvir o choro da bebê, o lobisomem
ficou mais nervoso. Arranhava com força a janela. Batia na madeira. Uivava.
Podia sentir o cheiro da criança sem batismo. Seus instintos malignos
acossavam-no. Bateu com mais violência contra a janela. Ouviu um grito de
mulher. Uivou. O choro continuava. Farejou o ar e uivou. Arranhou a madeira,
bateu, rosnou. Queria entrar. Estava nervoso. Aumentou a violência das batidas.
Sentiu a madeira tremer, quase cedendo. Uivou e continuou na sua tarefa,
sentindo cada vez mais a necessidade de se alimentar da criança sem batismo. Um
cachorro latiu perto dele. A fera se virou e rosnou, mostrando os dentes e a
garras para o cão. Este saiu correndo, ganindo, com o rabo entre as pernas.
Dentro do quarto, Maria soluçava. Já
nem tentava acalmar a filhinha. Tremia. Perdeu a conta de quantas Ave-Marias
havia rezado. Apertou o terço na mão e ficou olhando a janela que tremia. A
tramela dela saltava a cada batida da criatura. Ela ouviu um uivo e um rosnado.
Os arranhões continuam. Batidas. A madeira da janela a tremer. A tramela
pulando, quase se soltando. Ave-Maria,
cheia de graça, o Senhor é contigo... Um uivo. A fera parecia aumentar as
pancadas. Percebeu que a janela não aguentaria e começou a chorar. Agarrou a
filha no braço e correu para a outra parede, deixando-se sentar no chão.
Embalava a bebê que chorava sem parar. A própria Maria chorava. Ai, meu Deus!
A janela tremeu. A madeira rangeu e a
tramela se soltou, caindo no chão com um estalido. A janela bateu contra a
parede num estrondo choco. Lá fora, banhada pelo luar, Maria viu a criatura
mais horrenda. Cheia de pelos, um focinho enorme, cheio de dentes afiados à
mostra num rosnado, olhos malignos. O lobisomem rosnou. Apoiou-se contra a
janela e esforçou-se para entrar. A mulher ficou branca, quase desmaiou.
Gritou. Tião! Meu Deus, socorro!
Abraçou a bebê contra o corpo, numa tentativa de defesa. Começou a rezar, entre
lágrimas.
O monstro pulou a janela. Um cheiro
fétido tomou conta do quarto. A criatura deu alguns passos. Era enorme, peluda,
corpo curvado. Dentes à mostra, afiados. Garras enormes. Peluda. Assustadora.
Avançou. Maria gritou, estava quase desmaiando de medo. Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco... Rezava,
misturando as palavras com as lágrimas e os soluços. Tremia. Estava
aterrorizada. O lobisomem rosnou, mostrando as presas. Inclinou-se sobre a
mulher e agarrou seus braços. Maria gritou. Lá fora, o urutau gritou.
O braço estava doendo, as garras entrando
em sua carne. Maria tremia. Chorava. Rezava. Gritou. O monstro a atacou. Sentiu
sangue correndo. Estava ferida. Com força, a criatura arrancou de seus braços a
bebê chorosa. Ficou parado, olhando a nenê nos seus braços. Na boca, saliva
escorria. Maria gritou, levantando-se. Adiantou-se, tentando tirar a menina do
lobisomem. O monstro lhe deu um golpe com a pata, jogando-a contra a parede.
Choro. Maria chorava. A menininha chorava. O lobisomem olhava ora para a
criança, ora para a mulher. Levantou a cabeça e uivou.
Mordeu a criança, que gritou. O grito
de dor confundiu-se com o grito de horror de Maria. Ela se levantou e atacou o
lobisomem. Ele levantou a cabeça, sangue escorrendo pelo focinho. Um olhar
maligno para a mulher e a afastou. Atacou a menina. O grito de dor da bebê
ressoou, morrendo aos poucos, enquanto sua vida esvazia. Enquanto o lobisomem dilacerava
a carne. Sangue pingando no chão. Sangue na boca da criatura. Maria gritava,
chorava, rezava.
Avançou contra o monstro. O lobisomem
jogou o corpo sem vida no chão e atacou a mulher. Ela sentiu as garras entrando
em sua carne, rasgando, perfurando. Gritou. Lutou em vão. Outro grito do
urutau. O lobisomem rosnou. Mordeu sua vítima, rasgando um pedaço de carne.
Engoliu e uivou. Atacou mais uma vez Maria. A mulher sentia seu corpo doer, a
consciência se apagando aos poucos. O sangue esvaindo-se. A fera atacou,
rasgando carne, mergulhando o focinho no sangue quente. Mastigando a carne
macia. Maria viu a escuridão. Foi perdendo os sentidos.
Morreu.
O lobisomem continuou a carnificina.
Ora atacava o corpo da mãe ora o da filha. Saboreando cada pedaço de carne,
bebendo o sangue. O quarto ficou banhado em sangue, tripas, pedaços de carne.
Uma verdadeira carnificina. Lá fora, o urutau gritava, perto da casa. Os
cachorros ladravam de vez em quando. De repente, o lobisomem se levantou.
Farejou o ar e uivou. Com um rosnado caminhou até a janela e pulou, caindo no
terreiro. Os cães latiram. Ele rosnou. Silêncio. Um grito do urutau. Foi... foi... foi... A criatura saiu
correndo, pulando a cerca, numa corrida pelos pastos. No céu, a lua cheia
estava quase chegando no horizonte. O alvorecer se anunciava.
Correu. Ainda havia sangue no focinho e
nas garras. Atravessou o campo, pulou valas, passou sob árvores. Ganhou a
estrada e correu. Correu. Parou um instante, levantou-se para a lua e uivou.
Voltou a correr. Chegou numa encruzilhada e parou. Uivou uma outra vez. No Leste,
os primeiros raios de sol se anunciavam. A alvorada caminhava, ganhando
terreno. O lobisomem começou a se esponjar no chão. Esfregava-se na terra, de
um lado para o outro. O dia raiando e a criatura se transformando. As garras
desaparecendo. O pelo sumido. Um último uivo. Um rosnando e um corpo humano
começou a se formar. Rapidamente, quando o sol se levantava, um homem apareceu
no chão. Atordoado, levantou-se. Estava nu, sentia um gosto de ferrugem na
boca, um cheiro estranho. Olhou ao seu redor e não viu nada. Tremia de frio.
Percebendo que estava nu, o homem se
assustou. Apalpou seu corpo. Passou a mão na cara e sentiu algo pegajoso.
Sangue. Procurou uma ferida e não encontrou nada. Sem nada entender, saiu da
estrada, entrou pelo pasto e correu para casa. Tião corria, nu. Seu coração
estava apertado. Pressentia uma tragédia. Esquecera-se de sua noite de lobo,
apenas corria. Temia ser visto. Lágrimas caíram de seus olhos.
A noite de lobo acabou, o dia de dor
começava.
E. S. Siqueira é o pseudônimo de Edmilson Souza
Siqueira. Nascido em Carvalhos/MG, formado em Pedagogia, é funcionário público
estadual. Participou das antologias: Círculo
do Medo, Tratado Oculto do Horror e Sabor
da Paixão (Andross Editora); Um céu e
estrelas (Editora Villa-Lobos); Psicopatas
(Young Editorial); Batalhas Imortais (Darda
Editora).
Bizarro!!!
ResponderExcluirSe isso virasse um filme ia ser triste e trágico.
ResponderExcluir