OLHOS SEM FACE - Conto de Terror - Walace Aparecido de Souza Silva
OLHOS
SEM FACE
(Walace Aparecido de Souza Silva - 9º
Lugar no Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)
Seria ele capaz de ler
meus pensamentos? Foi a primeira coisa a passar pela minha cabeça enquanto
aqueles olhos me encaravam. Olhos amedrontadores, abomináveis. Disfarçados com
corpo e graça humanos. Ele poderia mapear toda a minha existência, sabendo em
primeira mão dos medos mais profundamente escondidos da minha consciência? O
simples fato de pensar a respeito me deixava perplexo, pois com certeza ele se
regozijava com toda a confusão em minha cabeça. E eu sabia que estava à beira
do precipício: estava a um passo de enlouquecer.
Aqueles olhos às vezes
ficavam dias sem aparecer. Eu quase chegava a esquecê-los, para meu próprio
sossego. Então apareciam de repente. Em rostos de pessoas que eu nunca havia
visto antes. No rosto de conhecidos, familiares e até amigos. Dava sua mirada
característica e eu notava na hora que se tratava de outra pessoa. Que o
verdadeiro dono daquele corpo estava bem longe dali no momento e em seu lugar
havia uma criatura ou entidade que não desejava outra coisa senão o meu mal. E
ela não tinha pressa alguma.
Eu nunca conversei a
respeito disso com ninguém. Com certeza me achariam louco. Ou apenas fruto de
minha fértil imaginação. Como os vampiros que nunca vinham morder meu pescoço à
noite, mas nem por isso eu o deixava descoberto. Ou alguma besta assassina
olhando pela fresta do armário na hora de dormir. Não, essa era diferente. Eu
não precisava ver filmes ou estar influenciado por nada do gênero. Seja lá o
que fosse, aparecia sem aviso e ia embora sem cerimônia. Dona da situação.
Infinitamente perversa.
Quando os olhos
apareciam, eu sabia que estava sendo lido e precisava vigiar meus pensamentos.
Muitas vezes o esforço em não pensar me distraía e eu parecia fora do ar para
as outras pessoas. Eu poderia descrevê-lo com riqueza de detalhes, mas a
simples lembrança me apavorava até a alma. Era um medo irracional, não parecia
ter havido um antes e nem haveria um depois. Um mero vislumbre estragava meu
dia e me lembrava que o tempo estava correndo. Que “dessa vez passou, mas da
próxima eu te pego”.
*
Certo dia acordei de
súbito. Arfava. Aparentemente havia suado a noite inteira, pois minhas roupas
estavam completamente encharcadas. E, embora eu tivesse a impressão de que
dormira pelo menos umas dez horas, lá fora ainda estava escuro e silencioso.
Meu relógio estava parado num horário qualquer, ao qual eu não prestei atenção
por estar com um sentimento horrível emergindo dentro de mim. Como se algo
estivesse dando um alerta e eu precisasse me preparar para o pior, igual
àquelas sirenes de guerra durante um ataque inimigo. Entretanto, eu nada ouvia.
Sentia calafrios e tremia da cabeça aos pés, embora não estivesse fazendo frio
naquela época do ano. Eu precisava de um copo d’água antes que eu me perdesse
na minha própria angústia.
A passos tortos e com
os pés úmidos de suor, eu caminhei vacilante pelo meu quarto. Eu tentava me
apoiar na escrivaninha e ela parecia estar a pelo menos dez metros de
distância, muito embora meu quarto inteiro não tivesse essa medida. A porta
estava no final de um corredor que nunca existiu ali e toda vez que eu me mexia
as coisas giravam. Eu não bebia há meses e não usava droga alguma, ilícita ou
prescrita. Portanto, não havia explicação razoável. Não na minha cabeça.
Com muita dificuldade
passei pela porta. As coisas estavam normais do outro lado. O quarto de meus
pais de frente ao meu, o corredor com uma lâmpada que fica acesa durante a
noite, a porta do banheiro entreaberta. Tudo normal. Ao mesmo tempo havia esse
silêncio que reinava absoluto e me incomodava. Entrei no banheiro e acendi a
luz. A minha expressão era de medo e delírio, mas eu estava voltando a mim
novamente.
Deixei a cabeça embaixo
da torneira para que despertasse logo daquele torpor. Pensei em escrever um
conto a respeito. Pensei sobre meus amigos rindo daquela experiência estranha.
Pensei sobre o meu emprego, se deveria ou não fazer uma tatuagem ou ir falar
com a moça do sorriso lindo. Fechei o registro e deixei a água escorrer pela
face. Encarei meu rosto ridículo no espelho. Comecei a rir. Então gargalhei e,
enfim, chorei de desespero. De todos os rostos possíveis, por que aqueles
olhos estavam no meu? Misteriosos, zombeteiros, famintos. Com a paciência em
sua plenitude. De meus próprios olhos eu enxerguei toda a dimensão do inferno
de uma só vez.
Walace Aparecido de Souza Silva
escreve desde sempre, mas apenas recentemente tem colocado no papel. Apaixonado
pelo gênero terror/horror desde a mais tenra idade, quando se escondia com medo
do Chuck, o brinquedo assassino, e evitava encarar algumas capas de filmes na
locadora. Mas nem por isso deixava de assistir a eles.
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