NOITE DAS FERAS - Conto de Terror - Danilo Mattos Ferreira
NOITE DAS FERAS
(Danilo
Mattos Ferreira – classificado no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de
Terror)
A
região em que a carruagem prosseguia possuía um clima ameno e estava em
processo de reflorestamento por conta do recuo frente às grandes plantações e a
extração de madeira. A vegetação não era homogênea, havia bromélias crescendo
junto a samambaias e o chão de terra era escondido por densos arbustos. As
árvores erguiam-se gigantescas bloqueando a luz do sol, vestindo parasitas e
epífitas. Trepadeiras distorcidas esticavam longos braços em outras plantas
mais resistentes como serpentes competindo por luz e espaço. Em níveis mais
inferiores do lugar o terreno tornava-se lodoso até culminar em um mangue. Longas
raízes erguiam-se acima da água cinzenta - às vezes pálidas como ossos.
Continuaram subindo ultrapassando uma cercania
e uma pequena plantação. Após alguns cortiços avançaram ladeados por um jardim
até uma grande casa que se avolumava entre palmeiras. O pórtico sinalizava a
entrada e era ornado por uma cartela com um complexo brasão de guerra
circunscrito em elementos decorativos. A mansão possuía dois andares e
terminava em um friso floral sustentando grosseiras platibandas, quatro janelas
alongadas estavam dispostas paralelamente em cada andar, cada uma com bandeiras
enfeitadas por guirlandas.
Com
um movimento brusco a carruagem parou e Gregório Corcovado desceu. Pequenas
folhas circunvagavam apáticas, indo de encontro ao seu peito robusto em um
esforço efêmero para refrear seu avanço. A mansão ameaçava devorá-lo inteiro,
pressionando-o pelo seu gigantismo excêntrico. Os passos afundaram na terra
macia e desmatada guiando-o para a bocarra sem hesitação.
Um
homem esperava no umbral. O rosto simétrico o compenetrava com olhos claros e
oblíquos, estava de braços dados com uma mulher de fisionomia tão similar que
sugeria um próximo grau de parentesco. Ela trazia no pescoço uma complexa peça
de ouro que lhe cruzava os ombros tendo como centro uma pedra esverdeada.
Gregório alisou os cabelos crespos e a barba rala, como o cocheiro ele também
era feito de sombras, menos os cabelos, pálidos como se a velhice o tivesse
atingido prematuramente. Toda aquela luz o incomodava, ludibriava o que a noite
prometia. No céu a lua se convertera em um olho insosso que os observava quase
completamente arregalado na órbita. A esfera parecia consumida pela catarata, ainda
que constantemente fosse ao seu encontro.
O
homem estendeu a mão, mas era um gesto distante de uma tentativa de
cumprimento. Gregório pôde observar a palma lisa, as curvas delicadas que
acompanhavam os nós dos dedos com as linhas maçantes que marcavam a pele.
— Por trás, caçador. — Não houve
apresentações, apenas um sotaque soberbo que lembrava vidro se partindo.
Pelos
grandes olhos na fachada ele via silhuetas movendo-se em um ritmo incessante,
quase zombeteiro, a cacofonia social lhe invocou formas dançando ao redor de
uma fogueira. Aquela
era a orla da zona urbana, uma região na Floresta da Tijuca subdividida em
fazendas e sítios cujas grandes propriedades eram dominadas pelos expatriados
bonapartistas que faziam parte do ciclo do café. Ali era onde as pessoas
reclusas bebiam e conversavam enquanto observavam o mundo acabando de suas
janelas.
O
homem entrou quase como se desejasse passar o menor tempo possível com o
forasteiro e o cocheiro explicou que aquele era seu contratante antes de se
afastar nervoso. Gregório contornou a mansão espiando os arredores até chegar à
uma varanda elevada e cercada por uma balaustrada onde esperou paciente pelo
casal.
— A lua está quase cheia agora. — Divagou
o Barão de Cranach em um tom próximo da melancolia, uma harmonia de sonhos de
grandeza arruinados. A mulher que ele não conhecia estava sempre ao seu lado e
Gregório perscrutou em seu olhar algo mais primitivo que poético. Não havia
sonhos ou ambições ali. - Logo poderemos ouvir os uivos.
Gregório
observou o vento penteando o topo das árvores, a montanha serrilhada ao longe se
arrepiava de expectativa. Ele enxergou contornos toscos de construções compondo
a paisagem, era o que a noite o permitia ver, mas o que imaginou foram coisas
selvagens.
— Vossa mercê já deve saber, mas a
título de cortesia me apresentarei. Atendo como o Barão Allouch Lacan e esta é
minha irmã Christine.
— Me chamo Gregório da Ordem de São
Jorge, os caçadores de bestas. — Gregório fez uma mensura ríspida antes de
continuar. – O senhor apelou para um caso de licantropia, estou correcto? Há
mais alguma informação?
— A cousa segue o ciclo lunar. Talvez
apareça amanhã. Surgiu da última vez entre os escravos e suspeito que seja
algum deles. - Gregório reparou na diferença de tratamento quando os negros
foram mencionados e o Barão tornou-se taciturno, sua voz soou como um ultimato.
— Se vossa mercê não puder encontrá-la vamos matar todos até dermos com a
besta.
O cocheiro apareceu, mas, apesar de seu
porte avantajado, sua presença parecia tímida frente à do patrão e ele preferiu
ficar em silêncio a se apresentar.
— Chegou em hora oportuna Rebouças. —Disse
o Barão e então virou-se novamente para o forasteiro. – Trate do assunto com o
cocheiro, ele pode mostrar-lhe onde fica a senzala e tem ordens de lhe
providenciar o que lhe for necessário. Agora preciso me ater aos convidados,
desejo-lhe boa sorte. – Dito isto sumiu para o interior da mansão conduzindo a
irmã pela cintura.
Havia um grande pátio atrás da mansão e
algumas moradias se avolumavam junto a uma capela e uma estrebaria com diversas
carruagens estacionadas em frente. A senzala era um bloco regular de pau a
pique e coberta de sapé que ficava no extremo oposto, paralela a um eito. No
interior da construção os escravos espremiam-se seminus para dormirem
acorrentados em camas de palha ou andrajos e no aposento não havia luz, móveis
ou sequer uma porta. O caçador se recolheu em uma das casas destinadas aos feitores
e conversou com o cocheiro à luz de velas com uma refeição em uma cuia de
feijão cozido e farinha de mandioca.
Gregório investigou o que pôde no dia
seguinte desde marcas e pegadas até recolher depoimentos dos negros, embora não
lhe fosse permitido o acesso aos nobres no interior da mansão. Dos andares
superiores vez ou outra aparecia uma figura ricamente vestida a observar,
sempre com um copo de bebida como se a festa fosse eterna.
Descobriu mais sobre os planos do Barão
que a besta. Com o fim do tráfico, o homem planejava contratar trabalhadores
livres entre os imigrantes para contribuir ele mesmo com embranquecimento que
as elites locais pregavam. Não se importava com os escravos e pretendia ir além
da miscigenação, disposto a promover um genocídio. Mas por que contratar um caçador da Ordem então?
Poderia deixá-los simplesmente morrer nas mãos da criatura ou talvez estivesse
preocupado com a própria integridade física.
Gregório Corcovado esperou pela noite
do dia seguinte e ela trouxe consigo seus horrores. Um uivo longínquo
elevou-se entre as trevas, tendo início com um ulular baixo que se tornou
constante quando atingiu certo grau. O caçador fixou os olhos nas árvores, elas
adquiriam vida á distância; esqueletos torcidos cheios de cicatrizes que
erguiam braços ossudos blasfemando contra o céu. O som se propagou uma segunda
vez: era uma intimação à batalha.
Caminhou
pelo pátio e embrenhou-se no caminho estreito correndo por um matagal cerrado
em direção ao útero sombrio. A vegetação abriu-se brevemente e pariu toda a
selvageria que permeava o imaginário popular. A criatura não somente era
gigante em estatura como também larga. Uma pelugem rarefeita cobria o corpo
magro, ainda permitindo ver os contornos da caixa torácica. O longo pescoço
pendurava um terceiro olho que lucilava verde, diferente dos demais. Na cabeça
alongada uma mandíbula prognata abriu-se, salivando, uma arcada rudimentar que
servia como arma natural. O homem achava que escapara da noite, da selvageria, mas
a escuridão viera em sua busca, com as presas vorazes de algo que vagamente se
assemelhava a um canídeo.
Gregório
abaixou-se no momento em que as garras da criatura arrancaram parte de um
tronco atrás de si, reagindo mais por instinto que consciência. O segundo golpe
derrubou uma árvore e o caçador rolou procurando distância. Ele embrenhou-se
entre uma passagem estreita de galhos e quando a besta o seguiu rugindo e
salivando Gregório disparou a arma que carregava como um trovão, iluminando por
um momento os arredores. O ruído furioso ecoou e a mata agitou-se brevemente em
resposta. Em um ímpeto irrefreável a criatura fugiu pela floresta. A coisa era
uma força da natureza, árvores inteiras eram arrancadas para que pudesse criar uma
estrada por onde seguir. Gregório foi deixado para trás e decidiu por fim
retornar à mansão, onde poderia pela manhã seguir a trilha de destruição
esperando encontrar ao final um homem e não um monstro. O tempo estava a seu
favor já que a lua cheia acabara de surgir.
Não demorou no caminho de volta, mas o
que o esperava era uma recepção insana. Os escravos estavam abaixados em fila,
todos sentados com os pés e os braços amarrados como condenados à espera de seu
carrasco. Um deles jazia de bruços, degolado sob uma poça de sague. Seguros nas
janelas os proscritos observavam a cena com contida excitação ocultos por
estranhas máscaras. Meia dúzia de soldados formava uma frente de batalha próxima
da propriedade, a última defesa caso Gregório falhasse em seu propósito. Aquilo
era um espetáculo, um coliseu e ele teria que alimentar o deus sangrento
daquela multidão. Tochas haviam sido dispostas paralelas de maneira a formar um
círculo, mas ele sabia que aquela luz era uma ilusão, a noite estava ali pronta
para devorá-lo. No entanto a sede de sangue era humana.
Um uivo prolongado se fez ouvir no meio
da mata e perto dali um punhado de pássaros levantou voo. A turba enlouqueceu,
gritando e berrando de maneira ensandecida. Eles já não conseguiam mais
articular palavras, mas produziam um coro sonoro e forte. Seu anfitrião surgiu
em uma das janelas com um rosto distorcido em uma máscara com um nariz adunco e
proeminente, assemelhando-se a um bico de pássaro. Gregório teve a certeza por
um breve momento de que aquela aparência era mais verdadeira que a anterior.
— É com grande júbilo que apresento a vossas
mercês o espetáculo da noite! Homem versus besta! Forasteiro! — Ele se apressou conforme a floresta ficou
mais ruidosa. — Há um cavalo repleto de ouro atrás da casa! Se triunfar ele é
seu! Tomei a liberdade de deixar suas cousas no centro da arena caso tenha
necessidade de algo, mas se apresse, pois o tempo urge! O sangue atrairá a
besta!
Gregório
não esperou o Barão terminar de falar, já se lançara para a mochila de couro e
puxou de lá um grande facão de prata. Os escravos encolheram-se murmurando
entre si, a mansão fechara sua horrenda bocarra engolindo o homem e a lua o
observava do alto desbotada. As árvores deram passagem para a besta que tomou a
iniciativa com um urro desesperado. Gregório teve tempo apenas de posicionar o
facão na horizontal antes de ser alavancado do chão e carregado contra o
casarão. Escutou o barulho de vidro se partindo e o interior iluminado o cegou
brevemente. A lâmina penetrou fundo na boca do estômago da criatura e o que
havia agora na mão de seu algoz não era o cabo da arma, mas o que interpretara
como terceiro olho: uma pedra grande e esverdeada.
Gregório
olhou ao redor jogando o corpo para o lado que já começava sua hedionda
mutação. Os membros encolheram-se, os músculos se torcendo em um terrível
espasmo. O pelo hirsuto foi consumido pela epiderme lisa e delgada. A cabeça
por um breve momento amassou deixando os dentes à mostra em uma expressão de
dor, mas eles também se reduziram. Uma mulher surgiu onde se deitara o monstro,
curvada em posição fetal e com o facão adornando-lhe o peito. Sua respiração
acelerada aos poucos começava a se acalmar até que se reduziu a longas golfadas
roucas. Gregório abaixou-se ao seu lado.
A voz
ressoou profunda, uma sombra de civilidade que pouco se distinguia do instinto
na expressão extenuada. Ocorreu uma mudança em sua fisionomia que denotava
clara necessidade, tão marcante como ferro em brasa na carne. Naqueles olhos
havia a mesma noite que espreitava lá fora e suas últimas palavras não buscaram
memória familiar ou súplica, apenas uma vaga impressão de algo insaciável.
- Eu estava... tão... faminta... - E
então sua cabeça sucumbiu e o brilho de seu olhar desvaneceu. Do meio da
multidão veio um grito indistinto, um berro que era mais animal que humano e
elevou-se profundo no salão. A máscara caíra e o rosto do Barão estava ali
novamente distorcido em seu clamor. O eco vibrante fez Gregório hesitar onde
até mesmo o uivo da besta falhara e o proscrito avançou tomando a mulher nua em
seus braços, as lágrimas abrindo caminho pelo rosto.
O
caçador compreendeu que nunca lhe fora esperado que triunfasse sobre a criatura,
mas o destino reservado a ele era perecer naquele festival sangrento. O Barão
pouco se importava com os escravos, mas sendo-os sua propriedade certamente
tinha em mente pedir um reembolso à Ordem de São Jorge onde seu cavaleiro
falhara, então poderia contratar seus trabalhadores brancos. As marcas nos
corpos diriam tudo. O que ele nunca saberia era se o Barão tinha conhecimento
que sua própria irmã era a besta.
Gregório
recolheu o facão e saiu da mansão onde todos os bonapartistas olhavam estáticos.
Talvez as árvores lá fora sussurrassem mais entre si naquele momento que
aqueles conspiradores. Eram como estátuas congêneres e até a identidade lhes
era privada com as máscaras. Ele deixou uma faca com o cocheiro para libertar
os escravos e guiou-se para os fundos do pátio onde um cavalo o esperava. O
homem lhe agradeceu e segurou a lâmina com força e convicção. Quando já estava
distante Gregório olhou para trás e pôde vislumbrar uma coluna de fumaça
elevando-se de onde ficava a mansão do Barão.
Perguntou-se por fim o que os diferia de
animais no interior de uma caverna, dos monstros que eles próprios criavam nas
sombras. Ele soube então que o homem nunca escapara da noite, ele viveu
nela bem depois do início dos tempos com o fogo e posteriormente com suas luzes
artificiais, mas além das portas e janelas a escuridão era absoluta.
Danilo Mattos Ferreira é carioca e cursa história na UFF e design na PUC-Rio. Foi ganhador do
concurso promovido pela editora Illuminare e da editora A. R. Publisher duas
vezes, participando da antologia de contos de terror “Um Tributo a Stephen King”
e das antologias “Prêmio VIP de Literatura” e “Jovens que escrevem”. É cocriador
do site de poesias Melhores Trapos. Desde pequeno sempre teve tendências
criativas e encontrou na escrita seu norte, então vem lapidando sua habilidade
em busca de logo publicar seus próprios livros. Uma boa história pode ser
contada de qualquer forma
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