OS MORTOS DE BIKERNAU - Conto de Terror - Fernando Ferric



OS MORTOS DE BIKERNAU

Fernando Ferric


Com ajuda da tradutora, John acertava os últimos detalhes com o entrevistado, antes de mostrarem ao vivo para toda Inglaterra um laboratório subterrâneo de Hitler, descoberto seis décadas depois da Segunda Guerra.

Ele estava ansioso, aquela seria sua primeira matéria internacional, estava cansado de cobrir fatos cotidianos em Londres e, graças ao envio dos jornalistas mais experientes para cobrir a guerra no Iraque, era escalado para pautas mais interessantes.

O produtor Phil Jacobson, acompanhava os últimos ajustes do câmera nos equipamentos. Estava pronto, era só esperar a chamada do âncora.

— John, entramos em trinta segundos – disse ele.

— Ok Phil! E aí, Ed, como estou?

— Horrível! – respondeu às gargalhadas o câmera. – Brincadeira... Está ótimo!

— “Os protestos contra a guerra no Iraque acontecem nas maiores cidades do mundo. Com gritos de ‘assassino’ e ‘mentiroso,  milhares de jovens protestaram na visita do presidente americano a Londres. Décadas atrás, uma outra guerra exterminou milhões de pessoas, aterrorizando o mundo. E, mesmo depois de tanto tempo, ainda guarda alguns segredos. É o que nos mostra hoje o nosso enviado especial John Perkins. Boa noite, John!”.

— “Boa noite, Charles e amigos do canal três, estamos em Bikernau, cidade polonesa que sempre será lembrada pelas atrocidades do Nazismo. Aqui ainda podemos conhecer um dos campos de concentração de Adolf Hitler. Conhecido como Auschwitz II, este campo tinha um único objetivo: o extermínio. Está tudo intacto, a entrada, a linha de trem, o ponto de desembarque, os quilômetros de arame farpado, os grandes barracões. Um cenário triste e mórbido... E hoje, com exclusividade, mostraremos ao vivo o recém-descoberto laboratório, localizado no subterrâneo. Ao meu lado está o pesquisador alemão, professor Van Kümmel, que há mais de vinte anos estuda os equipamentos nazistas. Com a colaboração da tradutora Marta Ahnert, o professor irá nos contar sobre essa descoberta.”

— “É historicamente conhecido que aqui em Bikernau foram construídas quatro câmaras de gás, onde milhares de judeus foram executados dia após dia. Agora, para nossa surpresa, localizamos, nessa passagem subterrânea, um laboratório, mas ainda não podemos afirmar se vai trazer algo que já não sabíamos. Mesmo assim é uma descoberta valiosa” — disse o professor ao repórter, sendo auxiliado prontamente pela tradutora.

—“Desde já, quero agradecer ao professor e à sua equipe por nos auxiliar na descida. São mais de vinte metros de profundidade e, para tal, usaremos uma espécie de andaime.”

Após verificar os equipamentos, o grupo começou a descida. O ruído estridente das cordas passando pelas roldanas provocava arrepios. Em volta, as paredes de arenito pareciam querer desabar. Enquanto desciam, John detalhava o que podia:

— “Peço desculpas aos telespectadores pela pouca iluminação. Nossa única fonte é a própria câmera e as lanternas dos capacetes. A sensação é de estar descendo em um poço. Aqui parece normal sermos invadidos por um sentimento de fobia.”

John e sua equipe não disfarçaram o alívio quando enfim tocaram o solo. O ambiente pouco iluminado tornava o local ainda mais inóspito e fantasmagórico.

— “É realmente incrível, o local parece estar em perfeitas condições. Professor, já estamos no laboratório?” — perguntou o repórter.

— “Sim, essa é apenas uma das salas. Acreditamos que aqui era um saguão.”

— “Entendo. Então quer dizer que existem outras sa...”

— “John? John? Tivemos um problema com o sinal. Voltaremos a seguir com mais informações direto de Bikernau.”

***

Berlim, Alemanha – 1943

Frenzel fora interrompido do seu jantar familiar. Um mensageiro do exército lhe entregara um telegrama. Uma convocação para se apresentar em Auschwitz II, em Bikernau. Aquilo não o surpreendia, Laubert, seu colega de pesquisa, fora convocado dias antes.

Os dois trabalhavam no centro de pesquisas da Degesch, empresa encarregada no fornecimento de Zyklon B., gás pesticida usado como veneno para execução em massa nas câmaras de gás. Poucos sabiam que o veneno era utilizado com essa finalidade. Mas Frenzel e Laubert sabiam de tudo, foram eles que desenvolveram e retiraram o odor do pesticida, para que os prisioneiros não notassem o envenenamento. Ele sabia que não havia escolha, tinha que arrumar a mala e partir na manhã seguinte.

Chegou em Bikernau antes do anoitecer e ficou impressionado com a grandiosidade de Auschwitz II.

— Magnífico não é doutor? —disse o militar que conduzira o veículo.

Ele apenas concordou com a cabeça. Na entrada, foi recebido por dois soldados que o levaram para uma das instalações.

Ao entrarem na sala, um dos soldados anunciou sua chegada para o homem que estava sentado em frente a uma enorme mesa. Quase não se via seu rosto coberto pelo capacete, e pela gola da enorme cobertura preta que vestia.

— Doutor Frenzel! Muito prazer, sou o capitão Woltmann. Como foi a viagem?

— Muito prazer. A viagem foi tranquila, tirando a dificuldade que tivemos em alguns trechos barrados pela neve – respondeu cumprimentando-o.

— Deve estar cansado. O soldado Daab vai lhe mostrar seus aposentos. Recomendo que repouse, amanhã irá conhecer seu novo local de trabalho.

Na manhã seguinte, Frenzel foi levado para o quartel, onde reencontrou Laubert, seu colega de trabalho juntamente com o capitão.

— Bem-vindo, doutor! Aguardávamos com ansiedade sua chegada. O doutor Laubert é realmente um grande admirador do seu trabalho. Foi ele quem o recomendou. Acredita ser de grande valia sua colaboração. Graças ao trabalho de vocês, há um ano utilizamos o Ziklon B com sucesso, mas, com o grande aumento de prisioneiros nossos crematórios, se tornou insuficiente. Precisamos de novas tecnologias químicas para resolver o problema, por isso decidimos criar um laboratório de pesquisas aqui. Faltavam profissionais competentes para encabeçar o projeto.

— Um novo gás?

O capitão confirmou com um sorriso.

— Algo que acelere a decomposição...

— Exatamente! —afirmou o capitão. – Parabéns, doutor. O senhor tinha razão, o jovem é muito perspicaz. Agora tenho que ir, o doutor Laubert lhe mostrará o laboratório. Meus homens estão à disposição, se precisar de alguma coisa é só pedir.

Laubert era um entusiasta do Nazismo, mostrava empolgação ao falar sobre as vitórias das ofensivas de Hitler. Enquanto se dirigiam ao laboratório, Frenzel apenas ouvia, não estava feliz em estar ali, não queria fazer parte daquilo. Mas a recusa era impossível.

Saíram da sala, seguiram o longo corredor e desceram as escadas que dava acesso a sala das máquinas. Laubert abriu uma das portas do armário que tomava uma parede do local. Era um túnel estreito e íngreme, pouco iluminado. Ele explicou para Frenzel que, para segurança das pesquisas ali feitas, o acesso deveria ser dificultado ao máximo.

A poucos metros da entrada havia um pequeno elevador. Assim que entraram, Laubert acionou a alavanca. Começaram a descer vagarosamente.

Desceram em um imenso corredor. Frenzel ficou espantado com aquela construção bem abaixo da superfície. Lembrou de alguns livros de ficção que lera na infância.

Uma enorme bandeira nazista estava estendida na entrada do laboratório ao lado um pôster do Führer.

Na entrada, havia apenas um soldado. Laubert explicou que não havia necessidades de muitos homens para guardar o local.

Todo orgulhoso, ele mostrava o laboratório que ajudou a construir por quase um ano. O complexo era composto por quatro grandes salas de experimentos, e uma câmara em escala menor das que eram utilizadas nos campos.

Lá eles iniciaram os testes para a criação do gás, o qual batizaram de Apodrecer — “Verfaulen”.

As semanas seguintes foram de muita pesquisa e testes, um árduo trabalho para os dois. Os trabalhos começavam cedo e só cessavam ao anoitecer.

Todos os testes eram realizados com ratos como cobaias, separados por grupos e colocados em aquários totalmente vedados, acoplados com pequenas mangueiras ligadas por duas válvulas: a primeira emitia oxigênio; a outra, a fórmula. Aos poucos, o veneno substituía todo o oxigênio, levando os roedores à intoxicação mortífera e lá permaneciam até a total decomposição.

E assim, dia após dia, por semanas, centenas de cobaias foram testadas até que se chegasse à formula ideal. Os ratos expostos por ela tiveram uma morte instantânea, e — o mais importante — um aumento de oitenta por cento na decomposição. Mal os roedores caíam sem vida, as primeiras erosões apareciam; em alguns minutos, a pele era quase totalmente corroída, atingindo os ossos e órgãos em menos de uma hora, e antes de completar dez, pouco restava da matéria. Dos vinte ratos testados, apenas um não teve a sua degeneração acelerada. Frenzel recolheu o roedor para exames, com intuito de descobrir o motivo da resistência à fórmula.

O doutor Laubert considerou um grande sucesso e, contrariando Frenzel, que acreditava ser necessários mais testes com roedores, definiu a segunda fase do Verfaulen, com cobaias humanas. Prontamente atendido pelo capitão Woltmann, foram mandados para câmara cem prisioneiros.

Os soldados ordenaram aos presos que retirassem suas roupas e que formassem filas para que pudessem fazer a higienização, procedimento costumeiro nos campos. Os cientistas observavam à distância.

As expressões de medo daquelas pessoas arrepiavam o jovem cientista.

Quando todos os presos já estavam dentro da câmara, por ordem do capitão o gás foi liberado. Rapidamente os presos caíam asfixiados. Os gritos de pavor venciam as divisas da câmara, trazendo desconforto aos soldados que aguardavam a execução.

Alguns se jogavam contra as paredes, numa tentativa desesperada de fugir. Em vão! O silencio já tomava conta quando o doutor Laubert, após consultar o relógio autorizou a abertura.

Os soldados, todos equipados com mascaras, ao entrarem na câmara se depararam com uma cena dantesca. No chão, os corpos, quase que empilhados, se decompunham. Os soldados tentavam remover em um canto da câmara o corpo de um dos presos. Sua fisionomia de desespero e angustia mostrava todo o sofrimento causado pelo envenenamento. E estava ajoelhado, encolhido como se fizesse uma prece...

Aos poucos, o que sobrara dos presos era retirado. Tudo feito sob o olhar atencioso dos cientistas. O gás realmente fizera efeito, mas, como nos testes realizados com os ratos, também houve alguns que não sofreram a decomposição acelerada. Esses foram denominados “tolerantes” e levados para uma câmara fria, para que pudessem servir para posteriores estudos.

No dia seguinte, enquanto Laubert, com o auxílio de um médico legista, observava o corpo de um dos “tolerantes”, Frenzel, na outra sala, anotava os efeitos do Verfaulen nos presos. De súbito, distraiu-se com um barulho: batidas fortes e contínuas em um vidro. Ele levantou-se assustado. Estava sozinho na sala e intrigado. Ia caminhando lentamente em direção ao ruído quando se deparou com o viveiro: o roedor que havia sido cobaia nos testes com o gás estava vivo, debatendo-se no vidro.

O jovem cientista esfregou os olhos, achando que era um delírio. Mas era real. Aquela pequena criatura, que há dois dias não tinha vida, corria aceleradamente pelo viveiro. Totalmente agressiva. Ele sabia que deveria testar mais o Verfaulen.

Foi imediatamente ao encontro de Laubert. Entrou na sala afobado.

— Frenzel? Que foi homem? Parece ter visto uma assombração!!!

- Pior doutor... Muito pior... —respondeu ofegante — O rato... Ele está vivo!

- A cobaia? Ora, não seja tolo!

— Não estou sendo! O “tolerante”,  como esse aí na mesa, agora está vivo... Entende o problema? Há algo errado com o Verfaulen.

— Isso é impossível.

***

Ed colocou a câmera no chão e abriu a tampa do viveiro.

— Não faça isso! – disse John.

—Ora... É apenas um pobre rato...

Enfiou a mão no viveiro, e retirou o pequeno roedor, sob olhar curioso dos demais.

— Quanto tempo vive um rato? – perguntou.

— Sei lá, mas preso e sem comida... Não teria nenhuma chance de estar vivo. Isso é um milagre, sem dúvida. – respondeu Phil.

— Hummm... Garoto, você é um guerreiro! Vou chamá-lo de Ali, Muhammad Ali! — disse Ed, afagando a cabeça do bicho ainda agitado.

Distraído com as risadas dos companheiros, o camera man afrouxou os dedos, e o rato desferiu-lhe uma dolorosa mordida no dedo polegar escapando em seguida.

— Desgraçado!!!

— É, Ed, acho que ele não gosta muito de boxe — disse John às gargalhadas.

— Rato maldito!!! Olha o que ele fez!!! — disse, mostrando o dedo ensanguentado.

— Nossa! É melhor você lavar isso — disse Phil, jogando-lhe seu cantil.

Desajeitado, Ed não conseguiu segurá-lo, deixando-o bater em uma das paredes, produzindo um som metálico.

— Ouviram isso? Phil, seu sortudo! Acaba de encontrar a caixa de luz. — disse Ed, iluminando com a lanterna do seu capacete.

Enquanto o professor e a tradutora conversavam no outro canto da sala, John, Phil e Ed tentavam solucionar o problema com a câmera para que pudessem enfim terminar a matéria.

***

Laubert pegou um bisturi e colocou na mão do legista.

— O doutor Hanz irá lhe mostrar como esses porcos estão mortos. Corte-o!

O legista não pensou duas vezes. Passou o bisturi suavemente no abdômen do defunto, desenhando uma suástica na pele pálida.

Frenzel olhou com nojo, sentindo o cheiro do Verfaulen que exalava daquele corpo.

Mesmo descrente, o doutor Laubert acompanhou Frenzel até a sala, deixando o legista continuar seu trabalho. Com o bisturi, ele abria rapidamente o “tolerante”: a pouca pele que restara entre os ossos daquele prisioneiro não lhe oferecia resistência. Só parou quando um esguicho de sangue atingiu seu olho. Largou o bisturi ao lado do corpo e foi até a pia.

Tirou as luvas, colocou-as no bolso do avental. Abriu a torneira, e com as mãos jogou água no rosto, tirando o sangue do prisioneiro de sua face. Com os olhos fechados, pegou a toalha e se enxugou. Mas quando abriu, se deparou com aquele que antes estava inerte aos seus retalhos, bem atrás dele. Pelo espelho, a presa pode então ver os olhos esbranquiçados do seu predador. Não teve sequer tempo de gritar, sofrendo uma forte mordida na nuca. Caído, ainda com os olhos abertos, teve seu corpo rasgado às mordidas. A criatura faminta banqueteava-se com seus órgãos vitais.

Na outra sala, no momento em que Frenzel mostrava aos olhos incrédulos de Laubert o pequeno roedor no viveiro, um soldado adentrou.

— Temos um problema na câmara doutor.

— Frenzel, avise o doutor Hanz. Diga para ele que depois continuamos a autópsia. Depois me encontre na câmara.

Frenzel correu pelo corredor até a sala de experiências. A porta estava entreaberta. Ele aproximou vagarosamente, como se por intuição sentisse o perigo que corria.

—Doutor Hanz? Doutor?

Ao abrir a porta, avistou o médico dilacerado no chão.

—O que fizeram com você...?

Nisso, surgiu detrás de uma bancada a criatura, indo velozmente em sua direção. Frenzel tentou correr, mas tropeçou em uma das mesas. Ele podia ver a suástica cortada na pele do morto, da sua boca saía uma baba gosmenta misturada às tripas do legista que ele acabara de comer. Quando a criatura, armando o bote certeiro, pulou em sua direção, uma rajada a acertou, tombando-a.

Eram o doutor Laubert e o soldado. Eles ajudaram-no a levantar.

— Frenzel, você está bem? — perguntou o doutor. — Quando o soldado me contou o que ocorrera com outros “tolerantes”, vim imediatamente para cá. Sabia que Hanz e você corriam um sério risco. Mas vejo que não deu tempo de salvá-lo.

— Outros tolerantes?... O que criamos? Criamos monstros? — perguntou Frenzel, ainda trêmulo.

— Não temos culpa! Jamais imaginaria que isso fosse ocorrer. Todos os testes foram realizados. Fique calmo. Nós criamos, então podemos destruir!

— Exatamente doutor! — disse o capitão Woltmann ao entrar na sala. — Podemos destruir...  mirando sua arma na criatura.  Mas tenho três noticias: uma boa, uma ruim... e outra péssima — engatilhou a arma. — A boa é que são poucos — (tiros!). — A ruim é que... — (mais tiros!) mesmo atirando, após um tempo, elas se levantam como se nada tivesse acontecido. — Caminhou até o corpo do legista. — E a péssima é que, se sofrermos qualquer ferimento provocado por eles — apontou a arma na cabeça dele —, nos tornamos como eles!!! — (tiros!).

Frenzel estava apavorado; os outros, também. O capitão contou-lhes a real situação: a câmara estava tomada por esses mortos-vivos. Enfurecidos! Ele e seus homens os continham com dificuldade, já que não se abatiam por muito tempo com os tiros. Ele queria todos fora do laboratório, mas antes teriam que trancafiar as criaturas na câmara.

— Vamos! Não quero perder mais homens nessa batalha do inferno. —disse ele recarregando sua arma.

***

Com alguma habilidade, Ed conectava o cabo de energia da câmera em um dos cabos de energia do laboratório. Sabia que necessitava de um pouco de sorte para aquilo funcionar, já que o local, mesmo em perfeitas condições, era muito precário.

—Está pronto! Vamos ligar! – disse o camera man.  — Conceda a honra, chefe! – disse ele, com a mão estendida para a chave de energia.

— Com todo prazer... – retrucou Phil, rindo cinicamente.

Ao ligar, não só a câmera funcionou, como também todo complexo em que eles estavam. Não era uma luz apropriada para um lugar como aquele. Mas, sabendo a época em que fora construído, era normal aquela iluminação fosca, alaranjada.

Eureka! – gritou John, satisfeito por novamente gravar sua matéria. Lembrou ter a sorte de ser um canal com vinte e quatro horas de notícia. Assim, o atraso na matéria não seria problema, já que podiam entrar ao vivo em qualquer momento na programação.

Esclarecido via link todo o problema para os telespectadores, John se apressou em mostrar o laboratório, sendo seguido prontamente pelo entrevistado e sua tradutora. Atrás estava Ed, com sua câmera e Phil coordenando a matéria.

Em um breve momento, Ed se mostrou desatento, sendo cutucado pelo produtor. Disse ele não estar se sentindo bem.  Phil respondeu que também não se sentia bem ali, e que provavelmente o problema do camera man era o ambiente fechado em que se encontravam.

No pequeno intervalo que tiveram, todos se voltaram para Ed. O dedo que fora mordido pelo rato ainda latejava, e o mal estar parecia aumentar cada vez mais.

— Será que peguei uma doença daquele rato maldito?

—Improvável. Mas assim que terminarmos aqui, vamos para um hospital. Está bastante inflamado.

O ferimento, já não sangrava, mas tinha um aspecto infeccioso, com formação de pequenas bolhas de pus. Eles resolveram concluir a matéria rapidamente. Phil se ofereceu a gravar o restante. Quando terminaram de mostrar a última sala, seguiram um longo corredor, que terminava em dois caminhos. Em um lado, um pequeno elevador; noutro, via-se no fundo uma enorme porta de ferro.

— A entrada! — disse em alemão o professor.

— O que ele falou? – perguntou John.

A tradutora o respondeu, e continuou a traduzir o que o velho falava. Ele dizia que era por aquele elevador que os nazistas tinham acesso à câmara. Mas, por alguma razão, estava destruído. Talvez por que, com a derrota evidente, os seguidores de Hitler decidiram esconder tudo o que era relacionado a eles. E como é de conhecimento de todos, as pesquisas, muitas vezes bizarras, era carro chefe dos nazis.

O repórter tratou de mostrar tudo. Enquanto Phil filmava o velho elevador, John notou que Ed, não estava mais com eles. Disse que voltava em seguida, pedindo o intervalo novamente a rede.

— Cadê ele? – perguntou para Phil.

— Não sei. Pensei que estava atrás de mim.

Os dois voltaram ao corredor e encontraram Ed caído a alguns metros.

— O que há com você? Ed? Ed?

Mas seu amigo não lhe respondera. Cravou-lhe os dentes com toda força na panturrilha. O grito de Phil ecoou por todo o corredor, arrepiando a tradutora e o professor. Ed se transformara em um ser sedento por carne. E vorazmente prendia seus dentes na perna do produtor. O sangue jorrava, o ruído da criatura se misturava com os suplícios de Phil, que a esmurrava. Aquela cena grotesca deixou John paralisado por segundos. Aos berros, Phil pedia ajuda para o repórter que, apavorado, com a cena correu. Só teve coragem de olhar novamente para eles no fim do corredor. Era melhor não ter visto, pois aquilo que Ed virou arrancava a carne de Phil em largas mordidas. Não havia mais resistência por parte do produtor.

John voltou-se, a correr em direção dos outros. Pálidos, não acreditavam no que ele contava. A única coisa que queriam era sair logo dali. Mas como, se a única saída estava tomada pela criatura. Foi então que Marta apontou para a porta de ferro.

O professor arregalou os olhos para ela.

— A senhora sabe o que é isso? É uma câmara! É loucura entrarmos aí.

— Não temos outra saída, ele virá atrás de nós – retrucou a tradutora.

— O que estão falando? – perguntou John, sem entender nada do idioma.

—Não há saída! Temos que nos esconder... Ali! — disse ela apontando para a porta.

***

Os cientistas acompanharam o capitão e seus soldados, levando com eles os dois mortos amarrados: o legista Hanz e o tolerante. O capitão ordenou a um dos seus soldados que atirasse assim que os corpos começassem a se debater. Na entrada da câmara, uma barreira humana tentava conter as criaturas. Eles avançavam vorazmente e já não eram apenas prisioneiros judeus; alguns soldados, vítimas de seus ataques, agora também pleiteavam a refeição: CARNE HUMANA!

Frenzel e Laubert olhavam tudo com pavor: os soldados atiravam em alvos imortais. No chão, os corpos dos presos se juntavam aos nazistas.

—Nunca pensei que veria nossos homens ao lado deles – disse um soldado para o capitão, esse compenetrado em conter a ofensiva das criaturas.

Precisava de algo que os fizesse ficar preso. A única forma de detê-los seria prendê-los novamente na câmara. Mas como passar por elas? Olhou para o lançador de morteiros. Woltmann sabia que não poderia usar morteiros e granadas: todos morreriam. Mas pensou que talvez pudesse jogar com aquelas criaturas. Elas não tinham racionalidade. Eram selvagens, loucos por comida. Ordenou que seus soldados preparassem o lançador. Eles estranharam, mas atenderam prontamente.

— Os únicos que não estavam com fuzis nas mãos eram os cientistas. Então, pensou ele, estava na hora de ajudarem. Pegou sua faca e a de outro soldado e os chamou.

— A situação, como podem ver, é drástica. Meus homens não conterão muito tempo. Quero prender essas bestas demoníacas dentro da câmara – disse, olhando atentamente para seus homens. — Precisamos de uma isca, e vendo que estão ávidos por carne, vamos dar carne para eles. Estão vendo isso? É um lançador de morteiros, podemos lançar com precisão.

— Mas onde vamos arrumar carne uma hora dessas, capitão? – perguntou Laubert.

O capitão apenas apontou para os dois corpos.

—Eles provarão do próprio veneno. E é essa tarefa que terão que realizar – respondeu dando uma faca para cada. – Vamos, cortem! São cientistas, estão acostumados com isso.

Frenzel ficou enojado, mas sabia que tudo era válido para sair dali rapidamente. Olhou para o doutor Laubert; sua vontade era de jogar cabeça dele para as criaturas. Por causa dele, estava naquele lugar, ao invés da calmaria do laboratório da Degesch.

Sentou-se ao lado do tolerante (o escolheu por achar mais fácil fazer o serviço, já o tinha visto em uma mesa de autópsia antes), deixando Laubert com a obrigação de decepar o legista.

Enquanto as criaturas pulavam como loucas na direção dos soldados, ferindo se umas às outras na tentativa de alcançá-los, os dois cientistas se viam na função de açougueiros com seus facões empunhados, prontos para a desossa.

O verfaulen tinha dado uma consistência diferente à pele daquele ser. Frenzel se concentrou, repetindo para si mesmo diversas vezes que aquilo não era humano. Assim pôde começar. O facão afiado, com contínuos e fortes golpes, começava a decepar o tolerante. A carne apodrecida espirrava-lhe o avental, não foram poucas as vezes que ele parou para vomitar. Mas continuou seu trabalho. Com Laubert não foi diferente. Momentos antes estavam juntos, trabalhando na autópsia, agora, por ironia do destino, era ele que estava lá, sendo cortado como gado.

O capitão acompanhou todo o serviço dos dois cientistas. Nessa altura, pareciam mais açougueiros, com seus aventais repletos de sangue. Como se fosse munição, as partes dos corpos eram enroladas com as próprias vestes dos mortos e preparadas no lançador. Enquanto alguns combatentes mantinham com determinação os mortos a uma distância considerável, o capitão ordenou que apontassem o lançador em direção a câmara, e no sinal do soldado fez se atirar a primeira remessa. As criaturas, com o faro apurado, voltaram-se para as bombas de carne humana, lançadas na câmara.
—Isso, suas bestas cretinas! Mordam a isca! – gritou o capitão, extasiado.

A cada disparo, mais mortos entraram na câmara, e, enquanto se digladiavam por aquela matéria já apodrecida, os soldados avançavam a linha de ataque, encurralando-os. O capitão, com toda sua experiência, percebeu o momento certo para ordenar que seus homens fechassem a porta da câmara. Quando, com algum trabalho, os militares conseguiram trancafiar as criaturas, jogaram as armas no chão e se abraçaram, comemorando a vitória de uma batalha que parecia impossível vencer. A enorme porta de ferro continha toda a fúria monstruosa das criaturas. Frenzel se, viu enfim, fora do temível pesadelo, e para ele não importava se levaria um tiro de fuzil na nuca, prometera nunca mais criar armas químicas.

Hitler, ao ser comunicado sobre, o incidente ordenou que as pesquisas no laboratório fossem suspensas, e também que mantivessem presas aquelas criaturas para estudos, após o término da guerra.

O capitão, contrariado com a ordem de seu chefe maior, cercou-se de medidas preventivas para que jamais aqueles seres saíssem  dali, minando em alguns pontos a entrada da câmara. Sabia que uma explosão enterraria-os de uma vez. Destruiu o elevador e o acesso ao laboratório. Pediu aos combatentes envolvidos que mantivessem segredo. A versão dada, para consolo dos familiares dos soldados mortos, foi um levante judeu prontamente contido.

Com a derrota dos alemães, os mortos de Bikernau ficaram como um ato esquecido na peça trágica e mortal da Segunda guerra.

***

Mesmo contrariado, o professor seguiu os dois até a porta. Sabiam que não haveria tempo, pois, assim que terminasse com o produtor, a criatura buscaria mais alimento.

A porta de ferro tinha uma trava giratória, muito usada em submarinos. Precisou do esforço de John e do professor para abri-la, Marta ficou olhando atentamente para o corredor, para alertar, caso a criatura surgisse. E surgiu! Rosnando como fera, correndo em sua direção. Ela ficou pasma com o que viu, só conseguiu balbuciar...

- E-El-Ele...

Mas antes que a criatura pudesse estraçalhar as vísceras da tradutora, seus companheiros abriram a porta. E pelo braço puxaram-na para dentro da câmara, travando a porta em seguida.

O silêncio só não era absoluto porque a respiração ofegante dos três alternava-se. Escuro! Assim estava o ambiente. Mas, infelizmente para os três, o olho humano se acostuma com as trevas, tornando possível enxergar novamente, não com clareza! Mas nem era preciso, pois, cercados de criaturas sedentas por carne e sangue, não havia muito que reclamar da escuridão.

Aquilo em que Ed se transformou pulava agitado sobre a porta, querendo participar do banquete humano, que era degustado pelas outras criaturas. Essas famintas por décadas! Mas nesse desespero a criatura pisou em algo, um clique, seguido de um grande estouro, que gerou naquele subterrâneo um abalo, um grande abalo, seguido de um desmoronamento. Os mortos de Bikernau estavam enfim, enterrados!

Prontamente, uma busca foi feita em Bikernau para encontrar os cinco desaparecidos. O mundo lamentou o trágico desabamento do laboratório subterrâneo. John não ganhou o prêmio de reportagem que tanto sonhava, mas fora reconhecido. De uma forma ou de outra, alcançou sua fama.

No meio das escavações destinadas a encontrar os corpos das vítimas, o bombeiro sentiu algo lhe correr sobre as pernas. Suavemente, pegou-o com a mão. A brancura contrastava em sua luva preta. Tão meigo... Tão pequenino... Pensou a sorte ter sido gentil com ele naquele dia, pois era justamente o dia do aniversário do filho, e, quando chegasse em casa entregaria para o garoto o pequeno roedor!

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