PLANTÃO NOTURNO - Conto de Terror - Duílio Souza
PLANTÃO NOTURNO
(Duílio
Souza, Menção Honrosa do Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)
A antiga porta de correr rangeu agudamente enquanto era aberta.
Ali,
sentado no escuro, Fábio podia ouvir as batidas do próprio coração em meio ao
som da chuva que caía lá fora, enquanto passos lentos ecoaram pelo grande salão
que ocupava o necrotério.
Ele apertou a mão suada de
Mirella, mais como um lembrete para que ela se mantivesse em silêncio do que
para confortá-la.
Os passos se aproximaram, um ruído baixo e áspero se juntou àquela sinfonia macabra, uma
mão deslizando pela maca que antes estivera ocupada.
Mirella começou a tremer, no início,
estava claro que aquela noite havia sido demais para ela.
O
ruído continuou, cada vez mais alto, cada vez mais próximo, até que subitamente
parou. Ela estava ali, bem em frente à maca sob a qual o casal se escondia.
Bastou um simples movimento para que o lençol, que lhes servia de proteção, foi
arrancado, revelando uma cena aterradora.
A mulher, que no início da noite
era a única habitante daquele salão, agora estava de pé, os olhos vermelhos como brasa os encarando.
Olhos que combinavam bizarramente com os caninos pontiagudos, que se projetavam
ameaçadores pelos lábios entreabertos.
5 horas antes
Fábio conhecia aquela estrada
"de cor e salteado". Há mais de um ano, quinzenalmente, ele deixava
Belo Horizonte para trás rumo a Paraopeba. A pequena cidade do interior do
estado ficava há uma hora da capital, mas nesse dia ele demorou um pouco mais
que isso devido ao mau tempo, de forma que já passava das 19:15 quando
conseguiu finalmente estacionar o seu Golf TSI em frente ao Hospital São
Vicente de Paula, para iniciar o seu plantão.
A chuva torrencial o obrigou a usar a sua mochila como um guarda-chuvas
improvisado até chegar à segurança
do teto da entrada do Pronto Atendimento. Apressado, ele caminhou até a sala de
emergência, onde o Dr Gilmar suturava a mão do último bêbado daquele plantão.
– Doutor, me perdoe pelo atraso,
a estrada estava caótica hoje.
– Não se preocupe, com esse
temporal, eu não estou com pressa nenhuma para ir embora, mas eu vou terminar
essa sutura e o plantão será todo seu.
– Tudo
bem, vou guardar as minhas coisas e já volto. Tenha um bom descanso.
Fábio saiu da sala de emergência
para ganhar o longo corredor que dava acesso às enfermarias. O hospital era
grande, mas subutilizado, devido à proximidade de Belo Horizonte e Sete Lagoas,
que fazia com que grande parte da população buscasse atendimento nessas
cidades. Isso dava ao local um "quê" prédio abandonado, aspecto
potencializado pelas várias lâmpadas queimadas ou em vias de queimar, que
piscavam fantasmagoricamente. Caminhar por ali sempre lhe causava calafrios.
Ele se preparava para acelerar o passo quando o som estridente da sirene o
atingiu, provocando um sobressalto. Aquele apito significava problemas.
Fábio girou nos calcanhares e em
alguns instantes estava de volta à sala de emergência.
– Acidente de automobilístico! – Gritou
Mirella, a enfermeira de plantão. - Capotamento com três vítimas.
– Glasgow três. – Grunhiu Gilmar.
– Vamos entubar!
Grande parte da equipe se debruçou
sobre um homem alto de cabelos negros que jazia inerte em uma maca. O Dr Gilmar
utilizou o laringoscópio para abrir espaço pela garganta do paciente, inseriu o
tubo orotraqueal e rapidamente o conectou ao respirador.
Instantes depois, os bombeiros irromperam pela sala empurrando outra maca.
– Mulher, aproximadamente 30
anos, encontrada inconsciente na cena, instável!
Fábio tocou a pele pálida do pescoço a
procura de algum sinal de batimento cardíaco, mas não sentiu absolutamente
nada.
- PCR! Quero o carrinho de parada!
O comando deu início há uma série
de procedimentos realizados pela equipe. Mesmo assim, após 40 minutos, ele
declarava o óbito. O corpo foi preparado e encaminhado ao necrotério.
– Fábio. – Mirella pousou a mão
em seu ombro. - Há outro paciente.
Eles seguiram até um dos
consultórios, onde uma técnica de enfermagem tentava espetar uma agulha no braço
de uma criança, uma menina, por volta dos seus 11 anos, com longos cabelos
castanhos. Ela estava extremamente arredia, e não deixava que ninguém se
aproximasse.
– Rosana, pode deixar. – Orientou
Fábio, com um tom conciliador, retornando para Mirella. – Ela está em choque,
possivelmente estresse pós traumático, vamos dar um tempo. Rosana, fique com a
garota, se houver qualquer problema, nos avise.
Exausto, ele checou
novamente o homem e, constatando que se encontrava estável, foi para o seu
quarto, na esperança de tomar um banho e dar ao menos um cochilo antes que o
sol nascesse. E conseguiu, pelo menos até a sirene estridente da sala de emergência
voltar a tocar.
Ele saltou da cama e calçou
os sapatos no escuro, saindo em disparada pelo corredor.
Ao chegar à urgência,
encontrou Mirella e duas técnicas de enfermagem, Cida e Valkíria.
– O que foi? Não tem ninguém
aqui.
– Exatamente. – Respondeu
Mirella. – O paciente sumiu.
– Isso é impossível, ele está intubado
e sedado.
– Estava. – Respondeu ela,
apontando para baixo ao lado da maca, indicando o material de acesso venoso e o
tubo orotraqueal jogados no chão.
– Meu Deus, nós temos que achá-lo
rápido, ele não pode estar muito longe. Vamos fazer uma busca pelo hospital,
ele deve estar procurando pela família.
E assim o fizeram, se dividindo em duplas. Fábio e Mirella ficaram com a enfermaria, Cida e Walkíria
procurariam nos consultórios.
Enquanto caminhavam pelos corredores mal iluminados, Mirella tinha as duas
mãos no braço do colega, que
achou graça do temor da enfermeira.
– O que foi, Mirella?
– Esse lugar aqui já me dá arrepios,
ainda mais numa noite dessas.
– Como assim?
– Você não percebeu? A noite
inteira foi estranha, a começar desse dilúvio que não para, um acidente
horroroso, e agora, o paciente praticamente retorna dos mortos. Deus me livre!
– Não se preocupe, provavelmente
uma das meninas desligou sem querer a bomba de infusão, interrompeu a sedação e
ele acordou, quando nós o encontrarmos ficará tudo bem.
Fábio mal fechou a boca e o
grito agudo de Cida mostrou que a sua suposição estava longe de ser verdadeira.
Os dois correram pelo corredor até o local de onde vinha o som. Um calafrio
percorreu a espinha do médico quando ele identificou aquele como o consultório
em que havia deixado a garota, mas nada se comparou à sensação que o acometeu
quando entrou no cômodo.
O corpo de Rosana estava sentado em uma cadeira, com os braços jogados para baixo e o pescoço estendido, mutilado em
sua face esquerda, de onde minara o sangue responsável por tingir toda a roupa
branca de vermelho vivo. Walkíria e Cida gritavam e choravam abraçadas.
– Nós temos que chamar a polícia.
– Fábio tateou os bolsos e praguejou quando percebeu que deixara o telefone no
quarto. – Merda! Alguém tem um celular?
As três sacaram os seus
aparelhos ao mesmo tempo em que as luzes se apagaram.
– Ave Maria! Isso é coisa do
capeta! – Disse Cida, em meio a soluços e suspiros.
– Que merda é essa? – Fábio
praguejou novamente. – Vamos, liguem para a polícia!
Walkíria venceu o
choque e acionou o aparelho, iluminando precariamente o consultório. Em
seguida, levou o celular até o rosto, revelando uma expressão apavorada.
– Central de polícia, em que
posso ajudar. – O celular sibilou no viva-voz.
– Tem alguém aqui no Hospital,
mataram a Rosana! Mataram a...
Um vulto passou por ela, e em seguida o celular se espatifou no chão.
– Tem alguém aqui! Tem alguém
aqui!
Cida gritava desesperada enquanto tentava usar o celular como lanterna.
Mirella se abraçou com Fábio, a
respiração ofegante e as mãos geladas.
Mais uma passagem do vulto e o Celular de Cida também foi ao chão, interrompendo os gritos. Um instante de
um silêncio congelante, até a revelação, a necessidade de sobreviver.
– Corre, Mirella! Corre!
Fábio percorreu desesperadamente
o corredor, tropeçando e levantando algumas vezes. Não conseguia ver Mirella,
mas sentia os seus passos junto a ele, até que uma mão tocou o seu punho.
– Fábio, espera! – A voz de
Mirella estava trêmula. – A saída é para o outro lado.
– Nós não podemos passar lá novamente,
é muito arriscado!
– Então o que nós vamos fazer?
– Vamos nos esconder até a polícia
chegar.
– Essa coisa vai nos pegar.
– Vem comigo!
Ele guiou a colega até o
necrotério, imaginando que seria um bom esconderijo, e Mirella não protestou,
estava totalmente entregue. Ao entrarem no grande salão ela ligou o celular e
iluminou precariamente o cômodo, o que deu um aspecto mais perturbador ainda à sua
constatação. O lugar estava vazio.
– Ave Maria, Fábio! Cadê a
mulher?
– Eu não sei. Tem certeza de que
a trouxeram para cá?
– Claro que tenho! A Cida estava
certa, isso é coisa do demônio!
Com se confirmasse a afirmação
de Mirella, o som de passos surgiu no corredor.
Fábio puxou a enfermeira pelo
braço e eles se esconderam sob uma das macas, puxando sobre si um lençol velho
que estava por ali.
A antiga porta de correr rangeu agudamente enquanto era aberta, os passos continuaram
em sua direção, até que o lençol
que os escondia foi abruptamente retirado, revelando os olhos vermelhos e os
caninos pontiagudos da mulher que fora dada como morta.
Fábio sentiu o seu sangue
congelar. "Vampiros? Vampiros não existem". Mas lá estava ele prestes
a ser dilacerado por uma criatura saída dos contos de terror.
A mulher levou as mãos até a
boca, tocando delicadamente cada um dos dentes, após isso, os encarou com a
expressão sombria.
– Meu Deus! Eu sou uma... uma...
A frase não foi terminada,
porque o maldito vulto se abateu sobre ela, a atirando contra a parede há alguns
metros de onde estava. Com muito esforço, Fábio venceu a inércia e conseguiu
sair dali com Mirella, aquela era a sua chance de chegar à saída.
Ele correu, correu como nunca, segurando
com firmeza o braço de Mirella, e não estavam longe da saída quando ela foi
violentamente arrancada dele. Fábio parou e virou-se para encarar corredor
escuro no mesmo instante que o grito angustiante ecoou pelo prédio vazio.
Seus olhos vasculharam inutilmente a escuridão, um ruído baixo se iniciou, como um rosnado levemente
agudo, a criatura preparava o seu bote. Ele sabia que deveria correr, mas as
suas pernas já não o obedeciam.
– O que você quer? – Gritou
desesperado – O que você quer?
– Eu quero brincar. – Respondeu
uma voz delicada de criança. – A minha boneca quebrou.
Algo rolou em sua direção,
parando aos seus pés. Ao forçar os olhos, identificou a expressão horrorizada
de Mirella, eternizada na cabeça que já não estava mais em seu corpo.
– Você é um monstro! – Vociferou
para o vazio.
Um grunhido agudo
precedeu o ataque, e Fábio entendeu que morreria naquele momento. No entanto,
no instante derradeiro, um feixe de luz iluminou o corredor, revelando a garota
com olhos vermelhos e caninos pontiagudos em meio a um salto humanamente impossível.
Ela não chegou a completar o seu ataque, pois foi violentamente atingida por um
cano de ferro.
Ao lado de Fábio, o homem que
desaparecera da sala de emergência caminhava com dificuldades em direção à vampira,
que permanecia caída
com as costas no chão
e a cabeça encostada na parede, o pescoço dobrado em um ângulo incompatível com a vida.
– Ela está morta? – Fábio perguntou.
– Sim e não – Respondeu
o homem com uma estaca de madeira na mão. – Mas nós vamos resolver isso agora.
– Ela é uma...
– Isso mesmo, uma
vampira. Eu e a minha parceira a caçamos por todo o estado. Agora é melhor você sair daqui.
Fábio não hesitou em
obedecer, e caminhou em direção à saída
do hospital, mas antes que pudesse chegar à porta foi abordado
novamente.
– Doutor! Esqueça tudo o que viu nessa
noite.
– Difícil esquecer uma coisa
dessas.
– Pelo seu bem, eu
sugiro que faça um esforço.
– Você está
me ameaçando?
–Entenda como quiser, mas as pessoas para quem eu
trabalho não gostam de publicidade. Além disso...
A frase foi subitamente
interrompida, como se ele engasgasse com as próprias palavras. Por reflexo Fábio
se aproximou, e então percebeu o que acontecia. A vampira lhe agarrara pelas costas
e cravava os dentes em seu pescoço, mas a parte mais macabra eram os olhos, que
o encaravam como se prometessem que ele seria o próximo.
Enquanto se virava e
iniciava a sua corrida contra a morte, Fábio sentia que a criatura o perseguia,
se aproximando cada vez mais. Ao chegar à rua, com a chuva açoitando o seu rosto, avançou mais
alguns metros até o seu carro. Ele tateou os bolsos à procura da chave, e o
seu sangue congelou ao pensar na possibilidade de tê-la deixado no quarto, felizmente,
estava errado.
Abriu a porta e entrou.
As mãos trêmulas
o impediam de acertar o orifício da ignição, fazendo com que ele precisasse
olhar e se concentrar naquela simples tarefa que fazia cotidianamente. Quando
olhou pelo para-brisa, pronto para engatar a marcha ré, lá estava ela. A visão
singela da garota,
já sem as presas e os olhos vermelhos, seria uma
imagem cativante, se não estivesse maculada pelo sangue, que escorria pelo
queixo e tingia o vestido de vermelho.
Em um rompante, ele
arrancou com o carro e partiu em sua fuga desesperada. Antes de dobrar a
esquina arriscou uma última olhadela para trás, constatando que ela já
não estava mais lá.
Quando voltou-se
novamente para frente, só
houve tempo de girar bruscamente o volante para que não
se chocasse contra a viatura que vinha em direção contrária, e depois disso
tudo se apagou.
* * *
Os seus olhos
piscaram algumas vezes até que se acostumaram à iluminação,
as paredes brancas eram conhecidas, estava no hospital. Fábio respirou fundo,
constatando que tudo não passara de um pesadelo, no entanto, a boa perspectiva
naufragou quando tentou levar as mãos até os olhos. Ele estava algemado à cama.
– Que bom que você acordou,
nós temos muito o que conversar. – Disse um homem que o encarava do outro lado
do quarto. – Eu sou o delegado Pontes.
– A garota. – A sua voz
saiu rouca, quase irreconhecível.
– Essa é realmente uma
boa pergunta. O que você fez com a garota?
Duílio Souza, natural de
Diamantina/MG, é médico, cirurgião de cabeça e pescoço, formado pela UFMG. Mora
em Belo Horizonte com a esposa e os dois filhos. Leitor aficcionado de
literatura fantástica e policial, com um facínio especial por vampiros e,
consequentemente, pela obra de Bram Stoker. Em 2018 publicará o seu primeiro
Romance, “Sangue Real”, pela Luva Editora, com uma temática semelhante á do
conto “Plantão Noturno”.
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