O FANTASMA - Historieta Clássica Fantástica - Marquês de Sade




O FANTASMA
Marquês de Sade
(1740 – 1814)

Os fantasmas são a coisa do mundo à qual os filósofos dão menos crédito. Mas, no caso extraordinário que vou relatar (acontecimento respaldado pela assinatura de várias testemunhas e registrado em arquivos respeitáveis e que, graças a estes títulos e certificados de autenticidade que teve em seu tempo, pode tornar-se susceptível de crédito), será preciso, apesar do ceticismo de nossos estoicos, convir que, se todas as histórias de fantasmas não são verdadeiras, contêm, ao menos, elementos realmente extraordinários.

A corpulenta senhora Dallemand, conhecida em toda Paris, naquele tempo, como mulher alegre, cordial, ingênua e de agradável trato, morava, desde que ficara viúva, há mais de vinte anos, na casa de um certo Ménou, homem de negócios que residia perto de Saint-Jean-en-Grève. Certo dia, a senhora Dallemand ceava na casa de uma dama chamada Duplatz, mulher de caráter e meio social muito semelhantes ao seu, quando, em meio a uma partida iniciada depois do jantar, chega um criado rogando à senhora Dallemand que passasse a um cômodo contíguo, pois uma pessoa amiga sua desejava falar-lhe sobre um assunto tão premente quanto importante. A senhora Dallemand reponde-lhe que espere, pois não quer perder a partida. O criado retorna e insiste tanto que a dona da casa é a primeira a pedir-lhe que vá ver o que queriam com ela. A senhora Dallemand sai e se encontra com Ménou.

— Que assunto tão urgente — pergunta — o obriga a incomodar-me desta forma, vindo a uma casa onde o senhor não é sequer conhecido?

— Um assunto de essencial importância, senhora — responde o corretor. — E tanto é assim que obtive a permissão de Deus para vir falar-lhe pela última vez em minha vida.

Ante estas palavras, que não correspondiam a de um homem em seu juízo perfeito, a senhora Dallemand se sobressalta, e, ao observar o seu amigo, que não via há alguns dias, fica ainda mais assustada ao encontrá-lo pálido e desfigurado.

— O que está acontecendo? Qual é a razão do estado em que o vejo, e dos sinistros fatos que me anuncia? Explique-me o mais rápido possível o que lhe aconteceu.

— Nada que não seja normal, senhora — respondeu Ménou. — Após sessenta anos de vida, era muito fácil chegar ao porto. Graças aos céus estou aqui. Paguei à natureza o tributo que todo homem deve a ela. Mas esqueci-me da senhora em meus últimos instantes de vida e é por isso que venho pedir-lhe perdão.

— Estará o senhor delirando? Nunca vi maior insensatez! Ou o senhor recobra a razão, ou me verei obrigada a pedir ajuda.

—Não faça isto, senhora. Esta inoportuna visita não se estenderá por muito tempo. Já está se esgotando o prazo que o Senhor me concedeu. Escute, pois, as minhas palavras; depois, nós nos despediremos para sempre.  Eu morri e logo a senhora poderá certificar-se da veracidade do que lhe digo. Eu olvidei a senhora em meu testamento e agora venho reparar a minha falta. Tome esta chave e siga à minha casa. Detrás da tapeçaria de minha cama, a senhora achará uma porta de ferro. Abra-a com a chave que agora lhe dou e pegue o dinheiro que há no armário fechado por esta porta. Meus herdeiros ignoram a existência dessa quantia. A soma é sua e ninguém haverá de disputá-la consigo. Adeus, senhora. E não me siga.

E Ménou desapareceu.

É fácil imaginar em que estado de excitação voltou a senhora Dallemand ao salão de sua amiga. E era-lhe impossível ocultar o motivo...

— Toda essa história bem merece uma comprovação — disse-lhe a senhora Duplatz. — Não percamos um instante.

Pedem os cavalos, sobem ao coche e rumam para a casa de Ménou. Ele estava próximo à entrada, estendido num ataúde. As duas mulheres sobem aos quartos. A amiga do dono da casa, que é muito conhecida por todos para ser impedida, atravessa todos os quartos que deseja, chega ao indicado, encontra a porta de ferro, abre-a com a chave que recebera, encontra o tesouro e o leva consigo.

Vemos aqui uma rara prova de uma amizade e de um agradecimento que, por mais que os espectros nos assustem, estaremos de acordo ao perdoar-lhes o terror que nos causam, levando-se em conta os motivos que os levam a comparecer diante de nós.


Versão em português de Paulo Soriano.
Ilustração de F. H. Towsend (1868 – 1920).

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