O PRESENTE DO CALIFA - Conto Cruel - Humberto de Campos
O
PRESENTE DO CALIFA
Humberto
de Campos
(1886
– 1933)
Quando
o califa Mansur, sucessor de Harum-al-Raschld, reinava em Bagdá escolheu, entre
todos os médicos que havia na incomparável cidade da fortuna e da sabedoria,
para velar pela saúde seus dias, a Abu-Zakarlya-Yahya-bem-Masaweih, notável
então pelas curas que tinha feito e que lhe cercavam o nome de glória.
Abu-Zakarlya-Yahya-ben-Masaweih havia estudado na Pérsia, aperfeiçoando-se na
sua ciência na famosa academia de Gondêchapur, celebrada em todo o Oriente pela
proficiência dos seus mestres. Antes de partir para Bagdá, dez anos trabalhara,
ilustrando-se em letras e experiências, no hospital fundado pelo grande
Abul-Hassan-Ali-Sahl-ben-Rabban, que lhe dedicou o seu livro "El-Konnach",
citado, ainda hoje, como uma das obras clássicas da medicina Árabe.
O
médico não é, porém, senão o intermediário de Alá, Todo Misericordioso, na concessão
de graças aos homens. É Alá que lhe move a mão, e lhe sopra no pensamento o
remédio que salva ou fulmina. E como Abu-Zakariya-Yahyra-ben-Massaweih não
estivesse sob a benção de Alá Todo Poderoso, aconteceu fosse a cidade do califa
assaltada pela peste, que fez no povo a maior das devastações. Tendo o xeique
Nassir-Eddin declarado ao califa que a peste não cessaria enquanto não ficasse
concluída a mesquita de Mussa-ben-Chakir, ordens foram expedidas para que se
trabalhasse dia e noite nas obras. Mas a mesquita ficou concluída e a peste
continuou. Milhares de trabalhadores ficaram sepultados sob as pedras que
carregavam. E os corvos de toda a Arábia vieram voar sobre Bagdá, trazidos de
longe pelo cheiro dos mortos, abandonados à face da terra.
Foi
nessa emergência que Abu-ZakariyaYahya-ben-Massaweih, a quem o califa entregara
a salvação da cidade, se lembrou do seu colega Josué-ben-Nachman, que, chamado
de Jerusalém, tinha debelado a calamidade terrível em todas as cidades que se
haviam servido diretamente da sua ciência. Uma dificuldade surgira, no entanto,
e quase insuperável — Josué-ben-Nachman era judeu, e recorrer a um judeu para
salvar muçulmanos seria duvidar da onipotência e da misericórdia de Alá.
Esqueciam os homens desse tempo que Alá, para humilhar os seus crentes que
mergulham na lama do pecado, utiliza, às vezes, as criaturas mais fundamente
marcadas pelo seu próprio desprezo.
—Um
infiel, para livrar da morte uma cidade do Islã? — exclamou o califa, ante a
proposta que lhe apresentara, timidamente, Abu-Zakariya.
E,
sentando-se no divã com um forte estremecimento na barba negra, e opulenta,
entrelaçada de pérolas:
—Morra
eu de peste, se esse cão de Moisés penetrar em Bagdá, mesmo sob a proteção da
sua ciência!
A
cidade continuava, porém, a ser despovoada. Arrabaldes inteiros estavam desertos.
O Tigre começava a rolar, trazendo à superfície, diariamente, centenas de
cadáveres. E Abu-Zakariya-Yahya-ben- Massaweih compareceu, novamente, diante do
califa.
—Meu
senhor — disse —, a tua misericórdia é imensa, mas está dormindo no teu
coração. Somente Josué-ben-Nachnian, com o seu segredo de médico sem igual no
mundo, poderá salvar Bagdá do extermínio. Por isso, venho submeter à tua
sabedoria uma proposta — que ele se converta ao islamismo, e venha à tua
cidade, que tu lhe darás uma quantia em ouro equivalente ao seu peso no dia em
que a peste desaparecer de Bagdá.
A
conversão do infiel fazia desaparecer os fundamentos do escrúpulo religioso.
Seja
feito o que propões, Abu-Zakariya — foi a resposta do califa. — Contanto que se
ponha termo à peste em Bagdá!
No
dia seguinte, partia um valeiro com destino a Smyrna, onde, então, se
encontrava o maior médico de Israel. E semanas depois regressava trazendo a
resposta. Josué-ben-Nachman limitava-se a dizer a Abu-Zakariya, nas poucas
letras da sua carta, o seguinte — "O ouro equivalente ao meu peso é inferior
ao peso do meu coração, que está nas mãos de Deus. Salvarei Bagdá, com uma condição
— que respeites a minha fé, como eu respeitarei a tua e a daqueles a quem levar
o remédio da minha ciência".
Ao
escutar a leitura dessas palavras, o califa Mansur se deixou tomar de um acesso
de cólera, e mandou que fossem enforcados junto às muralhas duzentos judeus dos
mais importantes da cidade. Os conselhos mansos e ponderados de Abu-Zakariya
fizeram-no, porém, suspender essa ordem até nova resolução. Enquanto isso, Bagdá
perecia. As caravanas do Oriente passavam longe dos seus muros, buscando outros
mercados, levando-lhes a prosperidade. O próprio califa, não obstante os cuidados
e cautelas de que se achava cercado, caiu atacado da peste. E foi quando
Abu-Zakariya, revestindo-se de coragem, propôs, de novo, o convite a
Josué-ben-Nachman.
—Senhor
— disse —, não é mais o povo que vai perecer — é o próprio califa, se morreres.
E, com o califado, cessará de existir o Islã. Deixa-me, pois, que mande vir a Bagdá
o grande Josué-ben-Nachman!
Só
então o califa Mansur consentiu. E Josué-ben-Nachman veio de Smyrna. E salvou Bagdá.
E restituiu a saúde ao califa. E este viu, com espanto, que o homem que ele
tanto temia era manso e doce, diferençando-se de um muçulmano unicamente porque
o seu Deus tinha outro nome. E como Josué-ben-Nachman quisesse regressar para
Smyrna, o califa Mansur lhe falou assim:
—Salvaste-me
a vida, e fizeste renascer a mais formosa cidade do califado.
Que desejas que
eu te faça, para que voltes contente à terra dos infiéis?
Josué
sorriu, mansamente:
—Uma
coisa, apenas, Senhor. Prometes?
—A
palavra de um califa é um juramento.
—Desejo visitar o teu serralho[1]!
—O
meu serralho? Será feita a tua vontade.
E,
chamando à sua presença o chefe dos eunucos, ordenou que levasse o estrangeiro
ao lugar que ele desejava conhecer. Duzentas e noventa mulheres havia naquela
parte do palácio. E os olhos de Josué-ben-Nachman passearam pelos mais belos
corpos femininos que havia em todo o Oriente. De regresso à presença de Mansur,
o judeu confessou-se agradecido.
—Escolheste
alguma? — indagou o califa.
—Não, meu Senhor, já tenho uma esposa em
Jerusalém. Não posso ter outra em Bagdá. É contra a nossa Santa Lei.
—Mas achaste bonita alguma das que viste? Qual
escolherias, se não fosses judeu?
—Uma
armênia, que o chefe dos eunucos me disse ter o nome de Sobelha.
—Tens
bom gosto. Sobelha, a armênia, é a mais formosa joia do serralho.
Na
manhã seguinte, Josué-ben-Nachman partia de Bagdá. A sua caravana de vinte e
dois camelos levava ouro, joias, tecidos e especiarias, presentes do califa. E
já ia penetrando o deserto que então separava Bagdá de Radilh, quando um
cavaleiro, vindo a todo o galope, o alcançou. Trazia à mão um saco de seda
vermelha. Dentro do saco de seda vermelha havia um vaso de ouro.
—É o presente de despedida que o califa, meu
Senhor, te manda — disse o emissário. — É seu desejo que viajes contente. Não te
pôde oferecer a mulher que desejaste, porque não a podias receber, nem ele ta
podia dar. Ele te pede, assim, que partas tranquilo e feliz, porque ela, não
sendo tua, não será de mais ninguém.
E
entregando-lhe o saco:
—Toma
— é a cabeça de Sobelha.
Nota do autor: Edmond de Goncourt, no seu Journal, conta um caso mais ou menos
semelhante ocorrido com o general Sebastiani, em Constantinopla, no tempo do
sultão Selim. O episódio acima narrado consta, todavia, do Nawadir et-tibb, de
Abu-Zakariya-Yahya-beti-Mossaweih, lido por mim numa edição que eu não tenho,
numa tradução que nunca vi.
Ilustração: J. Ribeiro.
Fontes:
Vamos Ler!, edição de 2/12/1943 e Diário Carioca, edição de 29/10/1933.
Comentários
Postar um comentário