O CARRO DE ENTERRO - Conto Classico Fúnebre - Viriato Padilha
O CARRO DE
ENTERRO
Viriato Padilha
(1866 – 1924)
Era
num sábado. Estava em festas o elegante e suntuoso palacete do visconde, a mais
rica habitação que havia no Rio Comprido.
Casava-se
a formosa Matilde, filha predileta do dono da casa, e ele festejava esse
acontecimento o mais ruidosamente possível.
O
palácio achava-se todo ornado por dentro e fora; uma esplêndida banda de música
executava no saguão trechos escolhidos das óperas mais em moda, e a criadagem,
vestida com suas finas librés, circulava de um lado para outro, dispondo os
últimos preparativos da ornamentação.
O
cortejo havia partido às duas horas da tarde para a igreja, e na rua apinhava
uma multidão curiosa de assistir à chegada dos noivos, ao regressarem da
cerimônia nupcial.
*
* *
Enquanto
assim se dispunham as coisas para a folgança no suntuoso palacete do visconde,
uma cena muito diferente se desenrolava em uma casa de mais que modesta
aparência da mesma rua.
Em
cima de uma mesa que havia na sala dessa casa, que era então um pardieiro,
quase em ruínas, via-se, num caixão dos mais baratos que a Santa Casa fabrica,
o corpo de uma moça amortalhada. Duas velas alumiavam-na, e em redor
permaneciam as pessoas da família e alguns vizinhos, todos gente pobre.
Pai
e mãe e irmãos dessa criatura morta desfaziam-se em amargo pranto e sentiam a
alma rasgar-se pela mais fina das dores, nesse momento em que se ia fechar o
caixão e levá-lo a um carro fúnebre parado à porta.
Pobre
gente! Essa de quem iam separar-se para sempre era a sua boa Lúcia, filha e
irmã mais velha, que todos estimavam tanto! Pobre Lúcia! Ela era o braço
direito daquela família. Do seu trabalho vinham os minguados mil réis com que
se pagava à venda, depois que o pai ficara aleijado e a mãe entisicara. A boa
Lúcia sempre alegre, sempre resignada! Como não deviam sofrer os pobrezinhos,
naquele terrível transe por que passavam.
*
* *
O
pai de Lúcia era um rude operário de obra grossa, um carpinteiro, e tivera a
infelicidade de quebrar uma perna, caindo de um andaime em que trabalhava.
Essa
desventura foi o início de todas as desgraças que assaltaram a família.
Conduzido para a Santa Casa, lá esteve quatro longos meses, entre a vida e a
morte; e a mulher e os filhos começaram a curtir duras necessidades, pois o pai
nada ganhava.
O
taverneiro já fechava a cara quando iam às compras, e por mais que a mulher do
carpinteiro e Lúcia, sua filha, se matassem numa tina a lavar roupa, o dinheiro
não chegava para coisa alguma.
A
mãe de Lúcia era uma mulher franzina e muito disposta para moléstias do peito.
Com o trabalho excessivo que fazia, logo começou a deitar escarros de sangue
pela boca, e dentro em breve nada mais pôde fazer. O carpinteiro tivera alta do
hospital, mas não podia ainda trabalhar. Assim, a pobre família achou-se na
mais negra miséria.
No
entanto, Lúcia trabalhava cada vez mais. De dia não se arredava da tina de
lavar roupa, de noite costurava até o galo cantar. Não pôde resistir por mais
tempo à semelhante canseira, e, também, caiu enferma.
Uma
circunstância veio ainda agravar o estado dos infelizes.
A
casa em que Lúcia morava pertencia ao mesmo visconde a que já nos referimos, e
ele ordenara ao carpinteiro que se mudasse, já que não podia pagar os aluguéis.
O visconde, apesar de opulento, era inflexível em questões de dinheiro. De nada
valeram os rogos do pobre carpinteiro que a ele se dirigiu, arrastando as
muletas e com as lágrimas nos olhos. O visconde manteve a sua ordem.
"Se
fosse a ouvir a choradeira de todos", dizia o titular, "bem depressa
estaria reduzido a pedir esmola”. Não era ele quem fazia as desgraças: era
Deus. Pedissem-lhe contas.
O
carpinteiro teve que desocupar a casa e fora meter-se no pardieiro de que já
falamos e que, por piedade, lhe cedera um outro carpinteiro, seu amigo e
compadre.
Era
uma casa de todo imprópria para habitação humana: suja, úmida, acanhada.
Nela,
os padecimentos de Lúcia foram a mais, e, no fim de quinze dias, a pobre
rapariga entregava a alma a Deus.
*
* *
No
entanto, o cortejo nupcial tinha regressado da igreja, e de uma extensa fila de
carros apearam os noivos, radiantes de felicidade, e bem assim a multidão dos
convidados, homens e mulheres, abafados nas suas toaletes de uma rigorosa
etiqueta.
Logo
que os carros despejavam a luxuosa carga que traziam, foram manobrados pelos
cocheiros, muito tesos nas suas boleias, soberbos nas suas sobrecasacas de
casimira cor de camurça e nas suas finas botas de canhão, e entraram na
porta-cocheira, aberta de par em par.
Noivos
e convidados começaram a subir os degraus do vestíbulo. A noiva ia de olhos
baixos, deliciosa, no seu vestido de seda branca, linda como uma tentação,
debaixo de uma grinalda de flores de laranjeira. Da fisionomia do noivo, um
guapo mancebo de vinte e poucos anos, transpirava a maior ventura, parecendo
tonto pela felicidade.
Quando,
porém, já tinham todos subido os três degraus do vestíbulo, o carro de enterro
que transportava a pobre Lúcia ao cemitério chegava bem defronte ao palacete do
visconde.
Era
um carro dos de ínfima classe, todo preto e de cortinas esmolambadas, guiado
por um cocheiro negro, de cartola de oleado amarrotada, libré sebosa, tendo a
fisionomia aguardentada, e que, encarrapitado na boleia, chupava com a maior
indiferença deste mundo em cigarro de papel.
Aquela
mísera seguia para o cemitério sem o menor acompanhamento.
O
carro vinha descendo a rua tranquilamente, ao trote cansado de dois cavalos
magros, ossudos. Quando, porém, chegou bem defronte ao palacete, os cavalos que
pareciam incapazes de qualquer resistência, encabritaram-se e recusaram
avançar. O cocheiro, que não esperava essa revolta dos pacíficos rocins, quase
foi levado ao chão; e exasperado, vibrou o pinguelim no dorso das magras
cavalgaduras, proferindo as mais cruas obscenidades.
Noivos
e convidados, todos voltaram o rosto para ver o que se passava na rua. Os
cavalos do coche fúnebre persistiram em não avançar, e o cocheiro, levado ao
maior auge da exasperação, desandava os bichos com cabo do pinguelim.
Aquilo
parecia mandado pelo diabo. Os cavalos pinoteavam, escouceavam, o cocheiro
praguejavam como um possesso. Afinal dando os animais um violento arranco, a
poder de pancadas, embicaram o coche para o lado do palacete, e nele o
esbarraram. A lança do carro entrou pelo gradil do jardim que adornava a frente
do edifício, e ali ficou a traquitana.
Foi
preciso que a criadagem do visconde desembaraçasse o carro e auxiliasse o
cocheiro a conduzi-lo.
Esse
fato impressionou desagradavelmente a todos que faziam parte do cortejo
nupcial, e uma senhora já idosa que entre eles se achava, exclamou
aterrorizada:
—
Um carro de enterro parar logo aqui, e isso em dia de casamento!... É mau
agouro!...
*
* *
Sem
que ninguém pudesse explicar a razão, o festim realizado em casa do visconde
correu frio.
Os
próprios noivos sentiam-se tristes. O fato de ter parado um carro de enterro à
porta do palacete, e naquele dia, roubava a alegria a todos. Como que se
adivinhava uma grande desgraça.
E
esse mal-estar aumentou quando à meia-noite circulou na sala a notícia de que
Matilde, a formosa noiva, tinha repentinamente adoecido.
Logo
cessaram as danças. As bandas de música calaram-se, e os convidados foram pouco
a pouco retirando-se. Daí a meia hora só se achavam no palacete os parentes e
amigos mais íntimos.
Matilde
estava realmente doente. Subitamente acometera-a uma violenta dor de cabeça,
uma aflição, e dentro de uma hora ardia em febre intensa.
O
noivo ficou alucinado. O visconde, já terrivelmente impressionado com o caso do
coche fúnebre, despachou criados em todas as direções para chamar médicos, que
acudiram pressurosos.
No
entanto por mais esforços que empregassem os facultativos, não puderam
aniquilar a enfermidade que acometera a inditosa moça. Consumia-se a olhos
vistos. No dia seguinte já parecia um cadáver, tão pálida e abatida se achava.
No terceiro dia não conhecia mais ninguém. No quarto havia perdido a fala. E na
manhã do quinto dia, quando os pássaros começaram a trilhar sobre o arvoredo,
cujas ramagens adornavam a janela do seu aposento, a pobre moça exalando um
suspiro despediu-se da vida.
Bem
dissera a respeitável matrona que fizera parte do cortejo nupcial. O carro
fúnebre esbarrando no gradil do palacete fora um mau agouro.
O
cadáver de Lúcia, a pobre filha do carpinteiro aleijado, viera chamar para a
paz do sepulcro a filha do potentado, do opulento, que tirara um teto a seu
pai, em momento de aflição e pobreza. Deus assim o quis. Tanto houve luto no
casebre esburacado como no rico solar. Era preciso que o desumano titular
também sentisse rasgar-lhe a alma o espinho da dor.
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