A LOUCA DA IGREJA - Conto Clássico de Horror - E. O.

A LOUCA DA IGREJA

(Conto Andaluz)

E. O.

(Início do séc. XX)


À luz indecisa do crepúsculo matutino, junto à porta da igreja de uma pequena cidade da Andaluzia, já as primeiras beatas a encontram numa manhã do mês de maio. Ninguém a conhecia, nem sabia quando, nem de onde tinha vindo.

O seu rosto, pálido e doentio, mostrava, ainda, que grande devia ter sido a sua beleza — e não os anos —, mas somente os maus tratos a tinham envelhecido prematuramente! Os seus enormes olhos pretos, de pupilas extremamente dilatadas, tinham um brilho extraordinário, parecendo querer tudo ver. Contudo, era desconfiado o seu olhar. Os seus cabelos, negros como a noite, estavam completamente emaranhados. A sua roupa esfarrapada não lhe dava, no entanto, um aspecto de mendiga, pois tinha um quê de arrogante e, ao mesmo tempo, de tímido o seu todo...

Examinavam-na receosamente as mulheres do povo, que ali estavam também à espera de que lhe abrissem a igreja. Nem parecia perceber que havia à volta de si outras pessoas. Quando os gonzos da pesada porta rangeram, foi ela a primeira que penetrou no interior úmido e ainda envolvido numa penumbra suave, mal o sacristão acabava de abrir os dois batentes maciços, cravejados com estrelas de ferro.

Seus passos silenciosos perderam-se na escuridão, pois que a luz da lamparina e das velas do altar apenas iluminavam um pequeno espaço em volta. O resto da igreja estava mergulhado na escuridão. Atrás dela entraram em tropel as beatas madrugadeiras, arrastando os chinelos ou batendo com os tamancos. E o barulho prolongou-se até que, lentamente, foi findando, abafado pelo sussurrar das orações.

A desconhecida tinha ido postar-se diante do altar da Virgem Santíssima com o Menino Jesus ao colo; e, encostada a uma coluna, não se mexia, fixos os olhos na estátua da santa, num êxtase inefável, indiferente a tudo que se passava em torno.

As horas tinham passado e a última beata há muito que já se tinha ido embora. O sacristão, depois de apagar as velas, havia percorrido a igreja dizendo a sua frase de todo dia: — “vai-se fechar a igreja” —, que ele agora repetia para ela. Mas, como a criatura não parecia sequer ouvi-lo, segurou-a por um braço e um pouco bruscamente a fez sair da igreja para poder fechá-la.

No dia seguinte, às mesmas horas da madrugada, estava ela à espera de que se abrisse a porta de igreja. E, assim, pelos dias a seguir, o sacristão precisava pô-la fora da igreja, quando chegava a hora de fechá-la. Sem variar nunca a sua atitude, lá estava a mesma mulher em êxtase, diante da estátua de Maria Santíssima.

Um dia, teve um desfalecimento e seu corpo caiu violentamente no lajedo da igreja. Ao irem socorrê-la, os mais próximos viram-na, com espanto, passar da grande imobilidade para as mais horríveis contorções, ficando possuída de uma tal força que seis pessoas, das mais fortes que ali se encontravam, não podiam contê-la, espumando e rasgando os seus andrajos.

Está possuída do espírito mau! — disse uma, e isto bastou para que todos dela se afastassem apavorados.

Está cativa do demônio! E, por mais que reze, não se pode libertar dele — disse uma velha sentenciosamente, fazendo o sinal da cruz e tratando de ir embora.

Está endemoniada! — continuaram a dizer e a espalhar, mesmo depois que o bom cura tentou explicar-lhes que aquilo era uma doença que qualquer deles poderia ter. Por fim, teve mesmo que exigir deixassem a pobre coitada frequentar a igreja, porque, para toda aquela gente do povo, a desgraçada, estando com o espírito mau no corpo, devia ser corrida a pedradas.

Endemoniada! Alma danada! — gritavam os valentões de longe, quando a perseguiam na rua.

Devia ir à ermida de Nossa Senhora dos Aflitos; talvez que lá pudesse ela se ver livre do maldito — avançava uma.

Qual! — replicava outra. — Somente Santa Eufêmia de Santiago seria capaz deste milagre.

Nossa Senhora do Pilar é quem poderia obter-lhe esta graça; se ela não o fizesse, nenhum santo do reino do céu o faria — disse outra mulher, convencida.

Mas a pobre coitada não ia a nenhum destes lugares, nem fazia caso de ninguém. Continuava a ir, apenas, todos os dias, à sua igreja e lá ficava, todo o tempo que lhe permitiam. Cercada de olhares hostis e gestos ameaçadores dos que a rodeavam, continuava ela com os olhos fixos na Virgem, como que implorando piedade e trégua àquele ódio ou agressividade gratuita da garotada espalhada, mas sempre alerta pela povoação.

Como a odiavam! Até as mães, para combater os efeitos temidos dos seus maus olhares, enchiam os filhos de amuletos o mais extravagantes.






*


Poucos eram os que a tinham ouvido falar. Somente frases incoerentes pronunciava, às vezes:

Esta criança que a Virgem tem nos braços é o meu filho.

Outras vezes, dizia:

Vou à igreja para ver o meu filhinho. Sou eu com meu lindo filho nos braços — dizia ela, mostrando a imagem, o que mais fazia ainda aquela gente ignorante e supersticiosa acreditar que só mesmo possuída do demônio ousaria ela dizer que era a Virgem Santíssima! Era Satanás, que a fazia blasfemar desta maneira! Daí em diante, mais lapidada foi ela, até que um dia uma pedra, alcançando-lhe a fonte, a derrubou para sempre.

Quando o medico da cidade mais próxima veio fazer a autópsia, reconheceu-a logo.

É a Encarnación — disse simplesmente.

Então a conheceu? — perguntou alguém.

Sim. Fui apresentado a ela em Madri, no atelier de um escultor meu amigo. Ele se dedica a fazer santos. Foi quem fez a imagem da Virgem que vocês têm aí na sua igreja. Com certeza, ela lhe serviu de modelo. Eu a vi lá. Era de uma assombrosa beleza, assim como o filho que perdeu e que também posava para o escultor. O garotinho foi estrangulado pelo próprio pai…



Fonte: “Leitura para Todos”, edição de junho de 1928.

Fizeram-se adaptações textuais.

Imagens: PS/Copilo



 

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