OS DOIS CADÁVERES - Conto Clássico Fúnebre - Autor Anônimo do Séc. XIX
OS DOIS CADÁVERES
(E A INFALIBILIDADE CIENTÍFICA MODERNA)
Autor anônimo do séc. XIX
Num hospital de certa cidade das principais de França morreram, no mesmo dia, dois enfermos que haviam sido recolhidos ali.
Um era justo, douto, ilustre e honesto, e, como se vê, todos estes belos dotes não lhe pouparam a dor de acabar seus dias naquele lugar de caridade, onde nem sempre esta reina soberana.
O outro era criminoso calebérrimo; mais crimes cometera do que Cartouche1; basta dizer que, três meses antes de entrar no hospital, tinha acabado de expiar 30 anos de galés.
Como acontece sempre, os concidadãos do homem douto e ilustre, só depois de saberem de sua morte, se lembraram de dar-lhe honras. E só então se recolheram várias centenas de francos, que, angariados antes, bastariam certamente para impedir que aquele infeliz morresse numa enxerga de hospital.
Não faltou na comissão, improvisadamente constituída, quem fizesse quanto pudesse por aparecer e antes chamar a atenção para si do que honrar o morto.
A seu tempo, foram reclamados os dois cadáveres: um pela comissão que desejava prestar as derradeiras honras ao ilustre morto; outro, pelo corpo científico do hospital, para fazê-lo objeto de estudo cirúrgico e antropológico.
Um manifesto tarjado do preto foi afixado em vários pontos dos muros da cidade. Assim dizia:
“Cidadãos! Já não existe mais entre nós aquele que, durante cinquenta anos de vida, foi padrão da glória do nosso país! Ele morreu pobre, como morrem quase sempre os homens ilustres. Mas a pobreza é titulo de honra para quem, como o nosso concidadão, sacrificou-se todo para o bem dos seus semelhantes.
Hoje, às tantas horas, realizar-se-ão solenes exéquias, e a comissão convida, para assistirem a esse ato de homenagem, todas as pessoas, sem distinção de partido, pois que o homem que desapareceu dentre os vivos foi o mestre de todos, foi o benemérito da humanidade— A comissão.”
E, de fato, as exéquias foram esplêndidas. A elas compareceram todos, tanto o cidadão conspícuo, como o humilde operário, as autoridades civis e os representantes da milícia. O prefeito, as associações, os presidentes das câmaras, do comércio e outras entidades políticas e administrativas sustentavam as fitas de um carro fúnebre mui luxuoso, coberto de inúmeras coroas.
Cinco bandas de música se alternavam na execução de marchas fúnebres.
Grêmios e círculos, com suas bandeiras em luto, seguiram o féretro com imenso povo, que caminhava com gravidade e recolhimento, e cabeça descoberta.
No cemitério, o clero rezou as orações litúrgicas e, depois, o cadáver foi deposto no sepulcro coberto de flores, e a inscrição que se lia na lápide dizia assim:
“Aqui jaz na paz do Senhor X. Y. Z., sábio ilustre, cidadão modelo, glória e honra de sua pátria.”
No dia seguinte, a “Gazeta da Cidade” dava conta de quanto se havia feito por ocasião do lúgubre acontecimento, e anunciava a deliberação tomada pela junta comunal, que votara dez mil francos para erigir no cemitério um monumento digno de conter as cinzas do ilustre morto.
*
Mais adiante, noticiava:
“Ontem, em nosso grande laboratório anatômico, fez-se autópsia do cadáver do grande criminoso, que foi outrora o terror dos nossos campos e saíra há pouco do cárcere. O professor X, lumiar da ciência psiquiátrica, numa brilhante conferência, submeteu a exame, diante de numerosos colegas e estudantes, a cabeça do desgraçado e fez notar nela todos os sinais que caracterizam o degenerado. O crânio alongado, as bossas frontais achatadas, os olhos pequenos, as orelhas grandes e o queixo chato eram sinais evidentíssimos, ainda para os profanos na ciência, que aquele degenerado era delinquente nato e trazia consigo o crime hereditário. E, com efeito, ele descendia de longa estirpe de loucos, histéricos, delinquentes etc.”
*
No mesmo dia em que a “Gazeta” escrevia estas coisas, na sala do mesmo laboratório anatômico, dois serventas discutiam:
—Dize-me, Mardoqueu, durante minha ausência nestes dias, que trapalhada fizeste?
—Que querias que eu fizesse? Fiz o que devia.
—Sabes: eu tenho uma suspeita terrível…
—Pois fala.
—Qual o cadáver que entregaste aos que vieram reclamá-lo?
— O número 31.
—E ao laboratório anatômico?
— O 32.
—Desgraçado! Que fizeste? Não sabias que o 32 era o cadáver do sábio e o 31 o do assassino?
—Mas… podia eu saber disto na tua ausência?
—Fique calado, então, por caridade; caso contrário, estaremos perdidos.
— Quem é que poderá dar pelo engano?
—Silêncio! O que se fez, feito está.
E assim, o assassino teve as honras póstumas e o monumento de luxo; e o homem ilustre e íntegro foi primeiro autopsiado e, depois, atirado à vala comum.
Fonte:”A Pacotilha”/MA, edição de 20 de abril de 1906.
Ilustração: Gustav Coubert (1819 – 1877)
Nota:
1Louis Dominique Garthausen (1693 – 1721), dito Cartouche, foi um criminoso francês, salteador de estradas e líder de uma quadrilha que atuou nos arredores Paris no séc. XVIII.
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