PARKER ADDERSON, FILÓSOFO - Conto Clássico Cruel - Ambrose Biece
PARKER ADDERSON, FILÓSOFO
Ambrose Bierce
(1842 — c.1914)
Tradução de George Creighton Hale
(Séc. XX)
— Prisioneiro, seu nome!
— Vou perdê-lo amanhã de madrugada, não vale a pena escondê-lo. Sou Parker Adderson.
— Seu posto?
— Um tanto modesto; os oficias superiores são demais importantes para se arriscarem na missão perigosa de espião… Sou sargento.
— De que regimento?
— Queira desculpar-me. Minha resposta poderia dar uma ideia das forças que se acham na sua frente. Vim até as suas fileiras para obter e não divulgar informações desta natureza.
— O senhor é muito sagaz.
— Se o general tiver paciência de esperar até amanhã, verá que não sou tal.
— Como sabe que vai morrer amanhã?
— É uma das solenidades tocantes da profissão.
O general pôs de lado essa dignidade própria de oficial superior e de renome até o ponto de sorrir. Mas ninguém em seu poder, ou fora de suas boas graças, teria aceito como feliz augúrio este sinal de aprovação. Não era benévolo nem contagioso. Não se comunicava às pessoas que favorecia: nem ao espião capturado que o tinha provocado, nem ao guarda armado que acompanhara o espião até a tenda, e que ficou um pouco de lado, vigiando o seu prisioneiro à luz amarela da vela. Sorrir não fazia parte do dever deste guerreiro. Estava destacado por outro motivo. A conversa prosseguiu; era em rigor um julgamento fácil de adivinhar: pena capital.
— Confessa, então, que é espião... Que entrou no meu acampamento disfarçado como está, na farda de soldado da Confederação, para obter informações, secretamente, sobre o número e a disposição das tropas?
— Principalmente acerca do número. A disposição delas eu já sabia e é bem triste.
O general sorriu mais uma vez O guarda, com uma noção mais severa de sua responsabilidade, acentuou a austeridade no rosto, e ficou um pouco mais reto do que estava. O capitão, girando o papel cinzento sobre o dedo polegar, examinava o ambiente lentamente. Era muito simples. A tenda era uma dessas comuns, de forma meio retangular, medindo oito pés por dez, iluminada pela luz de uma única vela de sebo, enfiada no cabo de uma baioneta, pregada numa mesa de pinho à qual se sentava o general, agora ocupado em escrever, e aparentemente esquecido de sua visita involuntária. Um velho tapete esfarrapado cobria a terra. Uma velha mala de couro, uma cadeira e um rolo de cobertores era tudo quanto a tenda continha, porque, sob o comando do general Clavering, a simplicidade da Confederação tinha atingido alto desenvolvimento. Pendurado num prego enorme no mastro da tenda havia um sabre comprido, uma pistola e cinto e — o que parecia um absurdo — um facão. Era um costume do general se referir a essa arma pouco militar como sendo uma lembrança dos tempos pacíficos, quando paisano.
Era uma noite tempestuosa. A chuva torrencial caía em cascatas sobre a lona da tenda, fazendo efeito de um tambor surdo. Diante da forte ventania, a estrutura frágil se sacudia, abalava-se e esforçava-se para escapar das estacas que a prendiam.
O general acabou de escrever, dobrou a meia folha de papel e falou com o soldado que vigiava Adderson:
— Pronto, Tassman… leva isto ao ajudante de ordens; depois, volta aqui.
— E o prisioneiro, general? — disse o soldado, fazendo continência e com o olhar interrogativo em direção do infeliz.
— Faça o que mando! — respondeu o oficial, secamente.
O soldado, tomando nota, inclinou-se e saiu da tenda.
General Clavering tornou o seu belo rosto para o espião, contemplou-o fixamente, talvez com piedade, e disse:
— É uma noite horrível, homem.
— Para mim é, general.
— Adivinha o que escrevi?
— Uma coisa que vale a pena ler, com certeza. Talvez seja vaidade minha, mas atrevo-me a supor que o meu nome está ali mencionado.
— Sim; a nota para uma ordem, que vale ser lida às tropas, sobre a sua execução. Também umas instruções para guiar o comissário nos pormenores desse ato.
— Espero, general, que o espetáculo será inteligentemente preparado, porque vou assisti-lo pessoalmente.
— O senhor não tem um último pedido a fazer? Quer que chame um capelão, por exemplo?
— Não vejo como posso ter um descanso mais longo, privando dele os demais.
— Meu Deus, quer dizer que vai morrer só com pilhérias nos lábios? Não sabe que a morte é coisa séria, homem?
— Como saber disso, se nunca morri na minha vida? Tenho ouvido falar que a morte é coisa séria, mas nunca de quem já a experimentou…
O general ficou calado por um momento. Este homem interessava-o, divertia-o, até. Um tipo jamais por ele observado.
— A morte — disse ele — é, ao menos, uma perda dessa felicidade que temos e de oportunidades para mais.
— Uma perda da qual nunca seremos conscientes de ser suportada com calma, e, portanto, esperada sem pressentimento. O general deve ter observado, entre todos os mortos (que por seu caminho é hábito semear), que nenhum mostra sinais de arrependimento.
— Mas se a condição dos mortos não é pesarosa, em se ficando assim, o ato de morrer parece bastante desagradável para quem ainda não perdeu a faculdade de sentir.
— A dor é desagradável, não há dúvida. Nunca a sofro sem um certo desconforto, mas quem vive mais tempo, mais se expõe a estas inconveniências. O que se chama morrer é simplesmente a última dor… Não existe realmente tal coisa “morrer”. Suponhamos, por exemplo, que eu tentasse fugir. O general ergue o revólver tão prudentemente escondido sobre os joelhos, e…
O general corou que nem uma moça honesta, depois riu suavemente, revelando dentes muito brancos. Fez um leve aceno de cabeça e nada disse.
— O general atira e tenho dentro do estômago algo que não engoli. Caio, mas não estou morto. Depois de meia hora de agonia, então sim. Mas a qualquer dado momento, dessa meia hora, eu estaria ou vivo ou morto. Não há período transitório. Quando for fuzilado amanhã cedo, será a mesma coisa. Enquanto consciente, estarei vivo; quando morto, inconsciente. O destino parece ter arranjado o caso perfeito nos meus interesses — à maneira por que eu mesmo lhe teria ordenado. É tão simples — acrescentou ele, sorrindo — que quase não vale a pena ser fuzilado.
Terminadas essas observações, houve um longo silêncio. O general sentado, impassível, olhava o rosto do espião, mas, na aparência, desatentamente. Era como se os seus olhos montassem guarda sobre o prisioneiro, enquanto o pensamento se ocupava de outras coisas.
Em pouco, soltou um largo suspiro e exclamou, quase imperceptível:
— A morte deve ser horrível.
Assim falou este homem da morte.
— Era horrível aos nossos antepassados — disse o espião, gravemente —, porque não tinham inteligência suficiente para separar a ideia do consciente da ideia das forças físicas por que é manifestado. Como uma ordem inferior de inteligência, a do macaco por exemplo, que seria incapaz de imaginar uma casa sem moradores, e vendo uma cabana arruinada, imagina um habitante sofrendo. Para nós, é horrível porque herdamos a tendência de pensar assim, explicando as noções pelas teorias mais extravagantes e fantásticas de um outro mundo — da mesma maneira que os nomes de lugares dão origens a lendas, explicando-os. O comportamento desarrazoado se justifica por filosofias. O general pode enforcar-me, mas ali o seu poder termina... Não me pode condenar ao céu.
O coronel parecia não ter ouvido. A conversa do espião tinha simplesmente levado seus pensamentos a uma direção diferente da em que chegavam as conclusões independentes de sua vontade.
A tempestade tinha passado e alguma coisa do espírito solene da noite infiltrou-se em suas reflexões, dando-lhe uma cor sombria de temor sobrenatural com, talvez, um elemento de presciência.
— Eu é que não queria morrer — disse ele —, ao menos numa noite dessas…
Foi interrompido pela entrada de um oficial do seu estado-maior, capitão Hasterlinck, preboste-marechal. Voltou a si; o olhar distraído desapareceu de sua fisionomia.
— Capitão — disse ele, respondendo à continência do oficial —, este homem é o espião que foi capturado dentro de nossas fileiras com documentos comprometedores. Ele já confessou. Como está o tempo?
— A tempestade já passou e a Lua está resplandecente.
— Bem, leva uma fila de homens e conduze o prisioneiro ao campo para ser fuzilado…
Um grito de angústia escapou dos lábios do espião.
Atirou-se para frente, esticou o pescoço, abriu os olhos e crispou as mãos.
— Meu Deus! — gritou roucamente, quase inarticuladamente. — O general enganou-se por certo: Esquece que não devo morrer até amanhã.
— Não falei nada de amanhã — respondeu o general, friamente. — Isso era presunção sua. Vai morrer agora.
— Mas, general... peço... imploro que se lembre de uma coisa: devo ser enforcado. Levará algum tempo para erigir o cadafalso... duas... uma hora. Todo espião é enforcado. Tenho direito sob a lei militar. Pelo amor dos seus, general, considere como é pouco...
— Capitão, cumpra as minhas ordens.
O oficial puxou da espada e, com os olhos cravados no prisioneiro, apontou silenciosamente para a abertura da tenda. O prisioneiro hesitava. O oficial, então, agarrou-o pelo colarinho e empurrou-o delicadamente para diante. Ao aproximar-se do mastro da tenda, o homem, frenético, deu um pulo e, com agilidade felina, pegou no cabo do facão, arranco-o da bainha, jogou o capitão de lado e, com a fúria de louco, pulou sobre o general, atirando-o ao chão e caindo-lhe em cima. A mesa tinha virado, a vela apagou-se e os dois lutavam cegamente na escuridão. O preboste-marechal precipitou-se em auxílio do seu superior e lançou-se sobre as formas que se debatiam.
Blasfêmias e gritos inarticulados de dor saíram daquela chafurdia de membros e corpos; a tenda caiu sobre eles e, debaixo das dobras embaraçosas, a luta continuava. Cabo Tassman, voltando do seu recado, e vagamente conjecturando a situação, jogou no chão a carabina e pegou na lona movediça, ao acaso, numa tentativa de descobrir os homens em baixo, e o sentinela descarregou a carabina.
O tiro alarmou o acampamento. Os tambores rufavam e as cornetas tocaram reunir, trazendo enxames de homens semivestidos ao luar; outros, vestindo e correndo, entravam em linha ao comando dos oficiais.
Estava bem isso; assim, os homens estavam organizados. Ficaram em posição de sentido, enquanto o estado-maior do general e os homens da sua escolta estabeleceram ordem na confusão. Ergueram a tenda caída e separaram os protagonistas esfalfados e sangrentos daquela estranha contenda.
Esfalfado, deveras, foi um — o capitão —, que estava morto. O cabo do facão projetara-se na goela, e tinha sido tão fortemente empurrado que a sua extremidade ficou encravada debaixo do queixo, e a mão que desferira esse golpe não conseguira remover a arma. Na mão do morto estava a sua espada, agarrada com firmeza tal que desafiava a força dos vivos para soltá-la. A lâmina estava raiada de sangue até o cabo.
Posto em pé, o general caiu para trás sobre o chão, gemendo, e ali desmaiou. Além de pisaduras, tinha dois golpes de espada, um na cocha, outro no ombro.
Quem sofreu menor dano foi o espião. Embora tivesse o braço quebrado, as feridas eram o que poderia ter resultado de um combate com armas naturais.
Estava tonto e mal compreendia o que tinha acontecido.
Apesar do rosto estar inchado pelos golpes e manchado pelas gotas de sangue, mostrava-se, sob os cabelos em desalinho, tão branco, como cadáver.
— Este homem não é louco. — disse o cirurgião que preparava faixas, em resposta a uma pergunta. — Está sofrendo de susto. Quem é e de onde vem?
O cabo Tassman começou a explicar. Era a maior oportunidade de sua vida. Nada foi omitido que pudesse realçar o seu papel nos acontecimentos da noite. Quando acabou de contar, estava pronto a começar outra vez, mas ninguém lhe prestava atenção.
O general já tinha recuperado os sentidos. Ergueu-se sobre um ombro, olhou em redor e, vendo o espião agachado ao lado do fogo do acampamento, escoltado, disse simplesmente:
— Levem este homem para o campo para ser fuzilado.
— O general delira, disse um oficial.
— Ele não delira — disse o ajudante de ordens. —Tenho uma nota que me deu sobre o caso. Tinha dado a mesma ordem a Hasterlink — apontou para o preboste morto — e, por Deus, essa ordem será cumprida.
Dez minutos mais tarde, sargento Parker Adderson do exército federal, filósofo e espirituoso, ajoelhando-se ao luar e implorando incoerentemente pela vida, foi fuzilado por vinte homens.
Enquanto a salva ecoava no ambiente frio de meia-noite, o general Clavering, prostrado, branco e quieto, no ardor do fogo vermelho do acampamento, abria os grandes olhos azuis e, contemplando com agrado os que estavam ao redor, dizia:
— Como tudo é silencioso!
O cirurgião olhou para o ajudante de ordens. Era um olhar grave e significante. Os olhos do paciente fechavam-se vagarosamente, e assim ficava durante uns minutos. Então, com um sorriso de infinita doçura nos lábios, disse fracamente:
— Suponho que isso deve ser a Morte.
E passou ao Além.
Fonte: “Diário Nacional/SP, edição de 9 de junho de 1929.
Comentários
Postar um comentário