UM DUELO - Conto Clássico de Suspense - Théophile Gautier

UM DUELO

Théophile Gautier

(1811 – 1872)

Tradução de autor anônimo do séc. XIX


Por questões amorosas, Paul d’Aspremont e o conde de Altavilla haviam resolvido bater-se em duelo de morte. A arma escolhida era o punhal, deviam ter os olhos vendados e ficariam apenas separados por um lenço de que cada um dos adversários seguraria por uma ponta. Para um duelo tão singular, fora escolhido lugar mais singular ainda: as ruínas de Pompeia, a cidade morta que não desperta nunca, eternamente adormecida sobre o seu fúnebre leito de cinzas.

Chegara o dia aprazado. À entrada do caminho dos túmulos parou uma carruagem e Paul apeou-se, dirigindo-se a pé para o sítio combinado.

Nesse dia, com grande susto dos lagartos, a serenidade habitual de Pompeia foi perturbada pelo rodar daquele carro.

D'Aspremont chegara antes da hora marcada e, ainda, que devesse preocupá-lo outra coisa além da arqueologia, não podia evitar, enquanto andava, dar atenção a mil pequenos detalhes que não teria talvez notado numa situação usual.

Quando os sentidos já não são vigiados pela alma, exercendo-se por sua própria conta, têm às vezes uma singular lucidez. Os condenados à morte, dirigindo-se ao suplício, distinguem uma florzinha nas gretas da calçada, um número no botão de um uniforme, uma falta de ortografia numa tabuleta, ou qualquer outra circunstância pueril que toma para eles uma importância enorme.

Paul d'Aspremont passou em frente da vila de Diomedes, do sepulcro de Mammia, dos hemiciclos funerários, da antiga porta da cidade, das casas e lojas que guarnecem a via Consular, quase sem lhes dar atenção e, contudo, as imagens coloridas e vivas desses monumentos apresentavam-se-lhe ao cérebro com perfeita nitidez. Via tudo, as colunas esfriadas cobertas até meia altura de estuque vermelho ou amarelo, pinturas a fresco, inscrições gravadas nas paredes; reproduzia-se-lhe tão profundamente na memória um anúncio de arrendamento que os seus lábios repetiam maquinalmente as palavras latinas sem lhes ligar sentido algum.

Seria a ideia do combate que o absorvia a tal ponto? De modo algum, nem pensava em tal… O espírito estava noutra parte…

Passados alguns momentos, apareceu o conde de Altavilla. Trazia na mão uma caixa de pistolas e, debaixo do braço, duas espadas.

Para que são essas pistolas e essas espadas, conde? — disse Paul, vendo aquela panóplia. — Não tínhamos decidido um outro modo de combate?

Sem dúvida. Mas pensei que talvez mudasse de parecer; nunca ninguém se bateu de semelhante modo.

Não acreditava que as propostas de Aspremont fossem sérias; não vira nelas mais que uma zombaria mefistofélica, um sarcasmo infernal.

Aqui estão os punhais que devem servir-nos, acrescentou Paul. — São perfeitamente semelhantes. Aqui estão os lenços para vendarmos os olhos. Veja se são espessos para o olhar não poder atravessá-los.

O conde fez sinal de aquiescência.

Não temos testemunhas — disse ainda Paul —, e um de nós não deve sair vivo deste subterrâneo. Escrevamos ambos um bilhete atestando a lealdade do combate. O vencedor colocá-lo-á no peito do morto.

Boa precaução! — replicou com um sorriso Altavilla, traçando algumas linhas numa folha da carteira de Paul, que preencheu a mesma formalidade.

Em seguida, os adversários despiram os casacos, vendaram os olhos, pegaram nos punhais e seguraram cada um na ponta de um lenço, terrível traço de união entre os seus ódios.

Está pronto? — perguntou d'Asnremont ao conde de Altavilla.

Estou pronto — disse este com voz perfeitamente serena.

Os dois combatentes brandiram os punhais e o lenço que os unia naquelas densas trevas esticou-se fortemente.

Por um instintivo movimento, Paul e o conde haviam recuado o corpo, única parada possível neste estranho duelo. À primeira tentativa não atingiram senão o vácuo.

Essa luta obscura, em que cada um pressentia a morte sem a ver chegar, tinha um caráter horrível.

Terríveis e silenciosos, os dois adversários recuavam, voltavam, saltavam, encontravam-se algumas vezes, falhando ou excedendo o alvo. Só se lhes ouviam os passos e as respirações ofegantes.

De uma feita, Altavilla sentiu que a ponta do punhal encontrava qualquer coisa. Parou, julgando ter morto o rival, e esperou a queda do corpo. Tinha apenas tocado na parede.

Com efeito, julgava tê-lo trespassado de lado a lado! — disse, tornando a pôr-se era guarda.

Não fale — disse Paul. — A sua voz guiar-me-á.

E o combate recomeçou.

De repente, os dois adversários sentiram-se desligados.

Basta! — gritou Altavilla. —Estamos desligados!

Que importa! Continuemos — disse Paul.

Estabeleceu-se um profundo silêncio.

Como inimigos leais, nem o conde nem d'Aspremont queriam aproveitar das indicações dadas pela troca de palavras. Deram alguns passos para se desencaminharem e começaram a procurar-se nas trevas.

Com o pé, d'Aspremont tirou do seu lugar uma pedra. Este leve ruído revelou ao conde, que agitava o punhal ao acaso, em que sentido deveria dirigir-se. Então Altavilla, dando um salto de tigre, encontrou o punhal de Paul d'Aspremont.

Este tocou na ponta da arma e sentiu-a molhada... Passos incertos ressoavam pesadamente sobre as lages; ouviu-se um suspiro e o baque de um corpo no chão.

Tomado de horror, Paul ergueu a venda que lhe cobria os olhos, e viu o conde Altavilla pálido, imóvel, estendido de costas, tendo do lado do coração uma grande mancha vermelha na camisa.

Estava morto!

Paul colocou ao peito de Alavilla o bilhete que atestava a lealdade do duelo e saiu da cidade morta mais pálido ao ar do dia que o criminoso que Prud'hon faz perseguir pelas Erymnies vingadoras, à claridade do luar.


Fonte: “Pacotilha”/MA, edição de 19 de dezembro de 1903.

Imagem: P.S./Copilot.


 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O GATO PRETO - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

BERENICE - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe