A PROVA DOS ALFINETES - Conto Clássico Trágico - F. Nery
A PROVA DOS ALFINETES
F. Nery
(Séc. XIX)
Tradução de autor desconhecido do séc. XIX
O alfinete, por toda parte, é apenas um acessório de toalete; em alguns distritos de França, contudo, tem muito maior importância.
Em certos departamentos, o alfinete, que serviu ao vestuário de uma noiva, é talismã que possui a propriedade de atrair os pretendentes; e quando alguma camponesa de Vendée, ou de outra terra circunvizinhança, investe a toalete nupcial, as jovens dos arredores correm todas a trazer um alfinete à noiva. Os alfinetes são distribuídos pelas diversas peças do vestuário, mas algumas vezes são tantos que não é possível aproveitá-los e, então, a noiva guarda-os num agulheiro, que prende à cintura.
À noite, efetua-se a entrega dos alfinetes e cada jovem guarda o seu com o respeito e veneração que os verdadeiros católicos consagram às relíquias dos santos.
Nalguns sítios da Bretanha, o alfinete é como o protetor da castidade, e uma testemunha muda, que há de aprovar ou condenar o proceder daquele que o traz.
Como curiosidade, convém mencionar a maneira como se verifica este singular processo. Nas aldeias, onde predomina esta crença, a noiva é conduzida a uma fonte e atira à água um dos seus alfinetes. Se o alfinete flutua, fica provada a virgindade da jovem; se, pelo contrário, vai por água abaixo, corresponde isto a uma acusação, que para aquela gente não tem justificação possível. É o juízo de Deus, à semelhança do que se praticava na Idade Média.
Os povos das terras onde existem estes preconceitos não usam alfinetes de metal, principalmente nas ocasiões solenes em que são exibidas provas públicas a respeito de castidade. Em lugar de alfinetes, empregam espinhos pretos, compridos e leves, que vão arrancar aos valados, para com mais facilidade a inocência poder triunfar.
Há anos, sucedeu o caso que vamos narrar.
Numa manhã de dezembro, amena como de primavera, um rapaz bretão, montado num soberbo cavalo, ia alegre e prazenteiro na direção de Morlaix, levando de garupa uma formosa moça de 20 anos.
Eram dois amantes que iam, para a prova do alfinete, à fonte de S. Donato.
Ele chamava-se Jean e era filho de um abastado proprietário, pelo que poderia, com feliz êxito, pretender a mão das mais ilustres herdeiras dos arredores; mas tanto o enfeitiçara a beleza de Marguerite, filha de um pobre lavrador, que se resolvera casar com ela, tendo já aprazado o dia da boda.
Depois de terem percorrido grande distância por veredas e atalhos, deixando após de si muitas aldeias e casas, chegaram a uma charneca que, pelo lado sul, parecia fechada pela sombria serra de Arrés, e, depois, embrenharam-se nas misteriosas florestas de Fenisterre.
Aqui, uma espécie de terror se apoderou do rapaz, e a camponesa sentia de quando em quando arrepios de frio, o que tudo indicava que a fatal experiência a ambos atemorizava.
Marguerite caminhava para a fonte fatídica com a tranquilidade da inocência e Jean confiava tanto na pureza da sua futura noiva que nenhuma dúvida tinha a respeito do bom resultado da experiência.
O vento do oeste soprava então rijo por entre a ramada despida dos arvoredos e produzia certo sibilar, certo murmúrio sinistro, que se repercutia nessa floresta secular, onde a tradição coloca mil gênios malfazejos. E os noivos julgaram ouvir, por entre o bramir do vento, os ecos longínquos das cantigas e danças infernais.
Chegados à fonte misteriosa, que era um rebentão d’água, saído das fendas de um rochedo coberto de musgo, e que vinha cair numa bacia natural, apearam-se ambos.
Marguerite fez uma breve oração e, dando a mão esquerda a seu noivo, caminhou com ele para a rústica bacia e, despregando o lenço de cassa que trazia ao pescoço, atirou comovida e satisfeita com o alfinete à água; mas — oh, surpresa! — o, alfinete, em lugar de flutuar, foi por água abaixo!
Na tarde desse dia, Jean conduziu Marguerite à porta da casa paterna. A pobre moça desfazia-se em choro, e nem uma só palavra dissera depois da terrível prova do alfinete. João despediu-se secamente e, montando a cavalo, desapareceu em breves instantes, exclamando:
—Pobre moça, a quem eu tanto amava! Deixo-te para sempre!…
Marguerite não teve forças para entrar na casa de seus pais e contar que o destino a declarava criminosa, apesar de inocente e pura. Temeu os motejos e sarcasmos das vizinhas e não podia resistir ao abandono do homem a quem dera o seu coração. E em lugar de bater á porta, pôs-se a caminho, com as ideias tresloucadas, e assim andou a noite inteira.
No dia seguinte, apareceu um cadáver num lago, a grande distância da casa da fiandeiro. A infeliz moça tinha ali posto termo à existência, já que não podia resistir à injusta vergonha a que a condenava a sentença do destino.
Marguerite, em lugar de lançar à água um dos espinhos pretos, usados em tais cerimônias, tinha atirado com um alfinete de prata, que o noivo lhe oferecera dois dias antes. Convém declarar isto em defesa do tribunal aquático, antes que alguém o acuse de severo e desumano.
Fonte: Universo Illustrado/PT, edição de junho de 1877.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
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