O KHAN E O SEU FILHO - Conto Clássico Cruel - Máximo Gorki

O KHAN E O SEU FILHO

Máximo Gorki

(1868 – 1936)

Tradução de Ad. Paulovich

(Séc. XX)


— …Naquele tempo, reinava em Crimeia o Khan1 Massoloima Awab, que tinha um filho chamado Tolaik Algalla…

Assim foi como começou a sua lenda o pobre e cego mendigo tártaro, apoiado no pardo tronco de uma árvore, lenda antiga, rica em recordações, como as que costumam contar naquela península. Sobre as brancas pedras, últimos vestigos do palácio do Khan, que os séculos destruíram, um grupo de tártaros em túnicas de clara cor, com gorros bordados a ouro, achavam-se sentados em torno do narrador. Era pela tarde e o Sol descia lentamente sobre o mar. Os seus purpúreos raios, atravessando a verde folhagem que rodeava as ruínas, salpicavam de faíscas de ouro as pedras cobertas de musgo e atapetadas pela hera. A brisa murmurava docemente nas folhas dos velhos plátanos e a voz do mendigo cego era ao mesmo tempo débil e trêmula.

O seu rosto parecia de pedra e as pupilas dos seus mortos olhos refletiam. A sua serena imobilidade quadrava perfeitamente ao busto marmóreo. As palavras com que narrava acontecimentos, aprendidos sem duvida de cor, cabiam como pérolas, umas sobre as outras, sobre o ávido auditório, restituindo o panorama comovedor dos passados tempos.

— O Khan era velho — dizia o cego —, porém tinha no seu harém muitas mulheres, mulheres que o amavam por causa do seu vigor e das suas carícias impregnadas de doçura e de fogo. As mulheres amam sempre o que lhes prodigue doces carícias, ainda que tenha o cabelo branco e a pele enrugada. A beleza reside na força e na fidalguia, não na pureza da pele e no carmim das faces.

“Todas amavam o Khan, e ele correspondia a todas, mas professava singular afeto a uma prisioneira, filha de um cossaco das estapes do Dnieper, à qual dedicava as suas carícias com mais gosto e vontade que às outras do seu harém, do seu grande harém, onde havia trezentas mulheres de diferentes países, todas elas lindas como as flores da primavera, todas elas afagadas. Por ordem do Khan, preparavam-lhes uma enorme quantidade de manjares delicados, e permitiam-lhes toda a classe de instrumentos e que se entregassem ao voluptuoso prazer da dança.

Porém, a filha do cossaco, a sua predileta, levava-a com frequência a uma torre, onde, da grande corrente de janelas, que dominava a extensa superfície do mar, podia recrear a vista, na contemplação de pitorescas montanhas e de risonhos vales. Naquela torre, a sedutora filha do cossaco via-se esplendidamente servida, rodeada de cuidados esquisitos, cheia de todas as doçuras imagináveis, alimentada com todo apuro e primor; e tinha à sua disposição e ao seu capricho ricos tecidos, bordados de ouro, pedras preciosos de todas as cores, aves raras e exóticas, os deleites da música e as ternas e delicadas carícias do apaixonado Khan.

Este passava os dias inteiros na torre com a jovem, descansando dos afazeres fatigantes da vida, e certo, por outro lado, de que seu filho Agalla não comprometeria a dignidade do canato. Aquele filho, que corria como famélico lobo através das estapes russas, voltava delas sempre carregado de ricos despojos, de mulheres formosas e de gloriosos lauréis, deixando atrás de si, como testemunho do seu valor e da sua ferocidade, cadáveres ensanguentados e povos inteiros reduzidos à miséria.

Uma vez que Agalla voltara de uma daquelas excursões, prepararam-se em sua honra grandes festas. Todos os príncipes tártaros foram convidados a assistirem, e celebraram-se agradáveis jogos e preciosos festivais. Para mostrar habilidade no manejo das armas, dispararam-se setas aos olhos dos prisioneiros, e bebeu-se muito à gloria do bravo Agalla, terror dos inimigos e sustentáculo do canato. O velho Khan estava orgulhoso de seu filho e gozava ao ver nele tanta valentia, e por saber que quando abandonasse este mundo, deixaria o seu povo em seguras mãos.

Como isto o satisfizesse tanto e constituísse para ele uma grande honra, quis demonstrar a seu filho a grandeza do amor que lhe tinha; e, levantando a taça em meio do festim, e em presença de todos os príncipes e de todos os notáveis do país, disse-lhe:

—É um bom filho, Agalla. Glória a Alá e que o nome do seu Profeta seja bendito!

As vozes dos ali reunidos, formando imenso coro, glorificaram o nome do Profeta.

O Khan continuou:

—Alá é grande. Em minha vida, tem feito renascer a minha juventude na pessoa de meu valente filho, e os meus olhos de ancião veem que, quando o Sol deixe de brilhar para mim e quando os vermes roam o meu coração, continuarei vivendo em meu filho... Alá é grande e Maomé é seu profeta!... Tenho um bom filho, cuja mão é firme, cujo coração é valente, cujo talento é claro. Agalla! Que dom desejas receber de teu pai? Dize e terás o que queiras.

Ainda não se tinha amortecido por completo o eco da voz do Khan, quando Tolaik Agalla, com os olhos fosforescentes como o mar em plena noite, e brilhantes como os da águia das montanhas, se levantou e disse:

—Pai e soberano. Dai-me a prisioneira russa.

Khan guardou silêncio um instante, um instante apenas, o que lhe foi necessário para afogar o estremecimento do seu coração, e respondeu com voz alta e firme:

—Quando termine o festim, será tua.

O semblante de Agalla inflamou-se, os seus olhos de águia brilharam com alegria imensa e, erguendo-se quanto pôde, disse a seu pai, o respeitável Khan:

—Conheço o valor do presente que me fizeste, pai e soberano. Conheço-o bem. Considera-me teu escravo. Toma o meu sangue gota a gota, minuto a minuto. Estou pronto a morrer vinte vezes por ti.

—Nada quero — disse o Khan.

E a sua branca cabeça, coroada pela glória de tantos anos de batalhar com fortuna, inclinou-se sobre o peito.


*


Terminado o festim, pai e filho silenciosamente, um ao lado do outro, saíram do palácio e encaminharam-se para o harém.

A noite estava sombria e, através das nuvens que cobriam o firmamento à maneira de largo tapete, nem se via a Lua, nem se descobria uma estrela.

O pai e o filho caminharam durante largo tempo, silenciosos e envoltos na mais lúgubre escuridão. De repente, o Khan Awab disse:

— A minha vida vai se extinguindo dia a dia. O meu coração bate cada vez com menos força e o fogo do meu peito diminui gradualmente. As carícias apaixonadas da prisioneira russa são o único calor, o único incentivo da minha vida. Dize, Tolaik, dize-me com verdade: é-te absolutamente indispensável essa mulher? Leva cem das minhas mulheres, leva-as todas, se te apetece, mas deixa-me essa…

Tolaik Agalla calou-se e exalou um suspiro.

—Que tempo me fica para viver? Talvez sejam contados os dias que hei de permanecer sobre a terra, e o último prazer, o derradeiro gozo da minha vida, o constitui essa mulher, essa mulher que me conhece, que me ama e que se compraz em alegrar o crepúsculo triste da minha existência. Quem, faltando-me ela, me amará de futuro? Que outra dará o seu amor a este pobre velho? De todas as minhas mulheres, nenhuma, absolutamente nenhuma, Agalla!

Agalla continuava guardando silêncio.

—Como poderei viver, sabendo que tu a abraças? Que ela reparte contigo o seu leito? Ante a mulher, não há pai nem filho, Agalla. Ante a mulher, desaparecem as barreiras do sangue. Ante a mulher, não somos mais que homens, meu filho. Amargos, muito amargos vão ser os meus últimos dias. Mais valia que se tivessem aberto todas as minhas antigas feridas, fazendo uma chaga do meu corpo e que se tivessem inflamado. Que de todas elas brotasse o sangue, sim, mais valeria, meu filho, que sobreviver a esta noite tão horrível para mim.

Agalla continuou guardando silêncio.

Chegaram às portas do harém, detiveram-se, e ali, sem dizerem palavra e com a cabeça inclinada sobre o peito, permaneceram ambos por muito tempo pensativos.

À sua roda giravam as densas nuvens da noite. Sobre as suas cabeças, as nuvens cruzavam o largo espaço, e aos seus ouvidos trazia o vento, ao sacudir as folhas das árvores, o eco triste de lúgubres canções.

—Pai, há já muito tempo que a amo — disse Agalla em voz muito baixa.

—Eu sei. Mas ela não te ama, respondeu o Khan.

—O meu coração despedaça-se quando penso nela.

—E qual não é a dor do meu coração, neste momento?

De novo, ambos se calaram. Agalla suspirou.

—É evidente que Mulah, o sábio sacerdote, disse a verdade. A mulher é sempre prejudicial para o homem. Quando é bela, desperta em nós o desejo e lança seu marido no suplício dos ciúmes. Quando é feia, o marido sofre de inveja ao contemplar a formosura de outras mulheres, e quando não é bela nem feia, o homem embeleza-a com a sua ilusão, e ao desaparecer esta e considerar que tem vivido em torpe engano, sofre a decepção e sofre a falta de formosura em sua mulher.

Assim disse, por fim, Agalla.

—A sabedoria não é um remédio para as dores da alma — murmurou o Khan.

—Pois tenhamos piedade um do outro, pai.

O Khan levantou a cabeça e olhou tristemente o filho.

—Matemo-la! — disse este.

—Queres mais a ti do que a ela e a mim — respondeu pausadamente o Khan com ar pensativo e acrescentando: — No entanto, também a amas.

Calaram-se de novo.

— Sim, sim. Também tu a amas.

E a dor converteu o Khan em uma criança.

—Nesse caso, matá-la-emos?

—Não quero dá-la. É-me impossível! — exclamou o velho.

—E eu já não posso sofrer mais. Arranca-me o coração. Dá-me-la.

O Khan guardou silêncio.

—Ou arrojemo-la do alto da montanha ao mar — repetiu o Khan, como um eco da voz de seu filho.


*


Entraram juntos no harém e na câmara em que ela dormia, estendida sobre um magnífico tapete. Detiveram-se ante ela e contemplaram-na durante muito tempo. Grossas lágrimas corriam pelas faces do velho Khan, lágrimas que, ao resvalarem pela sua prateada barba, brilhavam como pérolas. Com os olhos inflamados, trêmulo de paixão contida, e rangendo com força os dentes, arrancou do seu sonho a filha do cossaco. Esta despertou e, no seu rosto, doce e rosado como a aurora, os seus olhos entreabriram-se como dois lírios azuis. Não reparou em Algalla, e abriu ao Khan os seus braços, apresentou-lhe os seus lábios vermelhos como a flor da romãzeira, e disse-lhe com acento dulcificante:

—Abraça-me, velha águia!

—Prepara-te para nos acompanhar — disse-lhe em voz baixa o Khan.

Notou, então, a presença de Algalla. Viu umedecidos em pranto os olhos da sua águia e, perspicaz e inteligente como era, compreendeu tudo.

—Vou —disse. — Vou. Nem de um, nem de outro. Já assim o decidiram, não é verdade? Essa resolução é a única em homens de coração forte. Vou já!

E silenciosamente dirigiram-se os três em direção ao mar, por caminhos estreitos e apertados. O vento soprava com fúria. A jovem era delicada e fatigou-se depressa. Porém, altiva e valente, não exalou uma queixa. Quando o filho do Khan notou que ela ia ficando para trás, disse-lhe:

—Tens medo?

Os olhos da prisioneira lançaram relâmpagos. Olhou Algalla desdenhosamente e, sem dignar-se proferir palavra, mostrou-lhe os pés ensanguentados.

—Levar-te-ei — disse Algalla, estendendo os braços.

Ela deitou os seus ao pescoço da sua velha águia. O Khan levantou-a nos seus braços como se fosse uma pena e continuou caminhando, enquanto ela ia apartando com graciosa agilidade os ramos que poderiam ferir o Khan nos olhos ou arranhar o seu rosto. Tolaik, que os seguia, ao observar aquilo, disse a seu pai:

—Deixa-me ir à frente, porque sinto desejos de te atravessar com o meu punhal.

—Passa, pois, e Alá castigar-te-á ou perdoar-te-á estes desejos, conforme seja a sua vontade. Eu, teu pai, perdoo-te, porque sei o que é o amor.

Chegaram ao promontório. Aos seus pés, estendia-se o mar, profundo, negro, sem limites. As ondas entoavam fúnebres cânticos ao desfazerem-se em espumas contra as rochas. A impressão que aquele quadro produzia infiltrava horror no coração e gelo nas entranhas.

—Adeus — disse o Khan, abraçando a jovem.

—Adeus — disse Algalla, inclinando-se ante ela.

A prisioneira contemplou, por um instante, o abismo em que cantavam lugubremente as ondas e recuou, cruzando as mãos sobre o peito.

—Atirem-me ao fundo — disse.

Algalla estendeu os seus braços para ela e exalou fundo suspiro. Mas o Khan, o velho Khan, agarrou-a, abraçou-a, estreitou-a fortemente contra o seu coração, e, depois, levantando-a acima de sua cabeça, lançou-a do alto das rochas às profundidades do abismo. As ondas rugiram, num rugir tão selvagem e tão lúgubre que nenhum deles percebeu o ruído do corpo ao cair na água.

Nem um grito, nem um lamento, nem um suspiro sequer. O Khan inclinou-se sobre as rochas e olhou silenciosamente para o horizonte. O mar confundia-se com as nuvens. As ondas chocavam-se entre si, ao impulso poderoso das rajadas que sacudiam a prateada barba do ancião.

Tolaik permanecia em pé, junto dele, ocultando entre as suas mãos o rosto e conservando silêncio e a imobilidade de uma estátua.


*



E assim passaram duas horas; e pelos espaços cruzaram-se as nuvens tão profunda e sombrias, como os pensamentos do velho Khan, estendido, de boca para baixo, sobre aquela rocha que dominava o oceano.

—Vamos, pai— atreveu-se a dizer Tolaik.

—Espera — murmurou o Khan, que parecia estar à escuta de alguma coisa.

Passou outro enorme espaço de tempo.

As ondas continuavam rugindo e o vento zunia nas junturas das rochas e nos troncos das árvores.

—Vamos, pai!

—Espera!

Várias vezes repetiu Tolaik Algalla estas duas palavras:

— Vamos, pai! Vamos pai!

O Khan continuava imóvel naquele sítio em que acabava de perder a felicidade única da sua vida.

Por fim, ergueu-se com altivez e exclamou:

— Vamos!

Um e outro empreenderam o caminho que tinham seguido até ali, porém a poucos passos, o Khan deteve-se, dizendo:

—Mas para que hei de andar? Aonde ir agora, Tolaik? Como viver, de futuro, se ela constituía a minha vida inteira? Sou velho. Já não tornarei a ser amado. E o homem que não é amado não tem razão de existir sobre a terra.

—Pai, tens glórias, tens riquezas…

—Por um dos seus beijos, daria tudo: as riquezas! A gloria!... Não há nada vivente no mundo fora do amor de uma mulher. O homem que carece desse amor não tem vida. É um mendigo e arrasta uma existência triste e miserável!... Adeus, meu filho, que a bendição de Alá caia sobre a tua cabeça, e que ela te acompanhe todos os dias e todas as noites de tua vida!

—Pai! — disse Tolaik. — Pai!

E não lhe disse mais nada, porque mais se não pode dizer a um homem a quem a morte sorri.

—Deixa-me.

—Alá!…

—Já o sabe.

E largando a correr, o Khan chegou à borda da rocha e precipitou-se no abismo. Algalla não o deteve, nem teria tido tempo para isso.

Nada se ouviu.

Nem um grito, nem um lamento, nem um suspiro, nem o ruído do corpo ao cair n’água.

Unicamente as ondas continuavam rugindo com acento lúgubre e o vento continuava entoando canções selvagens.

Tolaik Algalla permaneceu um grande bocado olhando o mar e, depois, disse em voz alta:

—Ó Alá! Dá-me um coração tão grande e tão firme como o do meu pai!

E afastou-se daquele sítio, envolto nas sombras profundíssimas da noite.”


…E assim morreu o Khan Massolaima Awab, e assim chegou Tolaik Agalla a ser Khan da Crimeia!… —Suspirou o velho!


Fonte: "Primeira"/RJ, edição de 10 de setembro de 1927.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

Ilustração: Jan Mateiko (1838 – 1893).


Nota:

1Governador ou chefe (N. do E. original.)

 

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