A PORTA - Conto Clássico de Horror - Jules Lermina
A PORTA
Jules Lermina
(1839 – 1925)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
Depois de um jantar de amigos, destinado a festejar não sei que aniversário, saiu do restaurante com a cabeça perturbada, um tanto embriagado, talvez. Não tinha o vício da bebida, mas, nervoso e febril, embebedava-se ainda mais com o ruído do que com o vinho.
Viu passar um táxi vazio. Fez sinal ao motorista, disse-lhe onde morava e deixou-se levar, muito senhor de si, cantando baixinho uma melopeia que ia improvisando. Chegou a casa, pagou a corrida, tocou, disse o nome ao porteiro, subiu a escada, tirou a chave da algibeira, meteu-a na fechadura, abriu a porta, tornou a fechá-la, deu volta à chave e, alumiado pela lamparina simples torcida mergulhada em azeite — posta, como de costume, ao pé da cama —, despiu-se e deitou-se.
Fechou os olhos: sossego completo. No fundo do ouvido, sentia, contudo, um som ligeiro, como o de um chocalho no meio dos campos; um som ao mesmo tempo cristalino e velado, que vibrava desde a origem do nariz até o tímpano, e a que se mesclava um ruído abafado, análogo ao do agiosidério1, e que é como se sabe, o sino de ferro e madeira, cujo uso é permitido pelos muçulmanos aos cristãos no Oriente.
As duas impressões acústicas, como duas cordas que se aproximam, misturaram depois o seu eco num frêmito, mais áspero que sonoro, que adelgaçava em silvo prolongado e corria direto de uma à outra fonte. A orquestra ia toda rompendo, a pouco e pouco; as notas de um oboé, mal distintas ainda, passavam através do agudo trombetear dum cornetim rachado, e, no entanto, acima do tema principal, crepitava, à laia de acompanhamento, o batucar frouxo e precipitado de um martelo, cujo ferro estava como que embrulhado em pano umedecido.
O travesseiro, animado de um estranho movimento de balouço, descia e subia debaixo da cabeça; e, ao descer, cavava-se em funil, em cujo fundo estava uma bomba, que aspirava o cérebro, para depois o lançar de si com violência.
O homem abriu os olhos, porque a impressão da luz imporia silêncio àquela sinfonia de febre, e forçaria o travesseiro à imobilidade, coisa aliás inerte.
A luz da lamparina, atuada por alguma corrente de ar, vacilava, saltava num movimento alternado, que ele seguia com atenção, mas lamentando-lhe a irregularidade e o não poder contar-lhe as modificações.
De repente, viu no tapete uma coisa negra, grande, com enormes antenas desiguais, abertas em leque. Sentiu uma opressão no peito, porque tinha repugnância a animais semelhantes.
Logo reconheceu, porém, que, por ter o braço pendente para fora da cama, era a sombra da mão aberta, com os dedos afastados uns dos outros, que se projetava no chão.
Conservava-se de costas, os olhos sempre abertos, sentindo apenas um raspar de faca de madeira em volta das abóbadas superciliares, enquanto sobre a esclerótica corria uma dobra, forrando a pálpebra e abaixando-se, qual membrana nictitante de pássaros.
Estendido, olhava para diante de si, e via faíscas compridas e delgadas, que se afastavam aumentando, para logo se aproximarem de novo, com uma agudeza de ponta. Debaixo do céu da boca, mão invisível tinha-lhe posto uma rolha, cuja úmida periferia estava aderente desde os dentes até a úvula.
*
De repente, viu diante de si um movimento demorado, contínuo. Era a porta, que, suave, se abria silenciosamente, rodando sobre os gonzos de veludo.
Sim, abria-se, embora ele, momentos antes, tivesse dado volta à chave. Abria-se como a asa que se estende por uma rotação regular e ampla, aumentando o ângulo de grau em grau. Nenhuma força humana — não havia dúvida — poderia fazer parar aquele deslizar lento, que descobria um buraco alto, estreito, alargando, sem aumentar de altura, e desvendando, negra e deserta, uma profundidade cor de tinta.
Olhava, retraindo os ombros, dobrando o pescoço, estendendo o queixo e entreabrindo os lábios que entumesciam.
Do buraco tenebroso, aberto agora a toda a largura, não saía nada: um perfil, uma linha, um ponto sequer; aquele nada era um tal abismo que o homem sabia que, dardejando por ali o olhar, nunca — nunca! — poderia chegar-lhe ao fundo… o fundo de coisa nenhuma!
Todavia, esperou. Uma porta — principalmente uma porta que foi fechada à chave — não se abre senão para dar passagem a alguma coisa. Esta “coisa”, fosse qual fosse, seria lógica e mitigaria a indizível angústia que o homem experimentava, de mãos crispadas, com securas de pergaminho encarquilhado.
Esperava e nada ia aliviar aquela ansiedade dolorosa. A lâmpada continuava a oscilar, mas com mais frouxidão, gnomo rendido pela fadiga e prestes a cair por terra.
Resolveu-se, então.
Era mister impedir que viesse aquela “coisa” que não vinha. Voltou-se com lentidões de réptil pesado e levantou-se. Sentindo o tapete debaixo dos pés, cujas plantas estavam macias como o algodão, caminhou para a frente, ansioso por acabar com aquilo por uma vez, e lançou-se contra a porta, de olhos fechados. Puxou-a, empurrou-a, encostou-a ao encaixe, segurando-a com uma das mãos, contra qualquer pressão que viesse de fora — por que não viria? —, e fazendo com a outra um movimento enérgico de torção. A lingueta deu um estalido. Pronto! Encostou-se ao alizar, triunfante. Voltou para a cama. A cabeça recaiu no travesseiro. Dormir… Tinha a pele seca, com formigueiros internos e ardentes.
Continuava-lhe dentro do cérebro a sinfonia infernal, acompanhada por uns rodopios de entontecer. Era uma onda larga, um revolutear ruidoso, uma dança de folhas secas. Atarrachara-se-lhe ao crânio um chapéu de ferro, e apertava-lhe como um aro de pontas de aço. Os globos dos olhos aumentavam de volume, quais bolas de borracha a incharem por efeito do sopro contínuo. Não tardaria decerto que saltassem das cavidades, demasiado restritas para contê-los! Mas o sopro parou, sem dúvida para se exercer em sentido contrário, porque os globos diminuíram de tamanho a tal ponto, que, se diminuíssem mais, o homem deixaria de ter olhos. Pois tinha-os, tinha-os ainda para poder ver a porta, a porta infame que ele fechara tão bem pela segunda vez, e vê-la girar de novo, e lenta e lentamente abrir-se, como tampa de sepultura, e lenta, lentamente, o retângulo negro e comprido a aparecer mais largo, cada vez mais largo, com as suas medonhas profundidades negras.
O homem torceu as mãos, da garganta saiu-lhe um ruído de estertor. Ao mesmo tempo, a lamparina, já sem azeite, apagou-se.
De manhã encontram-no morto, congestionado.
A chave tinha dado volta de ambas as vezes, mas o ferrolho não entrara nunca na chapa-testa2.
Fonte: “Carioca”/RJ, edição de 22 de abril de 1939.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Notas:
1Literalmente, ferro sagrado (do grego: ἅγιος, santo e σίδηρος, ferro).
2Parte acessória da fechadura, situada no umbral, na qual o ferrolho, ao impulso da chave, se encaixa para manter a porta trancada.

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