HISTÓRIA VERDADEIRA - Conto Clássico de Crime - Liev Tolstói
HISTÓRIA VERDADEIRA
Liev Tolstói
(1828 – 1910)
Versão em português de autor anônimo do séc. XIX, a partir da tradução francesa de Ely Halpérine-Kaminsky (1858 – 1936)
Deus vê a verdade, mas não a revela prontamente.
Na cidade de Vladimir vivia um jovem mercador de nome Aksénov, dono de duas lojas e uma casa.
Aksénov, de um exterior agradável, era louro, amigo da vida alegre e das cantigas. Em sua juventude, ele bebia muito, e, quando se embriagava, fazia barulho; mas, depois de casado, raras vezes bebia.
Num dia de verão, Aksénov resolveu ir à feira de Nijni-Novogarod; e, como fosse despedir-se dos seus, sua mulher lhe disse:
—Ivan Dimitrivitch, não vás mais hoje; eu tenho um mal pressentimento…
Aksénov pôs-se a rir, e disse:
—Tu tens medo de meter-me eu na pândega na feira.
—Não sei mesmo ao certo — diz a mulher — o que me faz medo: eu tive um mau sonho: tu vinhas da cidade e tiraste o chapéu, e, de repente, eu vi tua cabeça toda branca.
Aksénov pôs-se a rir com mais vontade.
—Muito bem! — diz ele. —É é um bom sinal. Vai-te, eu farei bons negócios e te trarei belos presentes!
Aksénov despediu-se e partiu.
E, ao meio da viagem, encontrou ele um mercador de seu conhecimento, e juntos foram a uma estalagem. Depois de tornar chá, foram-se deitar em quartos contíguos.
Aksénov não era muito dorminhoco e despertou-se à meia-noite; e, para viajar mais a seu gosto e com a fresca, acordou o postilhão e deu-lhe ordem de atrelar.
Entrou, depois, na cozinha às escuras, pagou ao patrão e seguiu.
Tendo percorrido grande trecho do caminho, parou para deixar comerem os cavalos, e para se descansar aí em outro hotel; e, à hora do jantar deixou-o, e fez preparar o samovar.
Tomou uma guitarra e pôs-se a tocar. De repente, chega uma aldeã com seu pandeiro; um funcionário público aparece com dois soldados, aproxima-se de Aksénov e lhe pergunta quem era e donde vinha.
Aksénov o satisfaz e convida-o a tomar chá consigo; este, porém, continua a dirigir-lhe perguntas:
—Onde dormiste a noite passada? Por que deixaste a estalagem tão precipitadamente?
Aksénov, surpreendido por esse interrogatório, contou o que lhe tinha sucedido. E acrescentou:
—Por que me fazeis tantas perguntas? Eu não sou ladrão, nem facínora: viajo a negócios, e ninguém tem o direito de interrogar-me.
Então o comissário chamou os soldados e disse:
—Eu sou comissário de polícia e, se te interrogo, é porque o mercador, com quem dormiste à noite passada, foi assassinado. Mostra teus documentos… E vós outros revistai-o.
Entraram na cozinha, apoderaram-se de sua mala de viagem, abriram-na, procuraram, e de repente, o comissário tirou uma faca e exclamou:
—De quem é esta faca?!
Aksénov olhou e viu uma faca suja de sangue; de sua mala é que a tinham retirado, e o terror o invadiu.
— E o que significa este sangue? — perguntou o comissário.
Aksénov quis responder; mas não pôde articular uma só palavra.
—Eu… não sei… eu… uma faca… eu… não é minha.
—Foi encontrado assassinado, esta manhã, o mercador em seu leito — disse o comissário. — A exceção de ti, ninguém poderia cometer o crime. A cozinha estava fechada por dentro e não havia ali outra pessoa. Eis para maior prova uma faca ensanguentada, encontrada em tua mala. Além disso, teu crime se lê em teu semblante. Confessa imediatamente que o mataste e o dinheiro lhe roubaste.
Aksénov jura por Deus que não é culpado; que não viu mais o mercador desde que tomaram o chá; que consigo só tem o seu próprio dinheiro, oito mil rublos, e que a faca não lhe pertencia. Sua voz, porém, sufocada, seu rosto empalidecendo-se, todo ele tremia, como um culpado. O comissário, tendo chamado os soldados, mandou amarrá-lo e colocá-lo no carro. Nessa ocasião, tendo os pés amarrados, Aksénov benzeu-se e chorou. Foram apreendidos os seus documentos, seu dinheiro, e o enviaram à prisão da vizinha cidade.
Fizeram abrir inquérito em Vladimir. Todos os mercadores e habitantes declararam que Aksénov, posto que em sua juventude gostasse de beber, pagodear, era, contudo, homem de bem. O processo continuou. Acusaram-no de ter assassinado o mercador de Riazan e de lhe ter roubado vinte mil rublos.
A mulher de Aksénov, em desolação, não sabia que pensar. Seus filhos eram pequenos, e um deles ainda mamava. Ela tomou-os consigo e seguiu para a cidade onde estava preso seu marido.
A princípio, não lhe consentiram vê-lo; porém, depois, por suas instâncias, lho concederam. Quando ela o viu em trajes de preso, algemado, entre os facínoras, caiu por terra e perdeu o sentido, não podendo, por algum tempo, voltar a si.
Depois ela, rodeada por seus filhos, sentou-se ao lado do marido, dando-lhe conta dos negócios da casa, pedindo-lhe, ao terminar, a narração do tudo que tinha acontecido. Ele contou-lhe tudo.
—Que fazer agora? — disse ela.
— É preciso ir suplicar ao tzar — respondeu ele. — Isso não pode ser. O inocente não pode ser punido.
Sua mulher lhe disse que tinha dirigido uma súplica ao tzar, “mas talvez não lhe tenha sido entregue”, disse ela.
Aksénov não respondeu e ficou acabrunhado.
— Não era, pois, vão o sonho que tive — continuou ela. — Lembra-te dele, quando eu te vi com os cabelos brancos? Estás, na verdade, envelhecido pela dor. Não deverias ter partido.
Ela começou a passar-lhe a mão pelos cabelos, dizendo-lhe:
— Vania, caro amigo! Dize a verdade à tua mulher!… Não foste tu que o mataste?
— Também tu o pensas? — disse ele, escondendo o rosto entre as mãos, pondo-se a chorar.
Apareceu um soldado, anunciando à mulher e aos meninos que era tempo de se retirarem.
Aksénov disse, pela última vez, adeus à sua mulher e seus filhos.
Saindo ela, ele recordou-se da conversação que havia tido; lembrou-se de que ela também acreditava no seu crime, pois lhe tinha perguntado se era ele quem tinha matado o mercador, e disse consigo:
— Só Deus conhece a verdade. É a Ele que preciso implorar. Esperemos sua misericórdia.
Desde esse momento, Aksénov deixou de suplicar. Fortificou seu coração com a esperança e voltou-se todo para Deus. A sentença condenou-o ao knout1 e a trabalhos forçados.
É o que acontece.
Açoitaram-no e, quando as feridas cicatrizaram, foi ele enviado com outros forçados para a Sibéria.
Ali, cumprindo a pena, ficou ele 26 anos. Seus cabelos tornaram-se brancos como a neve, e sua longa barba grisalha caía-lhe sobre o peito.
Toda sua alegria desapareceu.
Já alquebrado, começava a arrastar-se: falava pouco, nunca ria e orava muito.
Em prisão, Aksénov aprendeu a fazer botas. Com o dinheiro ganho nesse ofício, comprou um martirológio, que lia quando tinha luz em seu cubículo.
Nos dias de festa, ia à capela da prisão, lia os apóstolos e cantava no coro, e conservava sempre sua boa voz.
As autoridades o estimavam pela submissão. Seus companheiros o tinham em grande consideração e o apelidaram “avô” e “homem Deus”.
Quando os presos tinham alguma coisa a pedir, sempre por Aksénov apresentavam seus requerimentos e, quando os forçados se altercavam, era ainda ele o escolhido para árbitro.
De sua casa, ninguém lhe escrevia: ele ignorava se sua mulher e seus filhos ainda viviam.
Um dia, chegaram à prisão novos forçados. À tarde, os antigos perguntavam aos recém-chegados de que cidades ou aldeias vinham e por que causa.
Aksénov também tinha se aproximado e, com a cabeça baixa, escutava o que diziam.
Um dos novos forçados, um velho de sessenta anos, de alta estatura, barba grisalha e talhada, contava os motivos de sua condenação.
—Foi assim, meus irmãos — dizia ele. — Enviaram-me para cá sem motivo. Eu desatei um cavalo de um carro; prenderam-me, dizendo que o roubava.
“Repliquei:
“— Eu queria somente ir mais depressa; bem vedes que eu larguei o cavalo… Além disso, o comissário é meu amigo… Não há, pois, delito.
“—Não — disseram-me. — Tu o roubaste.
“Mas eles não sabiam onde, nem quando o roubei. Na verdade, eu tinha cometido crimes que há muito deviam ter-me conduzido para cá; mas nunca puderam prender-me em flagrante. Agora, é contra toda lei que me deportaram: mas esperemos… Eu tenho já estado em Sibéria; mas não por muito tempo…”
—E donde vens? — perguntou um dos forçados.
—Eu sou da cidade de Vladimir. Sou um pequeno aldeão dessa localidade; chamo-me Makar e, do nome de meu pai, Semionovitch.
Aksénov levantou a cabeça e perguntou:
—Ah! Semionovitch, não ouviste falar, na cidade de Vladimir, dos mercadores Aksénov? Ainda vivem?
—Como então! São ricos mercadores, ainda que seu pai esteja na Sibéria… Sem dúvida, terá delinquido, como nós outros.
Aksénov não gostava de falar em sua desgraça. Suspirou e disse:
—É por meus pecados que estou na prisão há vinte e seis anos.
Makar Semionovitch perguntou:
—E por quais pecados?
—É porque o merecia — respondeu Aksénov, com simplicidade; e nada mais quis dizer.
Os outros forçados, seus companheiros, contaram aos novos por que é que Aksénov se achava na Sibéria; de que modo, durante a viagem, alguém havia assassinado um mercador e colocado entre os bens de Aksénov uma faca tinta de sangue; como, por esse motivo, tinha injustamente sido condenado.
Ouvindo isto, Makar Semionovitch lançou um olhar sobre Aksénov, bateu com as mãos sobre os joelhos e exclamou:
— Oh! Que prodígio! Um verdadeiro milagre! Tu te envelheceste bem, pobre avô!
Perguntaram-lhe por que se admirava, e onde tinha visto Aksénov; mas nada respondeu ele, acrescentando somente:
—Um milagre, irmãos, de nos ter a sorte reunido aqui.
Aksénov, por isso, julgou que este homem devia ser o assassino.
— Já ouviste faltar de tal negócio, Semionovitch, ou me viste em alguma outra parte, que não aqui?
—Pois então! Ouvi sempre dizer que a terra é cheia de ouvidos. Mas há muito tempo que isto se deu, e não me lembro o que me disseram — redarguiu Makar Semionovitch.
—Sabes, por ventura — interrogou Aksénov —, qual o assassino do mercador?
Makar pôs-se a rir e continuou:
—Certamente será aquele em cuja mala encontraram a faca. Se alguém a colocara esta entre os teus bens, este não foi o apreendido, não foi o ladrão; e, demais, como poderiam colocar a faca em tua mala se tu a tinhas à cabeceira? De verias tê-lo percebido.
Ouvindo estas palavras, viu logo Aksénov que esse homem era o assassino do mercador. Levantou-se e retirou-se.
Aksénov não pôde dormir aquela noite. Caiu em um abatimento profundo; então, sonhou ora que via sua mulher acompanhando-o em sua partida para a última feira; via seu rosto, seus olhos, cheios de vida ainda; ouvia-a falar e rir; ora seus filhos apareciam-lhe, como outrora, bem pequenos; um envolto em um manto forrado, outro ao colo. Ele revia-se como era então: alegre, moço, sentado e tocando guitarra à entrada da estalagem onde tinha sido preso; lembrava-se do lugar infamante em que tinha sido açoitado, e do carrasco, e da multidão que o cercava, e dos ferros, e dos forçados, e dos seus vinte e seis anos de prisão. Sonhou com sua velhice, e um pesar, até o desespero da vida, invadiu Aksénov.
—E tudo isto — pensou ele — por causa deste bandido!
Sentiu-se tomado de uma tal cólera contra Makar que preferiu morrer no mesmo momento, contanto que dele se vingasse.
Ele rezava todas as noites, sem poder acalmar-se. Durante o dia, nunca se aproximava de Makar Semionovitch e nem o fitava.
Assim, passaram-se quinze dias. Às noites, Aksénov não podia dormir e era acometido de um tal desgosto que não sabia onde ficar.
Uma ocasião, durante a noite, como ele estivesse a passear na prisão, percebeu que, atrás de um dos leitos de madeira, caía terra.
Parou para ver o que era; e, de repente saiu Makar em seguimento à terra, que caía, e encarou Aksénov com expressão de medo. Este quis desviar-se, para não o ver; porém, Makar o agarrou pela mão e lhe contou como havia praticado o arrombamento no muro; como, todos os dias, conduzia terra em suas botas para lançá-la na rua quando os levavam para o trabalho. E acrescentou:
—Somente guarda silêncio, velho. Eu te levarei comigo. Se falas, me açoitarão barbaramente e tu me pagarás: eu te matarei.
Ouvindo isto — daquele que o tinha perdido —, Aksénov tremeu de cólera, retirou sua mão e disse:
—Eu não tenho desejos de me salvar, e tu não tens necessidade de me matar: já me mataste há muito tempo. Quanto a denunciar-te ou não, é Deus quem decidirá.
No dia seguinte, quando conduziam os forçados ao trabalho, os soldados notaram que Makar despejava terra de suas botas. Revistaram a prisão e encontraram o buraco. Chegou o chefe e perguntou quem tinha feito aquele buraco. Todos negaram. Os que sabiam não queriam trair Makar, porque não ignoravam que, por este motivo, ele seria açoitado até prostrar-se moribundo.
Então o chefe dirigiu-se a Aksénov:
—Velho — diz ele —, tu que és obediente, religioso, dize-me, diante de Deus: quem fez aquilo?
Makar Semionovitch conservou-se impassível; encarou o chefe sem se voltar para Aksénov. Quanto a este, seus braços e seus lábios tremiam, e não podia proferir uma só palavra.
— Calar-me… — pensava ele. — Mas para que lhe perdoar, uma vez que foi ele o que me perdeu? Que ele me pague meus sofrimentos. Falar.. É verdade que o açoitarão até quase morto. E se não é ele, se não é o assassino que eu penso… E, depois, isto me desagravaria?
O chefe renovou sua pergunta; Aksénov encarou Semionovitch e disse:
— Não posso dizê-lo, vossa nobreza. Deus não me o permite, e não o direi. Fazei de mim o que quiserdes: sois o senhor.
Apesar de todos os esforços do chefe, Aksénov nada mais disse. E assim não puderam saber quem tinha praticado a abertura.
Na noite seguinte, Aksénov, estendido sobre seu leito de madeira, quase a dormir, ouviu alguém se aproximar dele, e lançar-se a seus pés. Olhou na escuridão e reconheceu Makar.
Aksénov lhe disse:
—Que queres ainda de mim? Que fazes aqui?
Makar Semionovitch guardava silêncio.
Aksénov se levantou e disse:
—Que queres? Vai-te ou eu chamo o guarda.
Makar inclinou-se para Aksénov, bem junto dele, e lhe disse em voz baixa:
— Ivan Dimitrievitch, perdoa-me!
—Quê! O que te perdoar?
— Fui eu que o matei o marcador e fui também eu que coloquei a faca em tua mala. Eu queria te matar também, mas, nesse momento, fizeram barulho no pátio. Pus o punhal em tua mala e salvei-me pela janela.
Aksénov guardava silêncio e não sabia o que dizer.
Makar Semionovitch deixou-se escorregar e prostrou-se ao chão dizendo:
— Ivan Dimitrievitch, perdoa-me. Em nome de Deus, perdoa-me! Eu vou declarar que fui eu que matei o mercador; restituir-te-ão a liberdade e tu voltarás para tua casa.
—Isto é fácil de dizer —respondeu Aksénov. — Mas eu, eu tenho sofrido muito aqui. Para onde iria no presente? Minha mulher morreu! Meus filhos me esqueceram! Não tenho para onde ir.
Makar conservava-se sempre prostrado. Batia com a cabeça em terra, dizendo:
—Ivan Dimitrievitch, perdoa-me! Perdoa-me! Quando me açoitaram, foi-me menos doloroso do que te ver assim. E tu tiveste piedade e não me denunciaste. Perdoa-me, em nome de Cristo! Perdoa ao malfeitor maldito!
E pôs-se a soluçar.
Ouvindo-o soluçar, o próprio Aksénov pôs-se a chorar, e disse:
—Deus te perdoará! Talvez eu seja cem vezes pior do que tu.
E sentiu, de repente, uma alegria inundar a sua alma. Cessou de ter saudades sua casa. Não desejava mais deixar sua prisão e não pensava senão em sua última hora.
Makar Semionovitch não escutou Aksénov e foi declarar-se o culpado.
Quando chegou a ordem de pôr-se Aksénov em liberdade, ele já estava morto.
Fonte: “A Itabira”/MG, edições de 11 de outubro a 2 de novembro de 1898.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Nota:
1Chicote russo, consistente em uma corda ou tira de couro cru fixada a um cabo de madeira.

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