MEU CRIME - Conto Clássico de Crime - Edmondo Conadi

MEU CRIME

Edmondo Conadi

(Séc. XX)


Essa convicção veio ao meu espirito de súbito, durante a noite: um de nós devia morrer.

Já por muitas vezes que esse homem se atravessara em meu caminho para me fazer sofrer; e todo um cortejo de recordações amargas surgiam em minha memória e fazendo-me sentir de novo as humilhações passadas.

Sim. Esse homem devia morrer! Ele e não eu, que tinha direito à vida, à felicidade e fora sempre sua vítima. À ideia de me encontrar diante de seu cadáver, todo o meu ser vibrava de alegria e ansiedade. Essa visão macabra erguia-se diante de meus olhos alucinados como através de uma bruma cinzenta.

Bruma… Sim… Era natural! Pois não estávamos em agosto?

Um belo mês para morrer — murmurei.

E de novo vi aquele homem morto, estirado diante de mim.

Morto!

E foi esta a primeira alegria de minha vida!

Mas como me arranjaria eu para matá-lo? Acima de tudo, o que eu queria era fazê-lo sofrer, para cobrar todos os meus sofrimentos, todas as angústias que eu suportara por sua causa. Eu queria ter a satisfação de ler em seu olhar de moribundo o pavor da morte, acompanhar, em seu rosto já livido, as supremas contrações da agonia.

Assim é que eu queria que ele morresse. Pus-me de pé num salto. Estava calmo. Espantosamente calmo, calmo como a noite que me rodeava.

Uma bela noite para morrer — continuei —, uma bela noite para matar.

Resolvera surpreendê-lo no meio do sono e feri-lo gravemente, mas sem o matar logo, a fim de que ele tivesse tempo para compreender que ia morrer. Então, depois, eu insinuaria a lâmina acerada em seu coração, gozando os espasmos frenéticos e os gemidos desesperados, que ele, decerto, não poderia conter.

Ele morava na rua Ludowski, em uma elegante casa cercada por um jardim. Eu nunca entrara nessa casa; mas, sem saber por quê, imaginava com perfeita nitidez suas divisões interiores e saberia andar por ela sem hesitação.

Oh! A alegria feroz que ia ter, penetrando na casa onde aquele miserável dormia tranquilamente.

Com gestos lentos e metódicos, comecei a me vestir, observando-me ao espelho. Meu rosto não traía a menor emoção; ao contrário, sorria, e, longe de ser sinistro meu sorriso, era radiante, feliz.

Havia sobre a mesa de meu escritório uma grande faca, a faca da cozinha. Por que estava ela ali, e não na gaveta da copa, onde minha criada a guardava todas as noites? Como teria vindo parar ali? Era difícil compreendê-lo, mas, no momento, pareceu-me a coisa mais natural deste mundo.

Embrulhei essa faca em meu lenço, desci a escada e saí. A rua estava deserta. Tanto melhor. Assim, ninguém me poderia ver. Vários sinos começavam a soar ao longe. Eram sons tão frágeis que fiquei a pensar que igrejas seriam essas que tinham sinos tão pequenos!

E por que estariam esses sinos dobrando a finados, alta noite?


*


Não me lembro de como passei o grande portão branco. Sei apenas que, percorrendo a alameda central do jardim, fiquei enebriado com o perfume das flores. Também não guardo consciência do modo como abri a porta. O certo é que entrei sem dificuldade alguma e o cão de guarda veio, arrastando a corrente, lamber-me as mãos.

Ao entrar no vestíbulo, estremeci de súbito, vendo surgir, subitamente, diante de mim, um rosto pálido, que me fitava com olhos duros e ameaçadores.

Estaquei cheio de horror. Aquele homem, que me fechava o caminho, surpreendera-me em flagrante delito e ia impedir minha vingança…

Num ímpeto furioso, dei um passo. Ele avançou também para mim. Brandi minha faca… Vi uma lâmina de aço luzir também em sua mão… Então, não hesitei mais. Vibrei o golpe com toda a força.

Houve um tilintar sonoro… A figura desapareceu e, no mesmo instante, desatei a rir. Eu acabava de apunhalar minha própria imagem num espelho. Mas não teria o rumor despertado toda a gente na casa?

Não. Tudo continuava envolto em silêncio. Contendo o riso nervoso que me sacudia, subi a escada. Era a primeira vez que entrava ali, mas via a disposição dos aposentos como se sempre a tivesse conhecido. Outra circunstância me impressionou profundamente. A casa estava em completa escuridão; no entanto, eu distinguia todas as coisas como se fosse pleno dia.

Entrei no quarto. O homem dormia tão tranquilamente que eu ouvi o ritmo regular e forte de sua respiração. Aproximei a ponta da faca de seu peito e enterrei-a com as duas mãos, com toda a força. Ele abriu os olhos com um grande grito e levou as mãos ao ferimento.

Eu recuara num salto; mas, vendo que ele não se movia mais, voltei a feri-lo, e dez ou doze vezes cravei-lhe a lâmina ensanguentada com fúria.


*


Os jornais da tarde relataram o fato com grande luxo de detalhes.

O assassino fora preso e fizera confissão completa. Entrara ali para roubar e, surpreendido pelo morador da casa, matara-o com uma faca de cozinha que roubara poucas horas antes de uma casa da vizinhança.

Precipitei-me para a cozinha de minha própria casa, interroguei a criada e ela disse-me que “tinha entrado alguém ali durante a noite”.

Sim. Um inquérito revelou que “alguém” conseguira penetrar na cozinha, cuja janela era pouco segura. Mas, justamente por isso, eu mandara colocar uma tranca sólida na porta que comunicava esse compartimento com o resto da casa.

Pela manhã, a cozinheira verificara que haviam forçado a janela e tentado forçar a porta. Porém, essa resistira e o ladrão se limitara a levar pequenos utensílios, inclusive a faca, que utilizara para praticar um assassinato em outra casa.

Mas como… Por que prodígio o só fato de ter sido o crime cometido com um objeto de minha casa me levara a sonhar que era eu o assassino?


Fontes: “Eu Sei Tudo”/RJ, edição de junho de 1927 e “Diario de Noticias”/RJ, edição de 2 de janeiro de 1935.


 

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