O CADÁVER ASSASSINO - Conto Clássico de Terror - Jack Dee

O CADÁVER ASSASSINO1

Jack Dee2

(Séc. XX)



No título aparentemente absurdo dessa narrativa, aliam-se duas ideias que nos inspiram tristeza e horror, apesar de banais e das mais familiares ao nosso espírito. Por mais corriqueira que nos seja a morte, nunca nos conformamos com a sua inexorável fatalidade, da mesma forma que o assassínio, sob os mais especiosos motivos, sempre nos horroriza.

Vamos tratar aqui não de um assassino que se tornou cadáver, mas de um cadáver que se fez assassino, o que evidentemente não é a mesma coisa. Os que buscam emoção no irreal, no absurdo, no sobrenatural, nas assombrações que fazem arrepiar o cabelo, não se iludam com o título, pois o fato é naturalíssimo, humaníssimo e… explicabilíssimo.

Não se trata, portanto, de um conto destinado a explorar a credulidade do leitor ingênuo ou a tolice do público, essa massa informe e vaga da qual eu mesmo faço parte, e de que a gente pode dizer os maiores horrores e os mais descomedidos encômios.

Mas, vamos ao caso.

Recuemos um pouco no tempo.


*


Uma noite, no outono de 1861, um homem estava sentado no coração de uma floresta da Virgínia Ocidental. Não se pode dizer que as proximidades estavam desertas: a uma milha de distância, no campo então silencioso, encontrava-se toda uma brigada do exército federal.

Num sítio qualquer e, em outra direção, talvez mais perto ainda, devia estar o inimigo, de número ainda desconhecido. E era justamente essa incerteza a respeito de número e posição o que explicava a presença do homem naquele lugar solitário e soturno. Era um jovem oficial de um regimento de infantaria federal e a sua tarefa consistia em proteger o sono dos camaradas contra alguma surpresa. O piquete de guarda havia sido escalonado, ao cair das trevas, em uma linha irregular, segundo os caprichos do terreno, a algumas centenas de metros do ponto onde ele estava sentado. A linha estendia-se através da floresta por entre as rochas e moitas de loureiros. Os soldados estavam a quinze ou vinte passos uns dos outros, ocultos, com ordem do mais absoluto silêncio e da mais ativa vigilância naquele setor. Antes de distribuir os homens, o jovem oficial havia indicado aos seus dois sargentos o ponto onde podiam encontrá-lo — uma bifurcação de dois caminhos da capoeira — se fosse necessário consultá-lo ou se se tornasse imprescindível a sua presença em algum lugar.

O subtenente Brainerd Byring era um rapaz competente e corajoso, mas muito jovem ainda e relativamente sem experiência na arte de matar os seus semelhantes. Havia se inscrito como simples soldado nos primeiros rumores da Guerra Civil americana e tinha subido de posto por causa da sua educação e desembaraço, tendo tido a desventura de perder o seu capitão em batalha. Nas promoções, que de tudo isso resultaram, havia ele conquistado galões. Participara em vários encontros, batendo-se sempre com denodo, o que despertara as atenção dos superiores. O ardor das batalhas lhe era agradável, mas não tolerava a vista dos mortos, com os rostos lívidos, olhos vítreos, corpos hirtos. Diante deles, experimentava uma espécie de mal-estar, e mesmo contrariedade, que era qualquer coisa pior que a repugnância física e mental comum a todos nós. Indubitavelmente, aquele sentimento era devido à sua sensibilidade extraordinariamente aguda: o senso do belo ultrajado pelo horrível.

Qualquer que fosse a causa, o fato é que ele não podia ver um morto sem provar uma repulsão que encerrava em si uma alta dose de antipatia. A morte era-lhe algo de odioso e não pitoresco. Nada de comovedor e solene; mas puramente lúgubre, horrível em todas as suas manifestações. E por isso é lícito dizer que o subtenente Byring ainda era muito mais corajoso do que o imaginavam os seus companheiros, porquanto ninguém conhecia os horrores que ele experimentava, embora estivesse sempre pronto a afrontá-los.

Colocados os homens nas suas posições, dadas instruções aos sargentos e recolhendo-se ao seu lugar, o subtenente Byring sentou-se calmamente sobre um tronco, iniciando com todos os sentidos a longa vigília noturna. Para pôr-se mais à vontade, tirou da cintura a espada, pôs a pistola sobre o tronco, perto de si. E, quanto mais se abandonava à sensação de repouso, mais aguda se lhe tornava a audição. Como se por um milagre, os seus ouvidos captavam os mais ínfimos ruídos, os mínimos sons que pudessem ter significado alarmante: um grito, um disparo longínquo, os passos de um sargento que viesse anunciar novidades. Do vasto e infinito oceano constelado, a luz merencória da lua derramava, aqui e além, torrentes de claridade, que parecia borbulhar sobre os ramos e rorejar a terra, formando lençóis alvadios sobre as franças dos loureiros. Mas essas infiltrações de luz, aqui e acolá, eram escassas e só serviam para acentuar a obscuridade do ambiente, que só a imaginação bastava para povoar de toda espécie de formas ignotas, ameaçadoras, sobrenaturais ou simplesmente grotescas.

Os que experimentaram a portentosa conspiração da noite com o silêncio, com a solidão nas brenhas de uma grande floresta, não podem explicar como tudo se transforma e parece pertencer a um outro mundo, um mundo estranho, que nos proporciona as sensações mais esquisitas. Os objetos mais familiares e banais assumem outros caracteres. As árvores agrupam-se diversamente, apoiam-se umas às outras, como se temessem o medo. O próprio silêncio tem qualidades diferentes do silêncio diurno. E cheio de sussurros e suspiros, fantasmas de vozes extintas há muito tempo. Sons vulgares noutros momentos, que são ouvidos sob outras condições: estrídulos de pássaros noturnos; gritos de animaizinhos sonhando ou o encontro imprevisto de inimigos traiçoeiros; barulho de folhas secas, que tanto podem ser passos de toupeiras como de feras. Que foi que subiu naquela árvore? Que caiu daquele ramo? Por que o bater de asas naquele ninho? Por que ladra aquele cão à distância? Quanto chiado, cacarejo, grugrulho. Onde se oculta tanta coisa, santo Deus?! Sons sem nome, formas sem substâncias, projeção no espaço de objetos que aparentemente não caem, movimentos onde nada antes nem depois se movia.

Embora guardado a distância por amigos armados e vigilantes, Byring sentia-se completamente só. Abandonando-se ao espírito misterioso do tempo e do espaço, havia ele quase esquecido do motivo por que se encontrava no âmago da noite soturna. A floresta era ilimitada, os homens e suas habitações não existiam mais.

O universo era todo um primitivo mistério de trevas, vazio, informe, em cujo centro só existia Byring, o único indagador mudo do eterno segredo. Absorto nas suas cogitações, deixava ele o tempo passar insensivelmente. Enquanto isso, a mancha de luz lunar, branca e suave, havia mudado de forma, de dimensões, de lugar.

Ao atirar o olhar um pouco à frente, à margem do caminho, os olhos do jovem oficial firmaram-se num objeto que, até então, não havia sido observado. Quase à sua frente!… Seria capaz de jurar que antes não estava ali.

Estava parcialmente coberto pela sombra, mas já se notava bem ser uma figura humana. Byring segurou instintivamente a espada e apanhou a pistola.

Estava novamente no mundo da guerra, com a preocupação de defesa.

O corpo humano não se moveu. Erguendo-se de pé com a pistola em punho, o jovem oficial aproximou-se. O corpo jazia de barriga para o ar, a parte superior na sombra. Parecia dormir. Mas, curvando-se e olhando-o atentamente o rosto, Byring viu que era um morto.

Voltou-se imediatamente com uma sensação de náuseas e desgosto; retomou o seu lugar sobre o tronco abatido e, esquecendo-se da prudência militar, procurou no bolso os fósforos e acendeu um cigarro. Nas trevas passageiras, que se seguiram à chama, experimentou uma sensação de alívio, porque não via o objeto de sua aversão. Apesar disso, os olhos permaneciam fixos naquela direção, até que o corpo reapareceu com progressiva nitidez. Parecia haver-se movido, aproximado um pouco...

Diabo! — exclamou Byring. — Que massada!

Virou o rosto para o outro lado, à caça de outra qualquer coisa que lhe prendesse a atenção, que o distraísse, mas interrompeu em meio à pesquisa para fitar de novo o morto. A sua presença enojava-o, aborrecia-o, embora não se pudesse desejar um vizinho mais tranquilo e inofensivo. Além disso, uma sensação vaga, indefinível, que lhe parecia desconhecida… Não era bem medo, mas um senso do sobrenatural em cuja existência, no mundo, Byring acreditava muito pouco.

Um instinto atávico! — explicou-se. — Acredito que sejam necessários mil séculos e talvez dez mil para que a humanidade se liberte desse sentimento idiota. Onde e quando teve origem? Provavelmente em eras remotíssimas e naquele lugar que designam como berço da espécie humana: as planuras da Ásia Central. Imagine-se: um homem como eu, civilizado, culto, estudioso, como quase toda a gente, ainda estou sujeito às grosseiras superstições que herdamos dos nossos bárbaros antepassados… Acreditavam eles que o corpo de um morto fosse uma coisa maligna dotada de perniciosos poderes, talvez com uma vontade e uma razão próprias para exercê-los. A velha crença foi diminuindo cada vez mais com as sucessivas religiões até dissipar-se completamente à luz da ciência. Mas deixou, no fundo da alma humana, um resíduo de terror que se transmite de geração em geração. Faz parte de nós como o sangue e os ossos.

Enquanto seguia o curso desse raciocínio, Byring esquecia-se do motivo que o sugerira, mas eis os seus olhos fitos de novo no cadáver. A sombra havia-o descoberto completamente. Viu o perfil nítido, a testa no ar, o rosto de uma palidez espectral ao clarão da lua. Trazia uma divisa cinzenta e o uniforme dos soldados confederados.

Byring volveu o olhar.

Acho melhor afastar-me daqui… — pensou.

Ia levantar-se, mas recordou-se de haver dito aos seus homens de vigia, e ao oficial que estava encarregado de visitá-lo, que seria encontrado a qualquer momento precisamente naquele ponto. Além disso, era uma questão de orgulho. Não devia render-se. Se abandonasse o posto, podiam os maldizentes acusá-lo de medo do cadáver. E, assim, firmou-se de novo e decididamente no seu lugar e, para demonstrar a sua coragem, olhou impavidamente o corpo imóvel do soldado, como quem diz: “fugir de ti? Eu! Ah… Isso é que não. Não impingirei a mim mesmo a vergonha de deixar-me dominar por uma superstição bárbara. Fugir de um miserável trapo. Amanhã, essa fraqueza, esse temor absurdo e estúpido, iria constituir motivo de profundo desgosto, de inqualificável inferioridade. Tornar-me ridículo perante o meu foro íntimo e ficar o resto da vida com a humilhante recordação de um ato de pusilanimidade, de poltroneiria. Eu, que tenho enfrentado o furor das batalhas, fugir de um acervo de matéria inerte e esquálida... Nunca! Nunca!”.

O braço direito do defunto, o que ficava mais distante de Byring, estava agora na sombra. Via-se-lhe apenas a mão que, como observado antes, estava abandonada sobre as raízes de um loureiro. Não havia, em realidade, ocorrido nenhuma modificação, fato que a Byring proporcionava um certo conforto, embora ele mesmo não soubesse por quê. Não pôde retirar subitamente os olhos: o que não se deseja ver tem, às vezes, um fascínio irresistível.

Byring sentiu inesperadamente uma dor na mão direita. Deixou de olhar o inimigo e fitou-a. Apertava com tanta força o punho da espada desembainhada que os músculos lhe doíam. Observou ainda que estava curvado para a frente em atitude forçada, como um gladiador pronto a assaltar o inimigo. Dentes cerrados, respiração anelante, penosa. Endireitou-se, enquanto lançava um grande suspiro de alívio. Sentiu o grande ridículo do incidente. Riu. Céus! Que som seria aquele? Que demônio se abandonava àquele exemplo de absurda hilaridade, de irrisão? Saltou de pé, olhou em torno.

Não havia reconhecido a sua própria risada.

Já não podia ocultar-se o horrível fato da própria covardia: estava assombrado, espantado… Ter-se-ia posto a correr desabaladamente, se as pernas conseguissem executar um movimento. As pernas vergavam-lhe como se já não suportassem o peso do corpo. Deixou-se cair de novo sobre o tronco, tremendo violentamente. O rosto estava banhado e o corpo inteiro coberto de um suor frio. Já nem podia mais soltar um grito. Ouvia distintamente atrás de si um passo furtivo, como de um animal selvático, mais não ousou encará-lo sobre o ombro. O vivo sem ânimo parecia atado ao morto inanimado. Seria um animal? Como seria? Grande? Perigoso? Que vontade de vê-lo! Mas nenhum esforço de vontade era capaz de despregar do morto o olhar fascinado. Aquele rosto lívido, imóvel, frio…

Repitamos que o subtenente Byring era um rapaz corajoso e inteligente Mas que quereis? Poderá um homem só lutar com uma aliança tão monstruosa como aquela da noite e da solidão, do silêncio e da morte, uma multidão interminável de antepassados lhe infundem no espirito o sentimento de covardia e terror e cantam no âmago do seu próprio coração uma dolente canção de morte, que lhe impregna a alma de pavor, abatendo-lhe todas as energias?

Uma única convicção se impunha agora ao oficial: o corpo havia se movido. Estava mais próximo da orla daquele lençol de luz. Sobre isso não havia dúvidas. Havia também movido os braços, pois ambos estavam agora à sombra. O sopro de ar frio banhou o rosto de Byring, agitou macabramente os ramos das árvores, que se moveram gemendo. Uma sombra fortemente delineada passou sobre a face do morto, voltou, deixou-a metade obscurecida. E aquele vulto horrível movia-se visivelmente... Naquele momento, ouviu-se um disparo isolado na linha de sentinelas. Foi como um golpe mágico chamando o homem à realidade e quebrando o encantamento. Destruiu o silencio e a solidão, dispersou a caterva de antepassados, libertou o seu espírito moderno. Com um grito, como o de uma grande ave de rapina que se arroja sobre a presa, Byring atirou-se para diante, ardente de ação.

Disparos sobre disparos vinham agora da frente. Vozes em confusão, rumores, baques… Longe, na retaguarda, nos acampamentos adormecidos clangoravam trombetas, ruflaram-se tambores. Correndo, entre as sarças, dos dois lados da estrada, chegaram as sentinelas avançadas do exército federal em plena retirada, disparando para trás, em desordem, enquanto corriam. Eram seguidos de perto por um esquadrão de cavalaria, que passou como um tufão tiroteando, investindo, ultrapassando o ponto onde estava Byring, numa velocidade frenética e desaparecendo detrás das árvores. Um momento depois, reboava uma descarga de mosquetes, seguida de numerosos tiros isolados. A cavalaria havia encontrado a linha de reserva e voltou em disparada pelo caminho em completa desordem. Aqui e ali uma sela desocupada, cavalos sem cavaleiros que corriam desorientados, bufando, manquejando feridos…

Estava acabado. Fora um simples encontro de postos avançados.

Restabelecida a linha de defesa com homens frescos, fez-se a chamada. O comandante federal, com uma parte do estado-maior, apareceu em cena, fez algumas perguntas, deu instruções, ajeitou a capa e retirou-se.

Na manhã seguinte, cedo, uma esquadra, comandada por um capitão e acompanhada de um oficial médico, foi examinar o terreno, em busca de mortos e feridos. Na bifurcação da estrada, um pouco à esquerda, encontraram dois corpos caídos, um perto do outro: o de um oficial federal e o outro de um soldado confederado. O oficial havia sido morto por um golpe de espada que lhe havia atravessado o coração, mas, segundo todas as aparências, só depois de haver infligido nada menos de cinco espaventosas feridas no seu inimigo. O oficial morto jazia, com a boca escancarada, numa poça de sangue, com a arma ainda plantada no coração. Voltaram-no de costas. O médico retirou-lhe a espada.

Deus! — exclamou o capitão. — É Byring!

Depois, acrescentou, com um olhar ao companheiro:

Uma luta furibunda!

O médico examinou a espada. Era a de um oficial da infantaria federal: exatamente semelhante à espada do capitão. Em duas palavras: a espada era a de Byring. Fora isso, nenhuma outra arma se descobriu ali, além da pistola ainda carregada à cintura do oficial morto.

O oficial médico pôs no chão a espada, aproximou-se do outro corpo. Estava hediondamente esquartejado, mutilado e parecia ter sido atacado ferozmente por Byring, mas não sangrava. Segurou-lhe o pé esquerdo e procurou endireitar-lhe a perna que estava presa no alto. Com o esforço, o corpo espedaçou-se. O morto não queria ser movido e protestou, exalando um débil odor nauseabundo. No ponto onde jazia antes, apareceram vermes, que se moviam com uma atividade quase frenética.

O oficial médico encarou o capitão…

O capitão encarou o oficial médico…


Fonte: “A Noite Ilustrada”/RJ, edição de 27 de abril de 1935.

Ilustração: PS/Copilot.


Notas:

1O presente texto é uma reelaboração do conto “A Tough Tussle” (“Uma Árdua Luta”), de Ambrose Bierce (1842 – 1914?).

2Provavelmente pseudônimo.

 

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