O DEFUNTO - Conto Clássico Fúnebre - Padre Silvério
O DEFUNTO
Padre Silvério
(Sécs. XIX e XX)
— Se vosmecês vissem o Mucuri quando era malta fechada, cheia de bugres… Quem viajava de dia? Há de o mesmo. Era flechada certa. Logo que siô Teófilo Otoni chamou para lá os fazendeiros do Serro, fui com o Facadinha e abrimos a fazenda da Quarta-feira.
— Então é que os bugres eram danados, hein?
— Qual, siô Vigário. Os civilizados também enganavam a eles, tomavam as mulheres e os meninos deles, davam cachaça e depois queixavam, quando eles faziam traição. A falar verdade a gente não sabe de que lado está a razão. Uns protegiam, como siô Teófilo, que eles chamavam Pojirum (Papai Grande), mas outros eram malvados e até caçavam bugres como se fossem paca ou anta.
—Deveras?
—Uai! Por esta luz quo nos alumeia! Cachorro que tinha faro para bugre valia um dinheirão. Aí ajuntavam um lote de gente e soltavam os cães no mato: matavam os coitados, cortavam as orelhas e enfiavam num barbante. Um fazendeiro tinha um vidro de manteiga, cheio delas, guardadas na chácara.
“Aí está por que Deus castigou o Mucuri. Nos estávamos em Santa Clara quando veio a peste na povoação, que foi uma limpa. Brasileiros e colonos foi tudo raso. Nem tempo havia para enterrar os mortos no mesmo dia. Ia-se botando o defunto no chão da capela, e lá dormia ele a noite para se enterrar no outro dia. Fosse arremediado ou pobre o defunto, se não quisesse ficar de molho até de manha, havia de morrer antes do meio-dia, por que a capela era no alto do morro.
“Era tanto defunto que custava achar gente para abrir as covas: muitos carregavam o esquife, mas não podiam pegar na enxada…
—Você abriu muitas sepulturas… decerto.
—Ai, nhor, não. Porque me sucedeu um caso que me tirou o ânimo dessa obra de misericórdia.
— Como foi isso? Conte.
—Vosmecê vá escutando. Andava o patrão tratando dos doentes pelo Chernoviz, na falta de doutor.
Apanhou também a bicha e… não lhe conto nada: em três dias entesou a perna. Tinha caído logo num letargo que não acordou mais.
“Ora, um homem como o patrão não podia ir para a sepultura em fralda de camisa como os outros. Mandou-se fazer mortalha de paninho e caixão de pinho forrado. Levamos para a capela, já o sol entrando.
“No outro dia bem cedo lá fui com a enxada e mais o compadre Bento e os dons filhos do Zeferino, porque havia mais três fregueses, espichados de véspera, tirante o patrão. Librinava e havia cerração. Tomamos cachaça e tocamos para a frente.
Vai se não quando, o compadre Bento, que ia mais adiantado, volta para trás correndo, e estacou meio enfiado.
“— Que é isso, homem? — perguntei.
“— Ó compadre Justino, a modo coisa que a branca me subiu na cabeça… Pois não é que me pareceu ver um defunto sentado na porta da sacristia?...
“—Ora qual! — disse o Juca do Zeferino. — Pois vou meter o olho da enxada na cabeça do defunto. Vamos, Maneco.
“—Está dito.
“E lá se foram correndo, enquanto eu segurava o compadre Bento, que ia caindo de susto.
“—Ai! Ai, minha Nossa Senhora do Amparo! São Bento me valha!
Eram os dois rapazes que vinham gritando morro abaixo.
“— Que é isso, meninos?
“— Um defunto em pé na porta e chamando a gente com a mão… E é siô Cardoso, porque está de mortalha preta!»
Olhei e era tal e qual!
Largamos pela ladeira té, té, té e chegamos na povoação gritando:
“—Acode cá, gente! Os defuntos arrombaram a porta da igreja e saíram das sepulturas e estão chamando a gente pro outro mundo.
“O povo ajuntou logo: uns queriam ir, outros não deixavam.
“— Misericórdia! Misericórdia!
“— Quantos defuntos são?
“Ora, nós, a falar a verdade, só tínhamos visto um, mas era bem factível que os outros estivessem atrás.
“—Esta canalha está bêbeda — disse o boticário.
“—É… Se o senhor é capaz, suba a ladeira.
“—Pois vou… Se achar companheiro.
“—Ah! Ah!
“—Não é que eu creia em vocês, nem que tenha medo… É que um certo… Pavor pode atrapalhar uma pessoa quando vai só.
“Umas vinte pessoas seguiram o boticário.
“Nisto, a cerração foi passando e do meio da ladeira já se via a capela. Olharam para lá e foi um grito geral.
“—Lá está o defunto!
“—São dois…
“—Dois? É um lote deles.
“E tudo desandou correndo para trás, uns caindo por riba dos outros. Mas eu fui divulgando mais distintamente e vi que eram o patrão só e me chamando com a mão… Me alembrou que talvez não tivesse morrido. Chamei uns dois mais animosos e lá fomos. Era de fato siô Cardoso, que estava vivo, em pé, encostado no portal.”
— Ora, Justino, quem engole essa?
— Pois é perguntar ao patrão. Ele aí está na sala tomando café.
Esqueci-me de dizer: estávamos conversando na porta da casa do meu parente João Floriano, no Medanha.
Entrei. De fato, lá estava o Cardoso, meu conhecido. Era casado com uma irmã do deputado Antônio Joaquim César.
Feitos os cumprimentos, perguntei-lhe pelo caso contado pelo Justino.
— É a pura verdade. Escapei de ser enterrado vivo, há mais de quinze anos.
“E como já sabem da história, só lhes contarei que, quando despertei do acesso de coma, vendo-me no escuro e em tanto silêncio, presumi que os enfermeiros tivessem adormecido de cansaço, e que a luz houvesse apagado. Pedi água repetidas vezes e, como não me respondessem, quia estender a mão para apanhar algum copo… Percebi, então, que tinha as mãos ata das uma A outra. Supus que hou vessem feito isso para me conterem no delírio. Fiz um esforço e a fita partiu-se. Movi a mão ao acaso: senti que tocava em um rosto frio… Mas que frieza; era da morte… Não podia explicar o fato senão supondo que o Justino ou algum dos enfermeiros tivesse morrido junto de mim…
“—Que horror! Pobre rapaz! — pensava eu. — Mal cuidava morrer tratando de mim! Mas que epidemia tremenda!
“Estendo a outra mão e sinto tocar outro cadáver.
“ —Dois! Morreram ambos... Meu Deus, tende compaixão deles!
“O silêncio em que se perderam meus gritos me indicava que só eu estava vivo ali.
“Quis levantar-me e senti que minhas vestes estavam cosidas à cama! Apalpo e vejo que estávamos eu e os dois defuntos no chão…
Continuo a examinar, e pelo tato percebo os galões do caixão.
“Eu também tinha morrido!… Estaria despertando na eternidade? Mas aquelas trevas… Seria o limbo ou o purgatório? Consolei-me porque não era o inferno.
Fiz um esforço e arrebentei os alinhavos que me prendiam. Tinha uma sede ardente… Fraco e resfriado, não me pude pôr de pé. De gatinhas, segui pelo chão e pouco a pouco fui compreendendo o caso, e onde estava eu. Procurei sair, guiado pela claridade da lua que distingui por baixo da porta. Estria fechada? Não consegui sair: dei com as mãos no terceiro defunto colocado junto dela…
Voltei, sempre gatinhando e procurei a sacristia. Ergui-me devagar, e percebi a tranca que fechava a porta. Com esforço, e caindo mais de uma vez, retirei a tranca, e… oh! Que prazer quando vi-me longe dos três colegas!
“O dia vinha raiando! Dentro em pouco, estaria socorrido. Sentei-me na porta respirando o ar puro da madrugada. O resto vocês sabem. Avaliem somente meu desespero quando vi os coveiros fugirem e a hesitação do boticário.”
—Com que, então, você não morreu! — disse o Luís Augusto, caçoando.
—Não, mas quase morri de frio. E do caso criei uma prática de caridade. Quando mando vestir algum defunto, recomendo que a mortalha seja inteira.
—Porquê?
—Ah! Porque vocês não podem avaliar quanto me contrariava a minha, que só cobria a frente do corpo. Principalmente quando andei de gatinhas é que maior foi o vexame. Tinha as costas nuas: só puxa a mortalha para cobri-las, mas ficava a frente a descoberto. Foi uma grande massada!
Fonte: “União”/RJ, edição de 17 de fevereiro de 1906.
Ilustração: Manuel Bandeira (1886 – 1968).

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