O GATO FANTASMA - Conto Clássico Pseudo-sobrenatural - W. W. Jacobs

O GATO FANTASMA

W. W. Jacobs

(1863 – 1943)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Quando o capitão voltou a bordo trazendo aquele papagaio, toda a equipagem1 ficou, como se costuma dizer, de nariz torcido. O capitão explicou: um tio seu pedira-lhe que levasse, durante uma viagem, aquele animal, que era de grande estimação.

Mas para quê? — perguntou o imediato.

Sei lá! É uma cisma. Diz que a viagem há de lhe fazer bem.

Mas esse bicho não parece doente — disse o imediato, metendo um dedo pelas grades da gaiola para lhe fazer festas. Mas, imediatamente, recuou com um grito e uma praga, levando a boca o dedo, que o papagaio picara cruelmente.

Esse fato foi observado por dois marinheiros e o mestre-cuca, que ainda ficaram mais sombrios. Aquele papagaio, a bordo, iria dar em aborrecimento. Satã naturalmente não havia de gostar dele; e Satã, o gato de bordo — um gato todo preto, que era considerado a mascote do navio —, quando não gostava de alguém ou de alguma coisa, não tardava a manifestá-lo.

Dito e feito. Apenas viu o papagaio, o gato arrepiou-se todo e começou a rondar a gaiola. Os marinheiros trataram logo de chamá-lo, distraí-lo, mas qual! Por mais que o vigiassem, ele aproveitou uma ocasião, pulou sobre a gaiola e, com um só golpe de pata, metida agilmente pela grade, deitou a ave palradora caída ao fundo.

Quando o capitão viu o papagaio assim, bradou horrorizado:

Que é isso?

O mestre-cuca e o marinheiro Sam, os únicos que tinham assistido à tragédia, guardaram silêncio. Mas, como o capitão insistia, furioso, em perguntar o que acontecera, Sam arriscou:

Provavelmente devem ter lhe dado comida muito seca.

Qual seca! —berrou o capitão. — Isso foi proeza do gato. Onde ele está?

Mas Satã, consciente do crime que praticara, metera-se por trás de um monte de caixotes e mantinha-se ali, quieto, em silêncio.

Por mais que o capitão o chamasse, com voz perfidamente dulçorosa, ele não deu sinal de vida.

Mas não foi o gato, capitão. Um animal tão mansinho era lá capaz de uma cousa destas! — observou o mestre-cuca.

Cale-se! E fique sabendo… Se o papagaio morrer, eu atiro esse maldito bichano por cima da amurada.

Credo, capitão! — exclamou Sam— Nem diga isso. Um gato que é mascote de bordo.

Além disso — continuou o mestre-cuca —, matar um gato tira a sorte. E logo um gato preto!

Calem-se… Já disse. E não tenham dúvidas. Se o papagaio morrer, Satã vai para os peixinhos.

Toda a equipagem ficou profundamente impressionada com essa ameaça e esmerou-se em tratar o papagaio, jogando-lhe água na cabeça, dando-lhe café bem forte…

No segundo dia, quando tocaram o primeiro porto, a ave estava no mesmo e, voltando de terra, onde fora a compras, o mestre-cuca chamou Sam e mais dois marinheiros à cozinha, com ares misteriosos:

Sabem o que está neste saco?

Ora! Pão, como costume.

Não… Coisa melhor, muito melhor. Um gato… Sim… Imagine que, chegando à padaria, vi à porta um gato preto, perfeitamente igual a Satã. Igualzinho, sem tirar nem pôr. Eu, então, tive uma ideia. Quando saí, notando que ninguém estava me observando, agarrei-o pela pele do pescoço e meti-o no saco.

Com o nosso pão! — protestaram.

Ora, vocês têm sempre uma observação a fazer. Então, ainda não compreenderam minha ideia? O papagaio está ruim.. Parece que morre mesmo. Ora, se o capitão resolver matar o gato, antes seja este do que o nosso.

Ah! Sim… Boa ideia! Excelente!

Os risos e aplausos foram tão veementes que o mestre-cuca teve que acalmá-los para que o capitão não desconfiasse. Depois prepararam tudo. Satã foi metido em um caixote, devidamente arejado com vários orifícios e soltaram o outro gato no convés.

O imediato, que não tinha conhecimento do plano do mestre-cuca, estranhou:

Que é o que Satã tem hoje? Parece triste, desconfiado. Estará doente também?

Naturalmente sabe o que fez e prevê o destino que o espera — disse o capitão, cada vez mais furioso.

E, ao fim de algumas horas, o destino se consumou. Encontrando o papagaio hirto, já frio, o capitão correu ao convés e, segurando pelo pescoço o pobre gato inocente e desprevenido, atirou-o às ondas.

Para melhor sustentara burla, a marinhagem protestou, fingiu-se desolada, o mestre-cuca chegou a arrancar alguns punhados de cabelos; mas o capitão, com o sobrecenho carregado, ameaçou de pôr a ferros o primeiro que insistisse em reclamar e o silêncio acabou por se restabelecer a bordo.

Aliás, o mestre-cuca ainda disse, sacudindo a cabeça com ar sentencioso:

O senhor não acredita… mas há de ver. Matar um gato e logo um gato preto… Eu não faria isso nem por cem libras esterlinas…

No momento, cego pela cólera, o capitão não deu importância a essas palavras, mas, depois, supersticioso como todos os homens do mar, ficou contrafeito.

Mas o dia passou e a noite veio sem incidentes. Ao amanhecer, começou a chover a cântaros e, vindo ao convés a serviço, Sam estacou alarmado, vendo Satã. O gato conseguira fugir do caixote e passeava tranquilamente em torno da cabine de comando. Sam saltou sobre ele e, a despeito de seus protestos, envolveu-o no casaco e levou-o para a cozinha.

O capitão, que estava em conferência com o imediato, voltou-se em sobressalto.

Que é? — perguntou o imediato, que, jé informado de tudo, continuou impassível.

Você não ouviu… um gato miando?

Um gato? — repetiu o outro, simulando profunda surpresa.

Sim… eu seria capaz de jurar…

E o capitão abriu bruscamente a porta da cabine.

Sam voltara ao convés e estava calmamente arrumando um molho de cordas.

Sam, você não ouviu?

Ouviu quê? — perguntou o marinheiro, com a mais perfeita expressão de ingenuidade.

Nada — disse o capitão, cada vez mais sombrio.

Passados alguns instantes, o imediato perguntou, com ar indiferente.

O senhor ouviu mesmo o miado de um gato?

Palavra de honra — disse o capitão, baixando a voz — Ouvi distintamente.

Eu já ouvi contar um caso assim — continuou o imediato muito calmo. —Em Norfolk, uma vez, contaram-me que um gato, atirado ao mar com um tijolo amarrado ao pescoço, reapareceu ao fim de dois dias e subiu pela amurada com tijolo e tudo.

O capitão fitou-o muito sério; depois, disse:

E você acha isso muito engraçado? Pois eu não lhe acho graça nenhuma!

Nesse dia e no outro, o capitão não teve mais razão para se inquietar, mas, no terceiro dia, estava de quarto2, na roda do leme, vendo no convés apenas Bob, o grumete, quando um miado lamentoso, muito de manso, chegou-lhe aos ouvidos. Ficou petrificado de espanto e o mesmo som passou pelo ar, suave e triste.

Bob! — bradou o capitão.

Presente, capitão!

É você que está miando?

Que estou fazendo quê?

Miando… Miando como um gato? — perguntou o capitão severamente.

Eu não, senhor! — protestou o grumete, simulando uma grande indignação.

O capitão nada mais disse e, como o miado não se repetisse, absteve-se de fazer novas perguntas, tão preocupado que não viu Satã, sentado, muito quieto, por trás dele.

Era natural. Havia quatro dias que o pobre gato se via perseguido pela equipagem. Todos, desde o imediato até o grumete, apenas o avistavam, saltavam sobre ele, tapavam-lhe a boca e metiam-no em um lugar qualquer de onde, depois, tinha grande trabalho para sair. Somente o capitão não lhe fizera isso. Então o gato, ingenuamente, vinha se colocar sob sua proteção. E, vendo que o capitão não se voltava, aproximou-se mais e esfregou a cabeça em uma de suas pernas.

As pequenas causas produzem, por vezes, grandes efeitos. O capitão deu um salto de quatro metros e um berro, que fez toda a tripulação acudir ao convés, em sobressalto

Mas, como Satã, que se tornara assustadiço, desaparecera ao grito do capitão, este foi encontrado pela equipagem, girando como um louco sobre os calcanhares e olhando para todos os lados com os olhos dilatados pelo terror.

Foi que… Foi que… — respondeu ele, afinal, às perguntas que o fuzilavam. — Acreditem ou não acreditem, se o quiserem, mas eu juro-lhes que o fantasma desse maldito gato… quero dizer, desse pobre animalzinho tão afetuoso, apareceu e esfregou-se em minhas pernas… Oh!… Olhem ali…

E o capitão, no cúmulo do assombro, estendia a mão, mostrando o castelo de popa, onde o gato aparecera agora, lambendo cuidadosamente a cauda e as pernas.

Olhem o quê? — perguntou o imediato em tom vago.

O gato! Não estão vendo?

Não… Não vejo coisa alguma… — disseram várias vozes.

Pois claro! — exclamou o capitão, furioso, passeando de um lado para outro — Como fui eu quem o matou, só eu o vejo, por toda a parte. Sabem que mais ? Vou-me deitar. Vou-me deitar, senão fico doido…

E, passando o quarto ao imediato, desceu pesadamente a escada.

Chegando à sua cabine, o capitão deitou-se, deixando a lâmpada acesa, para maior segurança e, ao contrário do que esperava, não tardou a adormecer. Foi despertado pelo ruído das ondas batendo com força na escotilha. O tempo mudara e o mar se tornara dos mais agitados.

O capitão apressou-se a subir ao convés, onde o imediato reclamou, ao vê-lo.

Ia mandar chamá-lo. Estou exausto.

O capitão tomou conta da roda do leme e começou a dar as ordens que o momento exigia. Mas o navio estava jogando fortemente e um movimento mais forte deslocou dois grandes caixotes, que estavam de boca para baixo, junto do mastro de proa. O gato, que estava preso debaixo de um desses caixotes, aproveitou essa oportunidade para fugir e, louco de terror, saiu aos saltos pelo convés, miando furiosamente. Por três vezes descreveu um círculo vertiginoso em torno do capitão, que sapateava de cólera e susto.

A equipagem, imobilizada pela emoção, mantinha-se em silêncio; mas o grumete, mais impulsivo, não podendo suportar por mais tempo essa angústia, aproveitou um momento em que o gato se deteve, saltou sobre ele e dirigiu-se para a escada, levando-o nos braços.

Alto! — bradou o capitão. — Alto aí! Venha cá! Que é isso que você tem entre as mãos?

Isto é… Isto é…. — balbuciou Bob.

Então vocês todos estiveram se divertindo à minha custa? —exclamou o capitão, voltando-se para a equipagem…

Capitão… ninguém se atreveria. Isso foi uma brincadeira…

Mas como o capitão fazia um gesto furioso, ele afirmou que não… não era uma brincadeira… E suas explicações tornaram-se tão altamente incoerentes que foi preciso a intervenção do imediato.

Este pôs tudo em pratos limpos.

O capitão ouvia carrancudo; porém, calmo. Preferia essa explicação à hipótese impressionadora de um fantasma a persegui-lo. Mas o caso não podia ficar assim…

Bem — disse ele afinal. — Eu só quero saber quem foi o promotor desta pilhéria.

O imediato hesitou. Acusar o mestre-cuca era arriscar-se a comer sem sal ou com sal demais durante todo o resto da viagem… Acusar Sam, o mais idoso da equipagem… De súbito, veio-lhe uma inspiração e ele declarou:

Foi Bob.

Antes que o grumete voltasse a si do assombro, o capitão, que empunhara um pedaço de corda, segurou-o pela gola da blusa e aplicou-lhe seis ou oito golpes no lombo.

Assim satisfeitas as exigências da disciplina, não se falou mais nisso. Isto é, Bob falou tanto e tanto protestou contra a injustiça do castigo que, para fazê-lo calar, foi preciso que o imediato lhe desse uma moeda de seis pence e um canivete velho, que ainda tinha uma lâmina, e um saca-rolhas.


Fonte: “Eu Sei Tudo”/RJ, edição de março de 1929.

Notas:

1Tripulação de um navio.

2O quarto é o tempo durante o qual parcela da tripulação encontra-se de serviço.

 

Comentários

  1. amigo Soriano, aí você me mata com esse seu site maravilhoso! Que conto! Muito bom!

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