O MUNDO EM TREVAS - Conto Clássico de Ficção Científica - Owen Oliver
O MUNDO EM TREVAS
Owen Oliver1
(1863 – 1933)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
Em 1947, quando o mundo ficou em trevas, eu tinha vinte e oito anos, era solteiro e exercias as funções de gerente na casa de comissões Bilton & Brash. Uma tarde, às 5 horas e 20 minutos, regressava em ônibus à minha residência, em Vauxal. O dia tinha sido sereno. Nada pressagiava uma perturbação atmosférica; mas, quando o veículo entrava na rua Norfolk, o Sol se apagou, de súbito. Houve, em primeiro lugar, três relâmpagos, com intervalo de um ou dois segundos; depois, foi a escuridão absoluta.
Quase ao mesmo tempo, houve ruídos discordantes... choques, gritos, gemidos. Meu ônibus foi apertado entre outros dois, mas sem grande dano para os passageiros. O choque atirou sobre mim a companheira de banco, a quem eu mal lançara um olhar ao entrar. Tinha notado que era moça e estava vestida com decência; nada mais. Interessado pelo jornal, que comprara pouco antes, mergulhara logo na leitura, de modo que não saberia dizer se era bonita ou feia. Ela voltou a seu lugar e ficamos em silêncio, durante alguns instantes, esperando. Estávamos convencidos de que a luz não tardaria a voltar.
Mas não voltou e era uma escuridão como nunca vira. Total. Eu estava habituado a ideia de que, mesmo no escuro, com o tempo, acabamos por entrever alguma coisa. Nesse dia, não. A treva era completa, inimaginável.
—Será o fim do mundo? — perguntou uma voz, tentando gracejar.
—Foi o Sol que se apagou — disse outra.
—Não seja idiota! — protestou uma terceira voz, que parecia de um homem já idoso.
— O Sol só poderia se apagar por desintegração e nós estaríamos todos mortos.
— E quem sabe se não estamos mortos, sem saber — insinuou a primeira voz.
Nesse momento, a moça que estava a um lado, murmurou com voz trêmula:
— A vidraça se partiu com o choque e eu creio que estou com um pedacinho de vidro cravado em uma das faces.
— Oh! Com licença… Deixe ver — exclamei, sem dar pelo disparate que estava dizendo.
Palpei-lhe delicadamente o rosto e tranquilizei-a.
—Não. Pedaço de vidro não tem; mas está ferida. Enxugue o sangue. Tenho aqui um lenço limpo.
—Obrigada... Mas meu Deus! Se a luz não volta. Que horas serão?
Abri meu relógio e passei os dedos sobre o mostrador.
—Seis menos um quarto. Se a luz não voltar, será preciso fazer relógios em relevo…
—Se a luz não voltar não precisaremos de relógios — respondeu uma voz lamentosa. — Ninguém mais precisará de relógios. Ficaremos todos imóveis, esperando a morte.
Nesse momento, alguém gritou de uma janela próxima:
— Mensagem do governo, pelo rádio. O Observatório Astronômico informa que não há indícios de perturbação no sistema solar. Provavelmente, a Terra está atravessando uma zona do espaço, onde não há éter2 para transmitir os raios luminosos, ou há alguma substância desconhecida que os absorve. Pede-se o cuidado de apagar os fósforos e pontas de cigarros antes de atirá-los, porque o próprio lançamento se tornou invisível. Os ouvintes devem-se se manter em seus lugares até que se tomem providências para conduzi-los às suas casas. Recomenda-se grande economia nos víveres, porque a produção e distribuição de água e alimentos vai se tornar muito difícil. Também a luz artificial se tornou invisível. Que Deus se apiede de nós e nos restitua a luz.
—Amém — murmuraram alguns, discretamente; mas a maioria irrompeu em lamentos ou imprecações, enquanto a voz da janela concluía:
—Pede-se a todos quantos ouviram essa mensagem transmiti-la a seus semelhantes.
Houve um movimento confuso no ônibus; uns rezavam em voz alta; outros emitiam hipóteses absurdas; uma mulher soluçava convulsivamente. Dois homens saíram do veículo, praguejando.
Minha companheira de banco disse, timidamente:
—Eu esperaria com calma, se não estivesse com tanta fome. Não estava me sentindo bem; almocei pouco, não pude fazer lanche porque faltou uma, hoje, no escritório… Estou sentindo uma fraqueza de estômago quase dolorosa.
—Quer tentar? — propus. — Estamos na rua Norfolk, que eu conheço bem. Há um restaurante antes da primeira esquina.
—Ah! Sozinha eu não teria coragem… Muito obrigada.
Erguemo-nos e procurei, tateando, a saída do ônibus, sentindo a mão da desconhecida, que segurava nervosamente uma das mangas de meu casaco. Quando, afinal, pus um pé no solo e lhe estendi as mãos para ajudá-la a descer, disse:
—Sabe Deus o que vai ser andar pelas ruas com essa escuridão. Acho prudente que saibamos nossos nomes. Eu me chamo George Templeton. Além disso, em caso de dúvida, se não lhe convier falar, poderá me identificar pelo alfinete de gravata em forma de interrogação. Veja.
E coloquei um de seus dedos sobre o pequeno alfinete.
—Eu me chamo Eva Maria Rolfe — disse ela. —Poderá reconhecer-me pela altura. Veja, pouco passo de seu ombro e vou virar meu relógio-pulseira para baixo.
Tivemos que nos esgueirar entre um auto-ônibus e um táxi para chegar à calçada. Caminhamos então lentamente, encostados às paredes, mas encontramos todas as portas fechadas. Eva nada disse, mas, pelo tremor da mão pousada sobre meu braço, compreendi que estava alarmada, vibrante de terror.
—Onde mora? — perguntei.
Ela indicou uma rua distante, no fim da linha.
—Eu moro aqui perto — disse-lhe resolutamente. —A senhora não pode ficar assim e não pode pensar em alcançar sua residência, enquanto a luz não voltar, ao passo que eu apenas tenho que passar duas esquinas e dar alguns passos em uma rua transversal. Tenho um apartamento minúsculo em uma casa onde moram diversas famílias. Lá, estará em segurança e poderei lhe arranjar uma refeição.
E, sem esperar sua resposta, comecei a caminhar, com um braço estendido para diante.
Agora havia muitas pessoas andando pela rua: algumas cautelosamente, outras alucinadas, gritando nomes de criaturas que buscavam. Chegando à esquina, hesitei, com medo de perder a direção ao atravessar a rua. Uma criança se agarrou de súbito a minhas pernas, chorando e gritando: “Mamãe!”. Mas quando me curvei para ela, tentando acalmá-la, fugiu de minhas mãos.
— Que horror! — disse Eva, segurando com mais força meu braço. — Se não o tivesse encontrado, e o senhor não tivesse pena de mim, eu nunca me atreveria a caminhar assim, na escuridão. Que medo, meu Deus!,
Mas já a polícia organizava um serviço de ordem. No momento em que eu ia me aventurar às cegas, ouvi a voz de um policial gritar:
—Esquina da rua Norfolk com Northembaland.
Guiado por sua voz, animei-me, dei alguns passos, esbarrei em seu peito robusto e alcancei a outra calçada. Desviara-me um pouco; tive que procurar a esquina. Achei-a e ia pôr-me a seguir, quando um vozerio descompassado me obrigou a procurar o refúgio da parede, colocando Eva Maria por trás de mim.
Um grupo de homens, que, pela linguagem, deviam ter encontrado e saqueado uma casa de bebidas, vinha por aquela calçada, berrando, cantando, proferindo blasfêmias. Um deles, ao passar, arrancou-me a corrente do relógio, outro deu-me uma bofetada. Respondi com um soco, que o atirou longe, e, pressentindo as represálias do grupo, desviei-me bruscamente, para um lado, arrastando minha trêmula companheira.
Porém, eles seguiram para, logo depois, entrar em luta não sei com quem. Apenas ouvi gritos e pancadas.
Continuamos a caminhar e Eva disse com pavor:
—Foi Deus quem o fez sentar-se a meu lado, hoje, no ônibus.
Quantas vezes, depois disso, e até hoje, tenho dito a mim mesmo a mesma coisa.
*
Pouco adiante, esbarrei com um indivíduo que tentou revistar-me os bolsos. Recuei um pouco, repeli-o com um pontapé e tentei impedir a manobra, desviando um pouco. Mas o homem se ergueu furioso, avançou de novo e o acaso fê-lo ir dar justamente com Eva, que, ao sentir suas mãos brutais, gritou. Atirei-me como um louco e segurei o ladrão pelo pescoço. Creio que a cólera me duplicou as forças, porque ele fraqueou logo e eu o lancei ao solo com furor.
Corremos, então, encostados à parede, e alcançamos a segunda esquina, onde fomos detidos por uma massa de povo correndo em tumulto. Entre suas vociferações, distinguimos duas palavras alarmantes:
—Fogo! Incêndio!
A escuridão era a mesma. Nada se via; mas ouvimos o ruido característico das madeiras crepitando e por vezes sentíamos um hálito de calor vindo da rua transversal.
Tivemos que esperar ali mais de meia hora antes de poder atravessar a rua. Por fim, cheguei a meu quarteirão e tive que experimentar a chave em três portas antes de encontrar a de minha casa. Entramos rapidamente e tratei logo de fechar de novo. Mas quando me dirigi para a escada, alguém gritou do patamar do primeiro pavimento.
—Quem está aí? Se não responde imediatamente, rebento-lhe a cabeça.
—Sou George Templeton, o morador do n.° 8.
—Mas quem me prova que é o senhor mesmo? — começou o homem.
—É ele sim, criatura! Não está reconhecendo sua voz? — disse uma voz de mulher. — Você parece que ficou maluco.
—Maluco é você! Cale-se, senão rebento-lhe um osso — replicou o homem, com voz de quem está perturbado pelo álcool.
Não era possível pedir a uma criatura nesse estado que acolhesse Eva Maria. Ao contrário, com um gesto, toquei sua boca para significar que devia guardar silêncio e passei diante de meu pouco amável vizinho, mantendo-a do outro lado e arrastando bem os pés para que ele não ouvisse seus passos.
No segundo andar, bati na porta de dois apartamentos, onde moravam famílias; mas ambas recusaram abrir.
—Meu Deus! — gemeu Eva Maria. — Eu não me aguento mais em pé!
—Não há remédio — decidi. — Vamos para meu apartamento. Peço-lhe que confie em mim como em um irmão.
—Eu confio… — murmurou ela. — Tenho a certeza de que é um cavalheiro. E estou tão fatigada…
Tive que ampará-la para que subisse os últimos degraus e, sabe Deus como, na escuridão, preparei uma pequena ceia para nós dois.
Um relógio na casa vizinha batia meia-noite quando acabamos de comer. Pouco depois, um telefone tilintou algures.
—Estão funcionando os telefones? — exclamou Eva Maria com surpresa. — Oh! Então vou telefonar para a agência do correio da rua Spencer. Eu não tenho família em Londres; moro com uns parentes de meu cunhado, que moram ao lado dessa agência. São egoístas, frios, pouco ligam a mim; mas, em todo o caso, podem ficar inquietos.
Não consenti que ela se levantasse e desci para telefonar. O agente do correio prometeu dar o aviso aos vizinhos, quando pudesse. Não se atrevia a sair, no momento. Em compensação, comunicou-me as últimas notícias. Continuavam desconhecidas as causas do fenômeno. As trevas envolviam todo o planeta. O governo se encarregaria de distribuir víveres. Por enquanto, ninguém devia andar pelas ruas, nem admitir estranhos em suas residências. Os edifícios públicos tinham recolhido milhares de pessoas que a escuridão tinha impedido de voltar a suas casas.
— Portanto — conclui, batendo de leve nas mãos de Eva —, só lhe resta dormir aqui. Instale-se em meu quarto e eu me arranjarei aqui na sala.
*
Às seis horas, um despertador, tocando não sei onde, me arrancou do sono. As trevas continuavam. Fiz minha toalete e preparei uma refeição antes que Eva Maria despertasse. Pouco depois, um alto-falante, instalado no prédio vizinho, provavelmente pela polícia, gritou:
—Boletim do governo. Nada se sabe de novo sobre o fenômeno. Insistimos em recomendar que não abram portas nem janelas dos pavimentos térreos. Para orientar os transeuntes, há por toda a cidade alto-falantes anunciando ruas e números.
Seguia-se uma lista das casas onde os que já estivessem sem alimentos poderiam comprar carne, pão, leite… Eva Maria saiu do quarto durante essa enumeração e eu lhe declarei que ia à leiteria, onde era conhecido e naturalmente me serviriam melhor.
—Não — protestou ela. — Não me deixe aqui sozinha! Eu morreria de medo.
—Na rua, vai se arriscar.
—Mas estaremos juntos. Que seria de mim se eu ficasse aqui e lhe acontecesse alguma coisa?
Preparamos minuciosamente nossa “expedição”; amarramo-nos um ao outro com uma pequena corda e saímos. Como o açougue era o mais próximo, fomos primeiramente a ele. Mas havia ali uma verdadeira multidão, que não nos deixou aproximar das portas gradeadas. No meio dos urros e protestos de dezenas de pessoas, acabamos por distinguir a voz do açougueiro, berrando que nada mais tinha para fornecer.
A confusão era cada vez maior; os felizes, que tinham conseguido alguma carne, eram atacados e despojados por outros. Travavam-se em torno de nós verdadeiros combates. Afastamo-nos com dificuldade e procuramos a leiteria. Era menor a afluência.
Sabendo que o leiteiro morava ali mesmo, nos fundos da loja, bati em uma janela lateral e disse meu nome. Como eu era um freguês antigo, um filho do dono da casa me deu um litro de leite, meia dúzia de ovos, pão e biscoitos. Pus tudo isso num cesto, que amarrara a um braço, para que não me arrancassem das mãos, e caminhamos de novo, ao longo das paredes. De repente, esbarramos com dois homens, que me palparam rapidamente e tentaram tomar-me o cesto. Não tenho grande estatura, mas sou robusto; defendia-me resolutamente, quando ouvi um grito de Maria.
—Que foi? — perguntei.
—Bateram-me num ombro. Creio que estou ferida.
Nesse momento, recebi na cabeça uma cacetada, que me fez cair sem sentidos.
Quando voltei a mim, senti que estava em meu leito e ouvi a voz de Eva Maria, repetindo, com expressão de angústia:
—Sr. Templeton! Responda… Fale, pelo amor de Deus.
—Onde estou?
—Em seu apartamento.
E contou-me tudo. A despeito do golpe, que recebera num ombro, Eva Maria era robusta e o desespero dera-lhe forças. Conseguira arrastar-me até a porta; abrira-a com a chave, que tirara de meu bolso… Desanimara diante da escada; mas o vizinho do primeiro andar entrava nesse momento e a bebedeira dera-lhe nesse dia para serviçal. Carregara-me sem esforço até ali.
— Quanto lhe devo, Maria! — murmurei, comovido, beijando-lhe as mãos.
Três horas depois, pelo alto-falante, instalado na janela do prédio vizinho, o governo anunciou que só muito dificilmente poderia fazer nesse dia nova distribuição de alimentos. Por isso, cada qual devia fazer o possível para se manter com o que tivesse em casa, evitando ir à rua. O boletim terminava com essas palavras:
— Confiemos na misericórdia divina. Esperemos que esse horrendo fenômeno tenha fim!
Demos um balanço em nossos víveres. Tínhamos um pão, uma libra de presunto, cinco ovos, um pouco de manteiga e dois tabletes de chocolate.
*
Na manhã seguinte — digo manhã pelo cálculo das horas decorridas, porque a escuridão continuava a mesma —, não encontramos água nas torneiras. Resolvi ir até o rio com um balde e uma corda. Como na véspera, Eva Maria recusou ficar ali sozinha e saímos juntos. Felizmente, o rio era próximo, eu conhecia bem o caminho e, como as ruas estavam desertas no momento, chegamos rapidamente a uma ponte. Mas a água estava suja e salobra. Eva, mais sensível do que eu ao tormento da sede, com os nervos exasperados pelo terror, teve uma crise de desespero e desatou em soluços.
De uma janela próxima, alguém gritou:
— Largue essa pobre mulher, miserável!
Eva foi a primeira a protestar, explicando a razão de seu pranto. O homem, apiedado, deu-nos meio balde de água. Bebemos com delícia; mas, ao voltar, perdemos a orientação e caminhamos inutilmente, durante mais de uma hora. Então, esbarrando em um ônibus vazio, entramos nele e sentamo-nos para repousar. Eva Maria encostou a cabeça a meu ombro e adormeceu como uma criança. Eu, tendo o cuidado de me manter imóvel, para não perturbá-la, acabei por dormir também. Quando despertamos, o relógio de uma igreja batia cinco horas, não sei se da manhã ou da tarde. Agora era a fome que nos cruciava. Como não podíamos voltar para meu apartamento, começamos a bater de porta em porta, suplicando, ao menos, um pedaço de pão. Respondiam-nos com impropérios ou não respondiam. O balde pesava horrivelmente em meus braços enfraquecidos. Além disso, tinha que mantê-lo alto, na altura dos ombros, porque vários cães sedentos nos cercavam, querendo alcançar a água.
— Ha momentos — murmurou Eva — em que eu me lembro do que disse aquele homem, no ônibus. Acredito que morremos e que estamos no inferno.
—Não — disse eu, para animá-la. — O braço, que sinto apoiado ao meu, dá-me a impressão de vida... Vida moça vibrante e encantadora.
Por fim, os alto-falantes gritando, sem cessar, os nomes das ruas, de espaço a espaço, permitiram-me orientar nossa marcha e alcançamos minha residência.
Eva Maria deixou-se cair em uma cadeira, exausta. Eu me arrastei até a cozinha e fiz um pouco de chá. Minha companheira de desventura estava tão fraca que fui obrigado a fazê-la beber e comer como uma criança. Comi também o menos que pude, para poupar o que ainda tínhamos.
Pouco depois, o rádio deu razão a minha prudência, clamando:
— O governo não tem meios para fazer nova distribuição de víveres. Nossa única esperança é a volta da luz. Que Deus se amercie de nós.
Mais um dia passou. Dei a Eva o que nos restava e fingi que comia para que ela não recusasse. Mas, de súbito, ela me palpou as mãos com gesto rápido e, compreendendo minha piedosa burla, abraçou-me, chorando:
—Oh! George… Não sei quanto tempo nos resta de vida, mas nunca hei de esquecer o que tem feito por mim.
Tomei-lhe o rosto entre as mãos e beijei-lhe as faces cobertas de lágrimas, murmurando:
—Também não sei quanto tempo viveremos; mas venha a morte já ou daqui a cem anos, eu desejaria nunca mais me separar de ti.
—Oh! Também eu…
Ficamos assim, abraçados e imóveis, um longo momento. Ela chorava docemente e eu pronunciava a seu ouvido palavras incoerentes de ternura, resignação ou esperança.
Fomos interrompidos por um vozerio na rua. Um homem, provavelmente um farmacêutico, que enlouquecera, gritava:
—Pão! Pão para meus filhos. Dou um frasco de veneno — a libertação de todos os sofrimentos — por um pedaço de pão!
Outra voz implorou de uma janela:
—Nada mais tenho; mas, por piedade, dê-me uma gota de veneno.
—Não. Vendo-o por qualquer coisa que comer.
—Desce e toma-lhe o frasco — propôs uma voz de mulher.
Pouco depois, houve, na rua, um alarido confuso e o louco saiu a correr, perseguido por homens e cães, que latiam furiosos.
Como passamos a noite? Numa sonolência mórbida, durante a qual ouvimos, vagamente, gritos, gemidos, pancadas furiosas nas portas. Devia ser madrugada quando um clamor mais alarmante nos restituía as forças.
—Incêndio! Fogo!
Seria impressão? Sentimos um calor insólito, que parecia vir dos pavimentos inferiores. Seria o fogo em nossa casa? Sem refletir, dando-nos as mãos, descemos a escada, em susto.
Chegando à rua, eu disse, sem dar por isso:
—Não… Não é aqui o incêndio; é na rua Vitória. Veja! Eva… Há uma espécie de resplendor por trás do edifício do Parlamento.
Foi ela quem primeiro compreendeu o que significavam minhas palavras.
—Sim! — exclamou, num brado de alegria delirante. — Eu também vejo… Mas, então… A luz está voltando!
—Minha querida! — exclamei, abraçando-a com entusiasmo.
De fato, a luz ressurgia. Tudo em torno de nós — casas, veículos, pessoas, que passavam tateando —, tudo começava a surgir, como sombras ainda indistintas no negror absoluto.
Imediatamente, Eva Maria voltou a ser mulher.
—Oh! Céus… George. Pelo amor de Deus! Não olhe para mim, como estou… Deixe ao menos que eu lave o rosto.
Uma explosão formidável, irrompendo ali perto, interrompeu-a. Caí sob um monte de destroços. Mais tarde, Eva me contou que, escudada por meu corpo, nada sofrera. Arrastou-me para junto de uma parede e, sentando-se na calçada, apoiou minha cabeça sobre seus joelhos. A luz foi aumentando pouco a pouco. Viu um cavalo morto junto de nós. Todas as casas se abriam e centenas de pessoas saíam esquálidas, imundas, mas todas com a fisionomia transfigurada pela alegria. O trabalho da polícia foi admirável. Os policiais apareceram logo e começaram a pôr ordem na circulação. Os alto-falantes berravam injunções, exigindo calma. Que cada qual ficasse em sua residência. Os serviços de alimentação iam começar imediatamente.
Mas eu nada vi desses primeiros momentos da volta à luz. Só recobrei a consciência três dias depois, em um leito de hospital, com a cabeça e um braço envolvidos em ataduras.
—Eva… — foi minha primeira palavra.
Duas enfermeiras, uma já idosa e outra muito moça, curvaram-se para mim. A mais velha disse, alegremente:
— Afinal! Pode-se gabar que dormiu um sono comprido…
— Mas Eva… Onde está Eva Maria?
— A moça que o trouxe para cá? Tem vindo vê-lo todos os dias…
—Mandem chamá-la.
—Não. Ela nos pediu que não a chamássemos…
—Mas eu quero vê-la.
—Calma… Cuidado, senão pode piorar. O que ela não quer é exatamente isso; que o senhor a veja. Sim. Tem medo de que a ache muito feia.
—Oh!
—Sim — disse a enfermeira, rindo. — Tem medo de que a ache horrível; por isso, vai, primeiramente, mandar-lhe um retrato.
Havia em seu rosto enrugado uma expressão maliciosa, que me alvoroçou; seu riso, seu olhar cintilante de ironia sem maldade fizeram-me pressentir a verdade… Ou foi meu coração, que adivinhou, por instinto de enamorado, sua presença ali.
Volvi meu olhar para a outra enfermeira, a que era moça e recuara um pouco, fitando-me, porém, com mal disfarçada angustia. Contemplei seu rosto emagrecido pelos sofrimentos daqueles últimos dias, seus olhos profundos e meigos, que pareciam dilatados por uma inquietação atroz, seus lábios descorados e trêmulos mas bem desenhados, graci…
—Eva Maria… — murmurei com fervor.
A enfermeira idosa volteou triunfante:
—Está vendo, bobinha? E mais boba fui eu em concordar com essa comédia, emprestando-lhe um uniforme…
Eva Maria quis dizer qualquer coisa. Não pôde e deixou-se cair de joelhos junto de meu leito.
Senhor! Como poderia eu, algum dia, imaginar que o peso de uma cabeça feminina sobre meu peito seria, para mim, a mais doce e mais inebriante das carícias!
Fonte: “Eu Sei Tudo”/RJ, edição de setembro de 1937.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Ilustração: August Splitgerber (1844–1918).
Notas:
1Pseudônimo de Albert Flinn.
2 A antiga teoria do éter propunha a existência de um meio, substância ou campo que, preenchendo o espaço, seria necessário à propagação de forças eletromagnéticas ou gravitacionais.

Barão amigo , eu adoro este tipo de conto! Você não imagina! Putzz!
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