O JURAMENTO - Conto Clássico de Horror - Humberto de Campos
O
JURAMENTO
Humberto
de Campos
(1866
– 1934)
—
Nunca mais, meu prezado senhor, tive tranquilidade na minha vida; e vinte
séculos que viva, vinte existências que tenha na terra, serão para pagar com o
remorso de cada dia, ou, antes, de cada noite, o horror daquela vingança!
Cap Finisterre
havia deixado, na véspera, o porto do Havre, quando travamos relações, eu e
aquele cavalheiro, no "bar" do navio. Era um homem velho, magro, de
grande ossatura, tipo de Quixote dos Pampas, a que não faltava, sequer, a
barbicha comprida e rala, suja como a dos bodes. Não obstante os meses passados
no clima suave da Europa, a sua pele conservava aquela tonalidade escura e
áspera das feias do vento e do sol. Os olhos, miúdos, vivos, desconfiados,
escondiam-se órbitas fundas, sob as sobrancelhas pesadas, como duas onças em
duas furnas, mascaradas de erva grosseira. Chamava-se Ramon Gonzalez y
Gonzalez, e era, dizia ele, industrial à margem do rio Bermejo, no extremo
norte da Argentina. Possuía, ali, serrarias de madeira, além de algumas
fazendas de gado, no sul, onde vivia ultimamente, em luta, sempre, com a
natureza bravia.
—
O caso, porém, que me atormenta a vida, meu caro senhor, ocorreu no norte, há
trinta anos. Eu tinha, então, quarenta.
A
noite estava linda, como, em geral, as noites de estio, ao largo da costa francesa,
à entrada do Atlântico. Uma lasca de lua, fina e loura, tomava posse do céu, em
nome de Maomé, dando-lhe, com as suas estrelas, a feição de grande pavilhão
turco. De baixo, do bojo do navio, subia o ronco fatigado das máquinas, no
esforço esclerótico das caldeiras. E, de quando em quando, o ruído fresco de
uma vaga arrebentada no costado de ferro, e caindo de novo, em forma de chuva
grossa, sobre as espumas de outra onda nascida para morrer.
—Foi
em Corrientes que eu a conheci — começou o ancião, enquanto virava o seu
terceiro whisky and soda. — Filha de
um velho amigo meu, era quase menina, quando a vi, na visita que fiz ao pai,
meu antigo companheiro de colégio. E, ao regressar a Concepción del Bermejo,
onde ficavam as minhas propriedades, levava-a nos olhos, na alma, no coração.
Chamava-se Consuelo, era cândida e fugitiva como as espumas deste oceano que
rebenta lá fora. Tamanha foi, em suma, a impressão que me deixou, que, um mês
depois, eu regressava a Corrientes, para pedir-lhe a mão, em casamento.
—
Casou...
—
Não; não casei. Consuelo não quis, e o pai, vendo-a vinte e quatro anos mais
moça do que eu — ela andava pelos dezesseis — não a contrariou. Conformei-me
com isso, mas pedi-lhes que se conservassem meus amigos; que me não
esquecessem; que me olhassem como um parente; que me fossem, enfim, visitar em
Concepción, para que não ficasse, de tudo aquilo, o menor ressentimento. Dentro
em mim, porém, rugia o jaguar do egoísmo, o despeito do leão velho, que não
pudera devorar, como sonhara, a corça tenra que vira na campina. Aquele coração
havia de, um dia, pertencer-me. Era o meu juramento de morte.
Bateu
na mesa, com a sua grande mão de esqueleto, e pediu:
—Garçon, outro "whisky"
Limpou
a boca com as costas das mãos, como quem está habituado a beber nas tavernas ou
no campo, às pressas, sobre o dorso de um cavalo. E reatou:
—
No fim do ano, em dezembro, foram a Concepción, visitar-me, o pai e a filha.
Cerquei-os de gentilezas, de festas, de carinho. Fazíamos passeios longos, os
três. E foi em um destes que se deu a desgraça.
—
A desgraça?
—
Sim, senhor. Tínhamos planejado uma visita ao alto Soledade, onde eu havia
adquirido uma grande extensão de terras, para extração de madeiras. O senhor
não conhece o alto Bermejo... Conhece? Era floresta virgem, soturna,
impenetrada. Desembarcamos em Guahija, pequeno porto para exportação de lenha,
e entramos pela mata, viajando a manhã toda. O senhor não imagina o que são
aquelas matas! Eu tenho a impressão de que as selvas do seu Amazonas são assim.
Árvores que dois homens não abarcam, cerram fileiras, uma ao lado da outra,
numa extensão de centenas de quilômetros. E lá em cima, sobre esses milagres de
colunas poderosas, é o toldo verde e fechado, que não deixa passar gota de
chuva e que o sol só atravessa, ao meio-dia, em forma de claridade... E
começava a entardecer, quando fomos assaltados pelos índios xurupinás, que são
os mais terríveis toda a região.
—
E então?
—
Então, foi o infortúnio. Presos, manietados com cipós, fomos conduzidos ao
acampamento dos indígenas, sete léguas diante, mato a dentro... E como me
recordo, ainda, dessa travessia pela floresta, tarde toda, e depois, noite
fechada! Olhos arregalados de terror, os pulsos arroxeados pelos cipós,
Consuelo não tinha uma lágrima, e caminhava mais arrastada do que pelos seus
próprios pés. Os cabelos, os seus lindos cabelos negros e fartos, libertos da
opressão do chapéu de feltro, rolavam-lhe pelos ombros, pelo colo, pela testa,
cobrindo-lhe, às vezes, o rosto todo.
E
abrindo um parêntese na narração:
—
O senhor já viu coisa que mais excite um homem, despertando-lhe toda a
bestialidade, do que o corpo da mulher martirizada? Seminua, com os lindos
seios morenos pulando quase da camisa esfarrapada, o colo arranhado, o rosto
porejando sangue, pelo esforço físico e pelo pudor, Consuelo acordava-me na
alma de namorado sem esperança um pensamento diabólico. Eu marchava para a
morte, mas marchava calmo, resignado, feliz. Talvez não trocasse, naquele
momento, aquele caminho, recoberto de espinhos dilacerantes, pelo mais florido
da terra!
Outra
incidência:
—
Porque, o senhor sabe, acaso, o que é amar uma criatura, sabendo que nunca a
possuirá? Já imaginou, porventura, o que é ver, saber, conhecer que a mulher
que se ama, que se adora, e que nos despreza, vai cair nos braços de outro
homem, dando a outrem, com o seu beijo, com a flor do seu corpo moço, a
felicidade que sonhamos para nós? Se sabe, se imagina isso, pode compreender a
minha serenidade, ao ver na iminência de ser destruída, sem crime da minha
parte, e para sempre, a taça em que eu pretendia beber... Consuelo não seria
minha, não me daria o seu beijo, o seu corpo, mas também, não pertenceria,
nunca mais, a ninguém...
Mergulhou
as mãos, nervosamente, nos magros cabelos grisalhos, arrepiados no crânio, como
penas da crista de um pavão, e reatou:
—
Antropófagos, os xurupinás devoraram, nesse mesmo dia, os dois homens da
condução. No dia seguinte, pela manhã, comeram o meu amigo. Restávamos eu e
Consuelo.
Uma
pausa, e tornou:
—
A mim, eu sabia que me não devorariam tão cedo. Eu estava abatido, cadavérico.
A paixão vinha-me devorando, há meses, secretamente, como o fogo ao algodão.
Estava quase ossificado. E eu sabia que o índio não come, nunca, a presa nessas
condições. Prefere engordá-la, cevá-la, tratando-a durante semanas, durante um
ano inteiro.
—
E a moça?
—
Consuelo era linda e forte. Vi quando a mataram, com uma pancada vigorosa no
crânio... Como são feios os miolos, aparecendo, ensanguentados, entre a pasta
dos cabelos!... Vi quando um dos seus seios, tão redondo, tão rígido, tombado
do jirau, rolou na areia do chão, onde um velho cachorro o tomou nos dentes,
indo devorá-lo escondido... Vi quando a esquartejaram, quando a retalharam,
quando a distribuíram, em pedaços sangrentos. Impassível, como num sonho, eu
via tudo. E Só despertei do meu pasmo, quando um dos índios, o chefe, que
tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta de gordura, me veio perguntar, em um
gesto, que pedaço eu queria. Olhei as postas de carne fria, sobre as quais as
moscas zumbiam, com fúria: a mão miúda, de dedos contraídos, em um dos quais
estava, ainda, um anel que eu lhe dera; um dos pés, meio devorado e com as
cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça quase esfacelada, pendurada a um
esteio pelos cabelos; a sua perna; a sua coxa; um dos seus braços, o mais lindo
que eu tenho visto... Indiquei um pedaço de carne roxa, que aparecia,
repugnante, entre as vísceras, o qual me foi trazido, e que eu comecei, também,
a devorar.
Estremeceu
todo, e concluiu, enquanto um arrepio de horror me sacudia:
—
Era o coração. Havia cumprido o meu juramento...
E
batendo, com força, na mesa:
—
Garçon, outro duplo!
Ilustração:
Theodor de Bry (1528 – 1598).
Ah, vou ler este aqui também!
ResponderExcluirROGER (SC)
Conto absurdamente assustador, 10/10, talvez ele tenha planejado tudo
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