ESPIRITISMO - Conto Clássico de Horror - Jacques Cézembre

ESPIRITISMO

Jacques Cézembre

(1885 – 1949)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Uma noite, depois de jantar, descíamos a rua Siam, em Brest, o comandante e eu, fumando o nosso cigarro. Falávamos, se bem me lembro, da Polinésia, onde o meu velho amigo navegara numa das últimas embarcações à vela da Marinha de Guerra francesa, quando um cartaz nos fez mudar de conversa. Meio descorado pela chuva, esse cartaz deixava ainda perceber o anúncio duma conferência que se realizara no mês anterior. Não passará a imortalidade dum engodo? E eis por que, antes de chegarmos à ponte giratória do arsenal, o comandante me contou uma história de espiritismo:

“Era eu moço, está visto… Passou-se o caso longe daqui, numa dessas cidadezinhas da costa, onde um velho campanário rendado domina o casario que desce até ao porto modesto e sossegado. O inglês e eu traváramos conhecimento à mesa redonda do Connétable, onde nos tinham aproximado as anedotas e gracejos dos oficiais do fisco, do escrevente do tabelião e dos caixeiros viajantes. Como todos os ingleses, naquele tempo, o meu homem usava suíças. Passava os dias a caçar pássaros com armadilhas ou, se era tempo defeso, em longos passeios pelos campos, contemplativamente. E aí temos o meu inglês. Os outros amigos eram: Tregourou, poeta da terra não destituído de talento, mas excêntrico e melancólico; Boissiére, espécie de fidalgo lavrador neurastênico; e Le Querrec, marinheiro de acaso, embarcado pela família como castigo de várias loucuras de mocidade. Uma herança providencial permitira a Le Querrec fixar residência na terra natal. Vivia com uma encantadora pequena das Antilhas, que ele trouxera de uma estadia em Maria-Galante e a conservava menos por afeição, creio eu, do que pelo prazer de impressionar a população…

O inglês ocupava-se de espiritismo. Convenceu Trégourou a interessar-se pelas suas experiências; os outros juntaram-se a eles; e eu acompanhei os outros… Reuníamo-nos à noite em casa de Le Querrec. Depois de tomarmos chá, Antoinete desembaraçava a mesa, um guéridon1 Império que, pouco depois, sob os nossos dedos, oscilava, trepidava, girava…

Não lhe vou dar agora aqui uma lição de espiritismo. E, sem dúvida, o senhor conhece essas sessões em que a penumbra e o silêncio criam um ambiente bastante de impressionar.

Na noite do caso, quando Le Querrec nos abriu a porta, notei-lhe nos olhos um brilho singular. Fez-nos entrar, calado, grave; e, instintivamente, ficamos embaraçados, sem saber por quê. Era o semblante, o ar de Le Querrec, que nos perturbava. Olhávamos para ele espantados, sem compreender por que motivo ele se conservava naquela mudez solene. E, por mim, cheguei a admitir um gracejo.

—Temos um aqui, ao lado… — disse ele finalmente, em voz baixa.

—Um quê? —perguntou Trégourou.

—Um morto.

Ficou outra vez calado. O pêndulo dum relógio de parede detalhava os segundos…

—O cadáver está aqui, do outro lado da parede… — acrescentou, como a custo, Le Querrec. É o velho Tissot. Faleceu esta manhã.

Estávamos todos compenetrados, graves; os olhos negros de Antoinete acusavam a sua inquietação. Eu conheci o velho Tissot por, muitas vezes, o ter encontrado em casa dum sobrinho, meu camarada. Era um velho capitão de longo curso, que por muitos anos navegara nos mares da Ásia. Granjeara uma bela fortuna que tolamente guardava para outros, como egoísta e avarento que era. Chamavam-lhe familiarmente “capitão”, o que o lisonjeava. Morava com o sobrinho, o proprietário da casa habitada por Le Querrec. As duas velhas casas, a de Tissot e a ocupada pelo nosso amigo, eram paredes-meias. E, como as duas águas-furtadas se comunicavam por uma porta fechada apenas por um ferrolho, muitas vezes o marinheiro por ali passava para vir fumar uma cachimbada em nossa companhia.

Estávamos calados, impressionados, menos por causa do corpo imóvel do outro lado da parede do que pela vizinhança do seu espirito evoluindo talvez ao redor de nós…

— Agora, ele sabe… — murmurou o inglês.

— Talvez ainda não… — respondeu Trégourou. — A alma não deve deixar o invólucro carnal logo após a morte; e é possível que a do capitão se encontre ainda num estado intermediário.

A conversa prosseguiu neste tom, dando cada qual a sua opinião, até que um de nós, Boissiére creio eu, propôs que tentássemos entrar em comunicação com o espírito do defunto.

A ideia não agradou a Antoinete, supersticiosa, timorata como, em geral, as da sua raça — mas ninguém propriamente reparou nela, de tal modo a perspectiva duma experiência, que se podia tornar decisiva a todos, nos prendia e seduzia. Dez minutos depois, estávamos, quase às escuras, sentados à roda da mesa, calados, recolhidos, com os dedos sobre a madeira nua. Os nossos pensamentos evocavam intensamente, e em perfeita harmonia, o espírito do velho marinheiro; e tínhamos esquecido completamente a mulher a quem o terror imobilizara, sentada num canapé.

Passou-se longo tempo, sem novidade. Ouviram-se, depois, na mesa, aqueles estalidos rápidos, precipitados, que os espíritas chamam raps.

A mesa deslocava-se sob os nossos dedos, acusando a tomada de fluido e deixando-nos esperar que o espírito respondesse ao nosso apelo.

O inglês, então, faltou:

— Está aí um espírito? — preguntou ele. — Se é verdade, queira responder com duas pancadas.

Fez-se novamente silêncio e, depois, ouviram-se os estalidos, mas irregulares e evidentemente sem relação com a pregunta feita.

— Capitão, é o senhor?

Ao lado, o relógio continuava a marcar a passagem do tempo. Estávamos ali há longos minutos. A mesa estalava, deslizava, girando, pouco a pouco, sob os nossos fluidos combinados — mas nada de nítido, significativo, respondia ao apelo do inglês.

— Capitão! Capitão! Está ouvindo?

Quantas vezes repetiu ele essa pregunta? Não as contei. Tanto para a reforçar como para impedir que o meu pensamento prejudicasse a experiência, dissociando-se do pensamento comum, disse também, mentalmente:

—Capitão! Está ouvindo?

Lá fora, na noite, deu a meia hora depois das duas. Pareceu-me ouvir também um leve rumor na água-furtada — mas refleti que seriam ratos e não fiz maior caso. Pouco depois, porém, distingui perfeitamente um estalido na escada da água furtada e, logo a seguir, abriu-se a porta. Estávamos quase às escuras, mas no corredor a sombra era ainda mais profunda. Vi, então, uma forma clara, uma forma humana, que entrava. A mulher, como todos nós, reparou na aparição. Deu apenas um grito — mas esse grito ainda o tenho nos ouvidos. E, querendo levantar-se, com os braços estendidos, os dedos crispados para a frente, cambaleou um momento e abateu no soalho.

O fantasma chegara-se para a luz. Era indubitavelmente o capitão amortalhado — mas não um espírito. Vi isso logo, de tal modo o seu rosto, de olhos fechados, se apresentava nítido e expressivo. Parou diante do inglês, o único de nós que tivera sangue-frio bastante para ficar, meio sentado, na borda da mesa.

—Capitão, ouve o que eu digo?

Os lábios do espectro moveram-se. Distingui um “sim” débil como um suspiro…

—Está morto, capitão?

—Não — murmurou o espectro. —Por que esta escuridão ao redor de mim? Não quero… Não quero…

Trégourou tinha-se aproximado.

—Mas ele fala como um médium adormecido… Não compreendo!

—Está dormindo, capitão? —perguntou o inglês, obedecendo a uma ideia súbita.

— Sim, estou dormindo… Não quero… Não…

—Um caso de letargia! — gritou o inglês, transfigurado. — Que admirável experiência! Evitamos que um homem seja enterrado vivo.

E, imediatamente, deitando o velho sobre o canapé, ajudado por Trégourou, praticou sobre a fronte do “morto” uns passes que em breve lhe faziam abrir os olhos.

Conto-lhe agora isto, dando aos fatos certa lógica e seguimento — mas, no momento, apavorado, estúpido, não compreendi realmente grande coisa. Foi pouco a pouco, penosamente, que saí do torpor em que me achava, como grudado, pregado contra a parede. Reparei, então, na mulher estendida no tapete. Le Querrec debruçava-se sobre ela. Timidamente, pôs a mão sobre o coração de Antoinete. Li no seu olhar uma angustia terrível…

— Matamo-la…. — murmurou ele.


Fonte: “Revista da Semana”, edição de 23 de abril de 1927.


Nota:

1Pequena mesa arredondada.

 

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