MORFINA - Conto Clássico de Horror, Loucura e Morte - Humberto de Campos
MORFINA
Humberto
de Campos
(1886
– 1934)
Quando
o Carvalho Souto, meu companheiro de escritório, sofreu aquele acidente de
automóvel em que fraturou duas costelas e o braço esquerdo, eu, ia vê-lo quase
diariamente à Casa de Saúde Santa Genoveva, na Tijuca. A solicitude persistente
com que velava pelo meu amigo, fez-me, em pouco tempo, íntimo dos médicos do
estabelecimento. E de tal maneira que, trinta e quatro dias depois, quando o
Souto recebeu o boletim concedendo-lhe "alta", eu contava já um amigo
novo, na pessoa amável e mansa do Dr. Augusto de Miranda, que exercia, então,
ali, as funções de subdiretor. Filho de médico, e neto de médico, Miranda
nascera, pode-se dizer, no quarto ano de medicina. Aos sete anos já utilizava o
seu pequenino serrote de fazer gaiolas, serrando, com ele, a perna dos passarinhos
que apareciam com alguma unha doente.
Mediano de estatura,
robusto de tórax, cabelos alourados e olhos entre o azul e o verde, o
subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva era uma figura grave e simpática. O
rosto largo, e escanhoado, transpirava a energia serena e boa das almas fortes
e tranqüilas. Daí a confiança que entre nós rapidamente se estabeleceu, a
franqueza com que me falou, naquela manhã, de uma das suas doentes que ali se
achava, ainda, hospitalizada.
— Quer vê-la? Vamos... —
convidou.
A Casa de Saúde Santa
Genoveva está situada, como se sabe, na Estrada Velha da Tijuca, em um ponto
pitoresco, dominando a cidade. Ensombram-lhe as cercanias de antigo solar,
algumas dezenas de mangueiras enormes, e árvores outras, de fronde compacta e agasalhadora.
Sob uma dessas mangueiras, estirada em uma espreguiçadeira de pano branco e
vermelho, achava-se uma senhora alta, de rosto longo e olhos cavados, mas
apresentando na fisionomia cansada e enferma os traços da antiga distinção.
Devia ter sido bela, com os seus cabelos negros de ondulação larga. E
elegantíssima de porte, a avaliar pela graça do busto posto em relevo na
postura em que se encontrava.
— Preste atenção, vamos
passando... Depois que você conhecer a história trágica de sua vida, voltaremos...
- disse-me o Dr. Miranda.
Entramos por uma estrada
de mangueiras vetustas, e, enquanto caminhávamos lentamente na manhã fresca, o
subdiretor, a voz tranqüila e pausada, me falava desta maneira:
— Aquela senhora que acaba
de ver, foi casada com um dos meus companheiros de turma na Faculdade, e é a
heroína de uma das tragédias mais terríveis que vieram ter aqui dentro o seu
desfecho...
— O marido morreu? —
indaguei.
— Não. Ela, porém, o
perdeu sem que ele morresse: está desquitada. As senhoras desquitadas, são, em
nossa terra, as viúvas dos maridos vivos.
Apanhou, no chão, um
pequeno ramo uma nódoa na estrada limpa, e reatou:
— Filha de um advogado que
morreu sem fortuna, esta moça, aos dezessete anos, casou com o colega de que
lhe falo, o qual fez um dos mais belos cursos do seu tempo, mas não foi
igualmente feliz na vida prática. No primeiro ano de casamento, veio-lhe um
filho. Linda criança! Vi-a uma tarde, na rua, em companhia do pai, e não
esqueci, jamais, a sua graça infantil... Quatro anos depois de casados, foi
esta senhora uma noite atacada de cólica hepática de extraordinária violência.
O marido recorreu à terapêutica indicada no caso, mas inutilmente.
Compadeceu-se, e aplicou-lhe uma injeção de morfina. A doente sentiu alívio
imediato, e dormiu, até à noite. Ao acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em
seguida, a gritar. Nova injeção. Novo sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram
os gemidos queixando-se ela dos mesmos padecimentos. Gemia, debatia-se,
gritava, reclamando a injeção. Profissional inteligente, o marido certificou-se
de que, verdadeira a princípio, a dor, agora, era simplesmente simulada. A
morfina havia exercido a sua influência funesta! Por isso, não deu a injeção.
Desiludida de alcançar o que pretendia, a esposa calou-se. E a tranqüilidade
voltou, de novo, à intimidade do casal.
- E a tragédia?
- Espere, que a história é
longa... Ao fim de algumas semanas, começou o meu colega a observar na senhora
uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque
ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era
marido. Pôs-se vigilante, e descobriu a verdade terrível: a esposa, seduzida
pelas sensações das injeções que ele lhe aplicara, era presa, já, da
morfinomania, consumindo diversas ampolas por dia! A sua assinatura havia sido
falsificada, já, por mais de uma vez, no papel do consultório, em receitas de
responsabilidade, pondo em perigo a sua reputação profissional.
O Dr. Miranda parou, por
um momento, para acender um cigarro, e tornou:
- Com a sua experiência de
clínico, o marido compreendeu a ineficiência do seu esforço individual para
salvar a companheira infeliz. Por esse tempo, havia chegado da Europa um colega
nosso, o Dr. Stewenson, que se tinha especializado na Alemanha e na Suíça na
cura da toxicomania. Era um belo homem e um belo espírito, e o marido daquela
senhora foi à sua procura, e expôs lealmente o seu caso doméstico. Pediu-lhe
que tomasse sob os seus cuidados a esposa, e levou-a, no dia seguinte, ao
consultório. Stewenson marcou o início do tratamento para outro dia. A moça
foi, sozinha. O médico fê-la entrar para o seu gabinete, e fechou-o a chave. Em
seguida, encheu duas seringas, aplicando uma injeção na cliente, e outra em si
mesmo. E rolaram, os dois, abraçados, como dois loucos... Stewenson era
morfinômano, e o seu anúncio como especialista contra os entorpecentes não
visava senão atrair as senhoras viciadas, conquistando companheiras para os
seus delírios...
— Que horror!...
—Ao fim de algumas
semanas, o marido da pobre moça descobria a extensão tomada pelo seu
infortúnio. A esposa, ela própria, confessou-lhe tudo, fornecendo-lhe os
elementos para apurar a verdade. E ele apurou que era duas vezes desgraçado: o
Dr. Stewenson era amante de sua mulher!... Diante disso, veio a separação, com
o desquite. Não tendo sido judicial, o meu antigo colega de turma passou a dar
uma pensão à esposa, que fixou residência apartamento em Copacabana, ficando
ele num hotel no centro da cidade. Ele era, porém, um homem de temperamento apaixonado,
e não podia esquecer a criatura a quem amara tanto, e que lhe havia dado as
horas de paixão mais intensas da vida. Nenhuma outra mulher lhe satisfazia os
sentidos e o coração. E ei-lo, na da noite, alta madrugada, abandonando o seu
hotel e indo secretamente, bater à porta do apartamento de Copacabana,
tornando-se um dos amantes de sua antiga mulher.
— Mas, isso é verdade? —
perguntei,
— É verdade, e é ciência —
respondeu-me o Dr. Miranda.
Havia rodeando um tronco
de mangueira, um banco circular, de pedra. Sentamo-nos. E o subdiretor da Casa
de Saúde Santa Genoveva reatou:
— A esposa, agora entregue
a si mesma, continuava a tomar morfina, absorvendo doses espantosas. Uma tarde,
achando-se em casa, encheu a seringa, e meteu a agulha na parte anterior da
coxa. Apertou o sifão. O líquido desapareceu da agulha. No mesmo instante,
porém, a pobre rapariga soltou um grito. Uma nódoa vermelha surgira-lhe diante
dos olhos. E essa nódoa se transformou em chamas, em labaredas enormes, que a
envolviam como se a tivessem precipitado numa fogueira. Um calor intenso,
infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os
seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face,
a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia: "Chamem meu
marido, que eu estou morrendo!". Dizia, aos gritos, que estava sendo
queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis,
pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas
que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. Quando o ex-marido
chegou, encontrou-a totalmente nua, o sangue a correr-lhe da testa. E
descobriu, logo, a origem daquela crise: a agulha alcançara a artéria, entrando
a morfina, diretamente, na circulação... Daí a sensação de incêndio dentro do
qual se debatia, e a impressão de labaredas que a envolvessem e as tivesse
diante dos olhos... Não podendo detê-la sozinho, chamou o ex-esposo dois
empregados do prédio, que a subjugaram, e a amarraram, inteiramente despida, na
cama, a fim de receber a única medicação aconselhável no caso, e evitar que se
mutilasse na fúria com que se atirava pelo chão, pelos armários, pelas
paredes...
- Coitada!
- Afinal, passou a crise.
Dias e dias tinha ela permanecido entre a vida e a morte. Após as injeções
sedativas desamarraram-na. Mas ficara com os braços feridos, as mãos feridas, o
rosto ferido... O ex-esposo foi, então, de uma solicitude acima de todo
louvor... Não a abandonou um só instante. Amor ou piedade, o certo é que ficou
a seu lado até que a viu fora de perigo... Um dos primeiros cuidados da pobre
moça, logo que recobrou os sentidos, foi ver o filhinho, que contava, então,
cinco anos, e ficara com o pai, que o internara em um colégio em Botafogo. O
desejo era legítimo, e, ao vê-la melhor, o pai foi buscar o menino. A
desventurada, chorou muito, beijou muito o garoto, e, como fosse hora do
almoço, o meu colega foi para a mesa, com outras pessoas da família que ali se
achavam de visita, ficando a mãe e o filho no quarto próximo. De repente as
Pessoas que se encontravam à mesa ouviram um grito: "Corram que eu estou
matando meu filho! Corram, pelo amor de Deus!". Correram todos, e
soltaram, diante do que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos crispadas
em torno do pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as
mãos, e não podia! Ao contrário do seu desejo, os dedos cada vez mais se
contraíam, comprimindo as carnes do pequenito, que se tornara roxo, e cuja
língua saía, já, da boca, com um filete de sangue... "Salvem meu filho!...
Matem-me, mas salvem meu filho!...", gritava a pobre. Bateram-lhe nas mãos
até lhe ferirem os dedos. Quase lhe quebram os braços, com as pancadas que lhe
deram, para libertar a criança. Quando o conseguiram, era tarde. Minutos
depois, o pequenino morria...
O subdiretor da Casa de
Saúde Santa Genoveva não procurou ver o espanto que se estampava em meu rosto.
Acendeu outro cigarro, e pôs-se de pé. Fiz o mesmo.
— Agora — continuou —, a
desventurada senhora que ali viu, está boa. Mas a nossa vigilância em torno
dela é enorme.
— Para que não volte à
morfina?
O Dr. Miranda sacudiu a
cabeça, lentamente:
— Não. Para que não corte,
como tem tentado, as mãos com que estrangulou o seu filho!
E pusemo-nos a andar, de
regresso, a cabeça baixa, em silêncio, um ao lado do outro.
Ilustração:
Santiago Rosiñol (1861 – 1931)
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