OS GATOS DE ULTHAR - Conto Clássico de Terror - H. P. Lovecraft
OS
GATOS DE ULTHAR
H.
P. Lovecraft
(1890
— 1937)
Tradução
de Paulo Soriano
Há, numa terra muito
estranha, uma lei inflexível: nenhuma pessoa pode matar um gato. Em Ulthar,
antes que os cidadãos proibissem a matança de gatos, viviam um velho camponês e
sua mulher, que se divertiam capturando e matando os gatos dos vizinhos. Mas,
um certo dia, uma caravana de estranhos peregrinos entra na velha cidade,
trazendo consigo a vingança e a terrível maldição... “Os Gatos de Ulthar” são
uma breve narrativa de H. P. Lovecraft (1890 — 1937) que, de discípulo de Allan
Pöe, veio a se tornar o mais original e revolucionário dos escritores de terror
dos últimos cem anos: Lovecraft é o criador de uma terrificante mitologia
própria, que conhecemos por “horror cósmico”.
Diz-se
que em Ulthar, que se situa além do rio Skai, nenhum homem pode matar um gato;
creio nisto ao olhar o que se senta, a ronronar, diante do fogo. Porque o gato
é enigmático, íntimo das coisas estranhas que os homens não podem ver. Ele é a
alma do antigo Aegyptus e conhecedor das histórias das cidades esquecidas de
Meroë e Ophir. Ele é parente dos senhores da selva e herdeiro dos segredos da
antiga e sinistra África. A Esfinge é sua prima e ele fala seu idioma. Mas ele
é mais antigo que do a Esfinge e se recorda de coisas que ela já esqueceu.
Em
Ulthar, antes que os cidadãos proibissem a matança de gatos, viviam um velho
camponês e sua mulher, que se divertiam capturando e matando os gatos dos
vizinhos. Por que eles faziam isso, eu não sei; todavia, há muitas pessoas que
odeiam a voz noturna dos gatos e se incomodam com suas correrias furtivas por
pátios e jardins no crepúsculo. Mas, seja qual for a razão, esse homem velho e
sua mulher se deleitavam com a captura e morte de todos os gatos que se
acercavam de sua cabana; e, pelos gritos que eram ouvidos depois do anoitecer,
vários aldeões imaginavam que a maneira de matá-los era extremamente peculiar.
Mas os aldeões não discutiam sobre estas coisas com o velho e sua mulher; seja
por causa da expressão habitual de seus rostos encarquilhados, seja porque a
cabana era minúscula e tenebrosamente escondida sob os carvalhos que se
espraiavam na parte de trás de uma chácara arruinada. Na verdade, por mais que
os donos dos gatos odiassem essas pessoas estranhas, temiam-nas ainda mais; e,
em vez de puni-los como brutais assassinos, somente se acautelavam para que
nenhuma mascote querida, ou hábil caçador de ratos, se desviasse em direção à
cabana escondida sob as árvores sombrias. Quando por algum inevitável descuido
algum gato sumia, e ouviam-se alaridos depois do anoitecer, àquele que perdera
o animal restava apenas o lamento impotente; ou o consolo de agradecer à Sorte
por não haver sido um de seus filhos quem desaparecera. Pois o povo de Ulthar
era simples, e desconhecia a origem dos gatos primevos.
Certo
dia, uma caravana de estranhos peregrinos, procedida do Sul, entrou nas ruas
estreitas e pavimentadas de Ulthar. Aqueles peregrinos eram escuros, diferentes
de outros povos andarilhos que passava pela aldeia duas vezes por ano. Nos
mercados, vaticinavam a sorte em troca de prata, e compravam contas coloridas
dos mercadores. Qual era a terra natal desses peregrinos, ninguém saberia
dizê-lo; mas via-se que eram dados a estranhas e extravagantes orações, e que
as laterais de seus vagões eram pintadas com esquisitas figuras de corpos
humanos com cabeças de gatos, falcões, carneiros e leões. E o líder da caravana
usava um toucado com dois cornos e um curioso disco entre eles.
Havia
nessa singular caravana um menino sem pai nem mãe com um gatinho preto para
acalentar. A praga não havia sido generosa com ele, mas lhe havia deixado a
coisinha peluda para mitigar a sua dor; e quando se é muito jovem, encontra-se
um grande alívio nas animadas travessuras de um gatinho preto. Dessa maneira, o
menino, a quem o povo escuro chamava de Menes, sorria mais que chorava, a
brincar com o seu gatinho gracioso, sentado nos degraus do vagão estranhamente
pintado.
Certo
dia, durante a terceira semana de estadia dos viajantes em Ulthar, Menes não
conseguiu achar o seu gatinho; e, quando chorava alto no mercado, alguns aldeões
contaram-lhe a história do homem velho e sua mulher e dos ruídos escutados à
noite. Ao ouvir essas coisas, seu pranto deu lugar à meditação e, finalmente, à
oração. Ele estendeu os braços para o alto, em direção ao Sol e rezou em um
idioma que nenhum dos aldeões pôde compreender, embora, em verdade, estes não
se esforçassem muito em fazê-lo, pois as suas atenções foram absorvidas pelo
céu e pelas estanhas formas que as nuvens assumiam. Isto era muito estranho,
pois, enquanto o garotinho pronunciava a sua súplica, pareciam formar-se no
firmamento figuras sombrias e nebulosas de coisas exóticas; de criaturas
híbridas coroadas com discos ladeados de cornos. A natureza é repleta de
ilusões tais que impressionam as pessoas imaginativas.
Naquela
noite, os peregrinos deixaram Ulthar e jamais foram vistos novamente. E os
chefes de família ficaram preocupados quando notaram que em toda a aldeia não
havia um só gato. De cada lar, o gato de família havia desaparecido: gatos
pequenos e grandes, cinza, pretos, rajados, amarelos e brancos. O velho Kranon,
burgomestre, jurou que os viandantes escuros haviam levado consigo todos os
gatos como vingança pela morte do gatinho de Menes, e amaldiçoou a caravana e o
menino. Mas Nith, o magro escrivão, declarou que o velho camponês e sua esposa
eram os maiores suspeitos, porquanto o seu ódio por gatos era famoso e cada vez
mais ousado. Ainda assim, ninguém se atreveu a queixar-se ao sinistro casal;
nem mesmo quando Atal, o filho do estalajadeiro, jurou que havia visto todos os
gatos de Ulthar, ao entardecer, sob as árvores, no quintal maldito. Eles
caminhavam em círculos, solene e lentamente, ao redor da cabana, aos pares,
como se realizassem algum inaudito rito bestial. Os aldeões não sabiam até onde
poderiam acreditar num garoto tão pequeno; e, embora temessem que o maldito
casal houvesse levado os gatos à morte, preferiam não confrontar o velho
camponês até que este fosse encontrado fora de seu sítio repulsivo e sombrio.
Deste
modo, a aldeia de Ulthar dormiu envolta por um ódio inútil. E quando as pessoas
acordaram, ao amanhecer — vejam isto! — , todos os gatos estavam de volta ao
costumeiro lar. Grandes e pequenos, cinza, pretos, rajados, amarelos e brancos,
nenhum deles estava faltando. Voltaram gordos e muito luzidios, ronronando de
satisfação. Os cidadãos comentavam entre si o acontecimento e não pouco se
maravilhavam dele. O velho Kranon novamente insistia em que o povo escuro os
havia levado, já que gato algum voltava com vida da casa do velho homem e sua
mulher. Mas todos estavam de acordo em um ponto: que a recusa de todos os gatos
de comer a sua ração de carne ou de beber em seus pratinhos de leite era
extremamente curiosa. E, por dois dias inteiros, os gatos de Ulthar, lustrosos
e preguiçosos, não tocaram na comida, ficando apenas deitados junto ao fogo ou
sob o Sol.
Uma
semana se passou até que os aldeões notassem que, na cabana sob as árvores, ao
entardecer, as luzes não brilhavam através das janelas. Depois, o magro Nith
observou que ninguém tinha visto o velho ou a sua mulher desde o dia em que os
gatos sumiram. Na semana seguinte, o burgomestre resolveu superar os seus
temores e bateu à porta da estranhamente silenciosa cabana, em cumprimento ao
seu dever de ofício, mas tendo o cuidado de levar consigo, como testemunhas, o
ferreiro Shang e o cortador de pedras Thull. E quando derrubaram a frágil
porta, encontram apenas isto: dois esqueletos humanos, limpos, completamente
descarnados, sobre o chão de terra, e uma porção de singulares besouros rastejando
pelos cantos escuros da cabana.
Posteriormente,
houve muito falatório entre os cidadãos de Ulthar. Zath, o magistrado, discutiu
longamente com Nith, o magro escrivão; e as pessoas assediaram Kranon e Shang e
Thul com perguntas. Até mesmo o pequeno Atal, o filho do estalajadeiro, foi
minuciosamente interrogado e, como recompensa, ganhou confeitos. Falava-se do
velho camponês e sua esposa, da caravana de peregrinos escuros, do pequeno
Menes e seu gato preto, da oração de Menes e do céu misterioso durante a prece,
das proezas dos gatos na noite em que partiu a caravana, e do que foi
encontrado na cabana sob as árvores, naquele sítio repugnante.
E,
no final, os cidadãos aprovaram aquela extraordinária lei, a que é contada
pelos mercadores Hetheg e discutida por viajantes em Nir: a de que em Ulthar
nenhum homem poderá jamais matar um gato.
Fantástico ! H.P escrevia de forma maravilhosa.
ResponderExcluirUm ótimo conto com uma lição de moral fervorosa.
Bem feito!!!
ResponderExcluirOlha eu gostei akakak
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