NAPOLEÃO E O ESPECTRO - Conto Clássico Fantástico - Charlotte Brontë


NAPOLEÃO E O ESPECTRO

Por Charlotte Brontë

(1816-1855)

  

Bem, como estava dizendo, o imperador foi para cama.

— Chavalier — disse ele a seu camareiro —, antes que saias, abaixa as cortinas e fecha as janelas do quarto.

Chavalier fez o que lhe foi ordenado e, em seguida, tomando o candelabro, saiu.

Alguns minutos depois, o imperador sentiu que o travesseiro endurecia, e se ergueu para ajeitá-lo. Ao fazê-lo, escutou um breve farfalhar próximo à cabeceira. Sua majestade aguçou os ouvidos, mas tudo estava em silêncio quando ele voltou a se deitar.

Mal havia ele se acomodado numa calma atitude de repouso, sentiu-se incomodado pela sede. Erguendo-se no cotovelo, alcançou um copo de limonada na mesa de cabeceira. Refrescou-se com um longo trago. Quando devolvia o copo à mesinha, um gemido profundo elevou-se a partir de um armário num canto do quarto.

 — Quem está aí? — gritou o imperador, lançando mão da pistola. — Fala, ou eu te estouro os miolos!

Esta ameaça não produziu outro efeito que não uma risada curta e aguda, seguida de um silêncio mortal.

O imperador ergueu-se de seu leito e, jogando sobre o corpo, às pressas, um robe de chambre, que jazia pendurado no encosto de uma cadeira, avançou corajosamente para o armário assombrado. Quando abriu a porta, algo farfalhou. Ele saltou adiante com a espada na mão. Nenhuma alma ou mesmo substância apareceu, e o farfalhar, era evidente, procedia da queda de um manto que estivera pendurado em um pino da porta.

Um tanto envergonhado de si mesmo, voltou para a cama.

Justamente quando ia fechar novamente os olhos, a luz das três velas de cera, que ardiam num candelabro de prata sobre o parapeito lareira, minguou subitamente. Ele olhou para cima. Algo negro, uma sombra opaca, obscurecia o ambiente. Suando de terror, o imperador estendeu a mão para alcançar a corda da campainha, mas um ser invisível a arrebatou rudemente de seu alcance. No mesmo instante, a sombra sinistra desapareceu.

 — Ora! — exclamou Napoleão. — Foi apenas uma ilusão de ótica.

 — Será que foi mesmo? — sussurrou uma voz cava, num profundo e misterioso tom, próxima a seu ouvido. — Foi uma ilusão, imperador da França? Não! Tudo o que tens visto e ouvido nada mais é que uma triste e premonitória realidade. Levanta-te, tu que ostentas o estandarte da águia. Acorda, tu que brandes o cetro de lírio. Segue-me, Napoleão e verás mais.

Quando a voz silenciou, um vulto começou a se formar diante de seus olhos atônitos. Era o vulto de um homem alto e magro, vestido com um casaco azul bordejado por rendas douradas. Trajava um lenço preto bem apertado em torno do pescoço, preso por estiletes atrás de cada orelha. Seu semblante era lívido. A língua assomava por entre os dentes, e os olhos vítreos e injetados projetavam-se assustadoramente das órbitas.

 — Mon Dieu! — exclamou o imperador. — O que estou vendo? Espectro, de onde vens?

A aparição nada disse. Mas, deslizando para frente e com o dedo levantado, instou o imperador a segui-lo.

Sob o domínio de uma influência misteriosa, que o privou da capacidade de pensar e agir por si mesmo, o imperador obedeceu em silêncio.

A sólida parede do aposento se abriu quando eles se aproximaram. E, quando ambos a transpuseram, ela se fechou atrás deles com um estrondo de trovão.

Estariam eles agora na total escuridão se uma luz fraca não flutuasse ao redor do fantasma, revelando as úmidas paredes de uma passagem longa e abobadada, na qual avançaram rápida e silenciosamente. Pouco depois, uma brisa fria, percorrendo lastimosamente as abóbadas em arco, e fazendo com que o imperador cingisse ao corpo a camisola solta, anunciou a proximidade de um espaço aberto.

Logo chegaram ao ar livre, e Napoleão encontrou-se em uma das principais ruas de Paris.

 — Digno Espírito — disse ele, a tiritar no frio ar noturno —, permite-me retornar e abrigar-me com algo mais. Estarei contigo novamente num minuto.

 — Caminha — respondeu o seu companheiro, severamente.

Apesar da crescente indignação, que quase o sufocou, o imperador se sentiu compelido a obedecer.

Passaram por ruas desertas e chegaram a uma nobre casa construída às margens do Sena. Ali, o espectro parou. Abriram-se os portões para recebê-los. Eles penetraram em um grande vestíbulo de mármore, parcialmente coberto por uma cortina amplamente corrida, por cujas dobras semitransparentes vislumbrava-se uma luz a arder com um brilho deslumbrante. Delicadas silhuetas femininas, ricamente trajadas, enfileiravam-se diante dessa tela. Em suas cabeças, ostentavam grinaldas das mais belas flores, mas seus rostos estavam cobertos por máscaras horrendas, que representavam a face da morte.

 — Que aberração é esta? — gritou o imperador, esforçando-se por livrar-se dos grilhões mentais que, em contrariedade à sua vontade, faziam-no prisioneiro. — Onde estou e por que fui trazido aqui?

 — Silêncio! — disse-lhe o guia, pendendo ainda mais uma língua negra e sanguinolenta. — Se queres escapar da morte instantânea, faz silêncio.

O imperador teria respondido, com a sua natural coragem, capaz de superar o medo incipiente que o subjugara temporariamente. Todavia, neste mesmo instante, uma música selvagem, sobrenatural, expandiu-se por detrás da cortina, que ia e vinha, e se enfunava, como se agitada por uma comoção interna ou uma batalha de ventos ondulantes. Entrementes, uma amálgama opressiva de odores putrefatos, combinada com as mais ricas fragrâncias de perfumes orientais, assaltou o vestíbulo mal-assombrado.

Um murmúrio de múltiplas vozes foi ouvido à distância, e algo agarrou ansiosamente o seu braço por trás.

Ele voltou-se inopinadamente. Seus olhos cruzaram-se com o familiar semblante de Maria Luísa.

 — O quê? Tu também estás nesse lugar infernal? — perguntou. — O que te traz aqui?

 — Vossa Majestade me permite fazer a mesma pergunta? — disse a imperatriz, a sorrir.

Ele não respondeu. O espanto não o permitiu.

Já não mais havia cortina entre ele e a luz. Ela havia desaparecido como se por um passe de mágica, e um esplêndido lustre surgiu sobre a sua cabeça. Um grupo de senhoras, ricamente vestidas, mas sem máscaras da morte, estava ao seu redor, e uma adequada proporção de alegres cavalheiros misturava-se a elas. A música prosseguia, mas procedia de um grupo de músicos mortais, que compunham uma orquestra ao alcance das mãos. O ar ainda rescendia a incenso, mas sem misturar-se ao miasma.

 — Mon Dieu! — gritou o imperador —, como foi que tudo isso aconteceu? Onde está Piche?

 — Piche? — respondeu a imperatriz. — O que Vossa Majestade quer dizer? Não seria melhor que deixar a sala e retirar-se para descansar?

 — Deixar a sala? Por quê? Onde estou?

 — Vossa Majestade está na minha sala de estar privada, cercado por algumas pessoas da corte, a quem convidei para um baile esta noite. Vossa Majestade entrou há poucos minutos, em trajes de dormir, com os olhos fixos e arregalados. Suponho que, pelo seu ar assombrado, Vossa Majestade estava andando em pleno sono.

O imperador caiu imediatamente em um estado de catalepsia, no qual permaneceu durante toda a noite e a maior parte do dia seguinte.

 

 

Versão em português de Paulo Soriano.


 

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