NÉVOA NO FUNERAL - Conto Fúnebre - Maycon Guedes
NÉVOA NO FUNERAL
Maycon Guedes
Sobrevivi
ao incidente na cidade de Franco da Rocha; um evento bizarro que começou na
salinha de um velório. O que eu vou relatar aconteceu há pouco mais de uma
década, mas eu ainda me lembro, perfeitamente, daquele maldito cheiro de vela
que avançava para dentro de minhas narinas; lembro de como meu corpo estremecia
de pavor; e hoje em dia, nas noites mais frias, quando o vento uiva sua nefasta
sinfonia em minha janela, eu ainda consigo ouvir os gritos de desespero das
pessoas que estavam presentes naquele velório; e mais, aqui, na escuridão do
meu quarto… Oh! Maldição!... Ainda posso ouvir os gemidos dos seres infernais
que vieram com a névoa no fatídico dia.
Estávamos
no velório do Tio Afonso naquele dia, e na salinha em frente, a amante do meu
tio também estava sendo velada. Eles mantinham um caso às escondidas, e
enquanto voltavam de um motel, no meio da noite, sofreram um grave acidente de
carro. O Tio Afonso lutou por sua vida até o hospital, mas não resistiu, já a
sua amante, morreu no local, prensada por um carro-forte; nas palavras de
alguns transeuntes, a visão de boa parte do corpo da pobre mulher, esmagada
entre as ferragens, era idêntico a um acervo de carne moída expelido pelo aço
triturante de um açougue. Todavia, os responsáveis pelo manejo do corpo fizeram
um ótimo trabalho antes de colocá-la no caixão, mantendo seu busto quase
intacto, apesar do rosto parcialmente danificado, e a parte inferior de seu
corpo, a mais agredida durante o acidente, exigiu um minucioso trabalho para
que aquele quebra-cabeça de carne e osso fosse montado; e apesar da aparência
disforme e esquelética que a amante se encontrava, puderam manter o caixão
aberto durante o velório, cobrindo a deformidade inferior do corpo com lindas
flores brancas.
A
tristeza era visível no rosto de todos. A melancolia era quase palpável entre
as quatro paredes do velório; o ar fúnebre, que nos cobria como um lençol,
penetrando em nossa pele como um abraço depressivo, percorria por todo o
corredor que dava acesso ao lado de fora; e lá fora a melancolia também se
manifestava, na estreita rua de terra, permeada pelas lamentosas árvores secas
do inverno, e, também, no grande portão enferrujado que servia de pouso para
alguns corvos. Atravessando a rua de terra, que ficava rente a entrada do
velório, se encontrava um muro repleto de lodo; muro esse que dividia, do lado
de cá, as duas salinhas do velório, e do lado de lá, lápides, covas e jazigos.
Aquele foi um triste dia para muitos; dois velórios, duas famílias desoladas,
duas vidas que se foram.
O
carro fúnebre que trouxe o cadáver do meu tio e de sua amante havia partido há
mais ou menos uma hora, mas logo retornou, estacionando novamente, com mais um
defunto que substituiria em breve o lugar do meu Tio Afonso, assim que seu
velório acabasse. Não éramos a única família de luto naquele dia. Carros e mais
carros chegavam no cemitério, trazendo os familiares do próximo morto que seria
velado na salinha onde estávamos. Do lado de fora havia uma família totalmente
desconhecida para nós, mas que compartilhava do mesmo sentimento lastimável que
o nosso, e eles aguardavam, enquanto nos despedíamos do Tio Afonso, para que
mais tarde, eles também pudessem dar adeus ao seu ente querido, agora falecido.
Não
bastasse o velório do meu tio, o de sua amante, e o daquela família que
aguardava do lado de fora, recebemos a notícia de que mais tarde o carro
funerário partiria em busca de mais um morto; bem-afortunada era a Morte
naquela fria tarde de domingo. Fomos notificados de que em quinze minutos o
caixão do meu tio, e o de sua amante, deveria ser fechado para seguir caminho
entre as lápides. Entre choros e lamentos, nos aproximamos do Tio Afonso para
um último adeus, inclusive minha tia que, deixando o rancor de lado,
despedia-se de seu infiel defunto com um beijo na testa, aos prantos. O mesmo
acontecia no velório da amante defunta. Eu fui o último a me aproximar do
caixão para me despedir do meu tio, tendo que ficar bem próximo daquele corpo
enrijecido, de coloração de cera velha — deplorável livor mortis — mas
fui interrompido, pois foi exatamente naquele momento que se iniciou os
momentos mais aterrorizantes da minha vida.
Alguém
invadiu a sala do velório; era um homem barbudo, de olhos arregalados,
semblante assustado, tentava dizer algo, mas faltava fôlego para se expressar.
Com a mão no peito e esforçando-se para respirar, ele finalmente conseguiu
pronunciar algumas palavras daquela boca seca e esbranquiçada. Dizia ele, já
rouco, que “Eles” estavam se aproximando. Tentamos acalmar aquele homem e
pedimos para que ele se explicasse melhor, mas, a única coisa que ele fazia era
apontar o dedo trêmulo para o lado de fora, dizendo que “Eles” estavam se
aproximando e que deveríamos fazer silêncio. Fui buscar água para o homem, mas
desisti, logo em seguida, quando vi as pessoas que estavam do lado de fora
entrando ligeiramente pela estreita porta do velório, todos amontoados e desesperados.
A salinha onde velávamos o Tio Afonso agora estava lotada; eu e minha família,
a família da amante, e as pessoas que estavam lá fora dividiam o mesmo espaço
funesto.
O
motorista do carro funerário, um dos desesperados que entrou na salinha aos
berros, começou a falar, apoiando firmemente as mãos no caixão do meu tio.
—
Ele retornou e eu pude ver com meus próprios olhos — disse o motorista do
veículo fúnebre — vi que a multidão corria para dentro do velório enquanto eu
fumava meu cigarro no carro, sem entender o que estava acontecendo. Pensei que
os barulhos vindo de trás do meu carro funerário eram das pessoas trombando na
traseira, mas não, quando olhei pelo retrovisor, notei que a tampa do caixão
estava se movendo, o mesmo caixão que me acompanhou durante toda a viagem, com
um morto dentro. Meu Deus, como isso é possível?!
Um senhor aglomerado junto a nós se manifestou:
—
Você está dizendo que meu filho está vivo? O corpo que você trouxe naquele
carro funerário? Você tem certeza? Meu filho? Preciso vê-lo! Ajudem-me a chegar
ao carro funerário! Oh, graças ao bom Deus, meu filho querido abriu a tampa do
caixão. Ele está vivo! Está vivo! — gritava o senhorzinho enquanto tentava se
movimentar apoiado em sua bengala, dando pequenos passos bambos, acompanhado de
sua sobrinha que o ajudava a se locomover.
O
homem barbudo, ao retomar o fôlego, alertou o velho e sua sobrinha de que não
era uma boa ideia irem para o lado de fora, mas foi ignorado; a esperança do
velho em rever seu amado filho supostamente vivo era mais forte do que tudo, e
nisso, algumas pessoas o seguiram, sobrando apenas seis pessoas ao meu lado
rodeando o caixão do Tio Afonso.
Não
demorou muito para a sobrinha retornar apressada para dentro do velório,
gritando:
—
Não sei o que se passa lá fora, mas é realmente seguro que fiquemos aqui
dentro. O motorista não estava delirando; o filho do meu tio saiu mesmo do
caixão; ele caminhava lentamente e veio de encontro a nós, pronunciando algumas
palavras indecifráveis, como se o ódio tomasse conta do seu ser. Fiquei
apavorada e decidi voltar para cá, deixando o teimoso do meu tio para o lado de
fora.
Do
outro lado do muro, onde os enterrados permaneciam em sono perpétuo, a jovem
assustada disse ter visto um nevoeiro se formando, e de lá, vozes pronunciavam
um estranho e assustador dialeto em sincronia; logo pudemos ouvir as vozes que
ecoavam lá fora se aproximando do velório, e não demorou muito para que a névoa
invadisse o local onde estávamos. Gradualmente, nossa visão ficou embaçada com
o gélido nevoeiro. A bruma se alastrava com velocidade, diferente de todas que
já vi, carregada de um grotesco aroma de enxofre e pus, extremamente
desagradável, causando ânsia em todos nós. A escuridão é assustadora para
muitas pessoas, mas, após aquele dia, o oposto da escuridão é o que realmente
me atormenta, a claridade em excesso, o brancor de um nevoeiro putridamente
perfumado.
Murmúrios
vindo do corredor nos mantiveram em alerta e em silêncio, logo, passos
rastejantes anunciavam que algo se aproximava da sala onde estávamos.
Sutilmente uma silhueta se tornava cada vez mais perceptível na névoa maldita,
e a cada passo que a criatura dava, mais visível ficava. Meus olhos ardiam e
lacrimejavam, enxergando apenas névoa e silhuetas. Dei ligeiros passos para
trás enquanto aquele ser vinha em minha direção. Minha lombar foi ao encontro
do caixão do Tio Afonso, apalpei o caixote fúnebre até passar para o outro
lado, onde eu acreditava ser mais seguro, podendo ficar, pelo menos, alguns
centímetros distante do ser que se aproximava lentamente. A névoa se dissipou
com rapidez, e então, o rosto sinistro de olhos-cozidos veio à tona; era um defunto
de lábios inchados, de aparência pegajosa e nojenta, espumando pequenas
partículas de saliva que escorriam até o queixo. O grito de uma senhora fez com
que o defunto mudasse seu curso, desistindo de mim, virando-se e indo ao
encontro do berro desesperado daquela pobre mulher. Aproveitamos a oportunidade
e saímos ligeiros da salinha, correndo para o fim do corredor enquanto os
gritos da senhora minimizavam até atingir o silêncio.
Ficamos
encostados na parede no fim do corredor, sem saber para onde fugir, observando
a passagem que dava acesso ao lado de fora, alguns metros à nossa frente, onde
o nevoeiro ainda era denso. Na metade do corredor, do lado esquerdo, estava a
entrada para a salinha onde jazia meu tio, e do lado direito a entrada para a
salinha da amante, lugar de onde veio um estrondo que nos assustou, e eu estava
convicto de que o barulho foi causado pela queda de seu caixão — "Oh,
criatura bestial ressuscitada pela bruma de enxofre; sei que está acordada,
maldita mulher!" — Resmungava baixinho o homem ao meu lado. Após o
estrondo, gemidos dolorosos verbalizaram de dentro da salinha da amante. De
tanto medo, nos esprememos na parede; não havia escapatória, apenas conservamos
o silêncio e aguardamos.
Tentarei
descrever a mórbida aparência da criatura. Vagarosamente, ela saiu da salinha
do velório em direção ao corredor onde estávamos; primeiro surgiu uma de suas
mãos, horrorosa, semelhante a pequenos galhos secos, segurando com dificuldade
uma vela já apagada; em seguida surgiu sua face maléfica, de coloração de cera
velha, escrota, com leves marcas de costura; seus olhos estavam abertos, porém,
cinzentos como massa de cimento, e a parte de trás da cabeça carecia do
grisalho cabelo de palha. Logo seu tronco e suas pernas surgiram no corredor, e
a cada passo que a defunta seminua dava, sua camisola deslizava até o chão,
deixando à mostra aquele bizarro corpo nu, similar a uma marionete destroçada,
de andar desengonçado, trepidando os ombros como uma britadeira; e o pouco que
sobrou de sua costela, remendada e de aparência repugnante, movia-se da forma
mais estranha que se pode imaginar; e a cada passo que a criatura dava, era
possível visualizar seus ossos finos e pontiagudos movimentando-se para todos
os ângulos, roçando e rasgando a carne costurada, de dentro para fora,
desfazendo boa quantidade dos pontos feito pelo costureiro de cadáveres; os
míseros pedaços mortais desencaixavam-se daquele ser pútrido. A carcaça
demoníaca veio em nossa direção enquanto lançava uma risada tenebrosa, deixando
cair tufos de algodão que estavam cobrindo sua boca. Eu não sabia distinguir se
ela ria, chorava, ou estava gemendo de dor, ou de prazer, só sei que nunca mais
ouvi algo tão assustador saindo da boca de alguém. O próprio Monstro De
Frankenstein temeria aquela visão.
Instintivamente,
corri em direção à criatura e, ao me aproximar, joguei-me para o lado esquerdo,
levando meu ombro a um impacto com a parede, conseguindo passar pela defunta
sem ser pego. Parei mais à frente, ainda no corredor, fazendo sinal para que as
outras pessoas viessem comigo, foi quando percebi que meu Tio Afonso estava
sentado em seu caixão, fixando o olhar em mim, e o outro defunto estava imóvel
no canto da parede. Ninguém teve coragem de fazer o que fiz, continuaram se
espremendo na parede enquanto a podre mulher os encurralava. Eu não suportava
mais a visão daquelas terríveis nádegas em movimento; corri para fora do
velório e avistei o crepúsculo vespertino, enquanto os gritos dos que ficaram
lá dentro entoavam em agonia. A névoa ainda era presente em alguns pontos, onde
algumas silhuetas de mortos ressuscitados perambulavam, e do outro lado do muro
ainda era possível ouvir as vozes demoníacas.
Entrei
no carro funerário e pisei no acelerador. Enquanto eu dirigia, notava muitas
velas acesas espalhadas pela estrada. Peguei um atalho numa ruazinha entre as
lápides, e da janela do carro eu podia ver, com um pouco de dificuldade, por
conta da sútil névoa, diversos corvos se aglomerando nas cruzes de cimento, ou
sobrevoando alguns defuntos ambulantes; eu podia enxergar a terra das covas
movimentando-se, onde mais seres sinistros insistiam em sair de suas
sepulturas, e por todo canto, pessoas clamavam por socorro. Logo eu estaria
longe daquele lugar, pegando a estrada para longe daquela cidade sinistra.
Desde então nunca retornei, e este é apenas um dos relatos dos sobreviventes de
Franco da Rocha; e sim, existem muitos outros casos assustadores, de pessoas
que estiveram face a face com o mal. Agora, já passa da meia-noite e, como de
costume, deito minha cabeça no travesseiro para tentar dormir, e enquanto o
sono não chega, permaneço, mais uma vez, como todas as noites dos últimos treze
anos, observando o ser nu que caminha no corredor do meu quarto, carregando sua
vela fumacenta, me observando até que eu apague de sono, quando, na verdade,
ela espera que eu apague de vez, para me carregar, sabe-se lá para qual inferno
de onde ela veio.
Obrigado por publicar 😁
ResponderExcluirDe nada, Maycon. É umprazer publicá-lo.
Excluiramei a historia parabéns
ExcluirMuito interessante este conto, gostei
ResponderExcluirObrigado :D
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