O HOMEM E A SERPENTE - Conto Clássico de Horror - Ambrose Bierce
O HOMEM E A
SERPENTE
Ambrose Bierce
(1842 – 1914?)
Tradução de autor desconhecido do séc. XX
I
"É informação
segura, e por tantos atestada, que atualmente as pessoas prudentes e doutas não
a desmentem, que a serpente tem nos olhos uma propriedade magnética, de tal
ordem que todo aquele que lhe cai no campo da visão é atraído, a despeito de
sua vontade, e perece sem remissão pela mordedura do animal."
Estendido
contra a vontade num sofá, de roupão e chinelas, Harker Brayton sorriu ao ler a
frase acima no velho "Maravilhas da Ciência" de Morryster.
—
A única maravilha no caso — disse consigo mesmo — é que os prudentes e sábios
do tempo de Morryster tenham acreditado em tal absurdo, rejeitado em nossa
época mesmo pelos ignorantes.
Seguiu-se
uma série de reflexões — pois Brayton era um pensador — e, inconscientemente,
ele baixou o livro, sem desviar a direção do olhar. Assim que o livro ficou
abaixo da linha da visão, algo, num canto obscuro do quarto, despertou-lhe a
atenção para o que o cercava. O que viu, na sombra debaixo da cama, foram dois
pequenos pontos luminosos, com um intervalo aparente de uma polegada. Deviam
ser reflexos do bico de gás acima dele nas cabeças metálicas dos pregos;
prestou-lhes pouca atenção e continuou a leitura. Um momento depois alguma
coisa — um impulso que não se lembrou de analisar — impeliu-o a baixar de novo
o livro e procurar o que vira antes. Os pontos luminosos ainda estavam ali.
Pareciam ter-se tornado mais brilhantes do que anteriormente, luzindo com um
brilho esverdeado, que a princípio não observara. Julgou também que se tinha
movido um tantinho, estavam um bocadinho mais perto. Contudo, ainda se
conservavam muito à sombra para revelar sua natureza e origem a uma atenção
descurada, e ele retomou a leitura. De repente, alguma coisa no texto
sugeriu-lhe uma lembrança que o fez estremecer e baixar o livro pela terceira
vez para o lado do sofá, donde, escapando-lhe da mão, ele caiu, rolando no
assoalho, de lombada para cima. Erguido a meio, Brayton fitava decididamente a
escuridão debaixo da cama, onde os pontos luminosos brilhavam, parecia-lhe, com
redobrado fulgor. Sua atenção agora estava inteiramente desperta, seu olhar
ansioso e dominador. Descobriu quase diretamente abaixo da guarda dos pés da cama
as espirais de uma grande cobra... os pontos luminosos eram seus olhos! A
cabeça horrível, lançada horizontalmente para diante do centro da rodilha e
repousando sobre os anéis exteriores, voltava diretamente para ele o limite da
mandíbula escancarada, brutal, e da fonte estreita, que servia para indicar o
sentido de seu olhar malévolo. Os olhos não eram mais simples pontos luminosos;
fitavam os dele determinadamente, tinham uma expressão maligna.
II
Uma
cobra num quarto de dormir de apartamento confortabilíssimo em cidade moderna
não é fenômeno tão comum que torne desnecessária uma explicação. Harker
Brayton, solteirão de trinta e cinco anos, instruído, desocupado e mais ou
menos atleta, rico, bem-visto na sociedade, de saúde rija, voltara a São
Francisco de regiões longínquas e de costumes exóticos. Seus gostos, sempre um
tanto exagerados, tinham adquirido maior exuberância com a longa privação; e,
como os recursos do próprio Hotel do Castelo eram inadequados à sua perfeita
acomodação, ele aceitara com prazer a hospitalidade de seu amigo, o Dr.
Druring, famoso cientista. A casa do Dr. Druring, grande e antiquada mansão num
bairro pouco elegante da cidade, tinha externamente um aspecto claramente
reservado. Não se integrava simplesmente nas modificações dos arredores e
mostrava, sem preocupação, algumas excentricidades decorrentes do isolamento.
Uma destas consistia numa ala acintosamente diferente sob o ponto de vista
arquitetônico e não menos rebelde no tocante à função, porque era uma
combinação de laboratório, jardim zoológico e museu. Era aí que o médico dava
vasão ao pendor científico de sua natureza no estudo de tantas formas de vida
animal, quantas lhe despertassem o interesse e satisfizessem o gosto, que,
deve-se confessar, dirigia-se mais para as formas inferiores. Para que um tipo
de classificação mais elevada conseguisse insinuar-se em sua predileção, tinha
pelo menos de possuir certas características rudimentares que o relacionassem
com os "dragões da era primária", como sapos e serpentes. Suas
simpatias cientificas eram especialmente reptilianas; ele amava as vulgaridades
da natureza e a si mesmo denominava-se o Zola da zoologia. Sua mulher e suas
filhas, não possuindo a vantagem de partilhar-lhe a curiosidade iluminada a
respeito da conduta e dos costumes de nossos malvistos irmãos irracionais,
eram, com severidade desnecessária, excluídas do que ele chamava o Serpentário
e condenadas à camaradagem de seus semelhantes; se bem que, para atenuar os
rigores de sua sorte, lhes permitisse ele, baseado em sua grande riqueza,
avantajarem-se elas aos répteis na magnificência de seu ambiente e no brilho
esplêndido de seus atavios.
Arquitetonicamente,
e no que respeitava ao "mobiliário", o Serpentário era de uma
simplicidade austera, condizente com a humilde situação de seus ocupantes,
muitos dos quais, realmente não podiam, sem perigo, receber a liberdade
necessária ao amplo gozo do prazer, porque tinham a perturbadora peculiaridade
de estar vivos. Em suas próprias camarinhas, eles tinham, no entanto, o mínimo
de restrições individuais compatíveis com sua proteção contra o funesto hábito
de se engolirem uns aos outros; e, como era do conhecimento de Brayton,
constituía mais do que uma tradição o fato de alguns deles terem sido achados,
por várias vozes, em locais da casa, onde lhes teria sido muito embaraçoso
explicar sua presença. A despeito do Serpentário e de sua imprudente
proximidade — à qual em verdade, ele dava pouca atenção —, Brayton achava que a
vida na mansão do Dr. Druring era inteiramente a seu gosto.
III
Além
do choque da surpresa e um gesto de simples enfado, o Sr. Brayton não se importou
muito com o caso. Seu primeiro pensamento foi tocar a campainha e chamar um
criado, mas, apesar de o cordão da campainha pender a pequena distância, não
fez movimento algum em sua direção; ocorrera-lhe que o ato podia torná-lo
suspeito de ter medo, o que de forma alguma sentia. Estava mais profundamente
consciente da incongruência da situação do que afetado por seus perigos; coisa
revoltante, mas absurda.
O
réptil pertencia a uma espécie que Brayton não conhecia. Apenas podia
conjecturar lhe o comprimento; o corpo, na parte mais volumosa que se deixava
ver, era mais grosso do que seu antebraço. De que modo seria perigoso, caso o
fosse? Seria venenoso? Seria uma jiboia? Seus conhecimentos dos caracteres
nocivos da natureza não o capacitavam a dizer; ele jamais lhe decifrara o
código.
Se
não fosse perigoso, o animal seria pelo menos molesto. Estava
"sobrando" — estava "deslocado" —, era uma excrescência. A
pedra preciosa desmerecia do engaste. Mesmo o gosto bárbaro de nossos tempos e
de nosso país, que tem enchido de quadros as paredes das casas, de móveis o
soalho e de bric-à-brac os móveis, não preparara lugar adequado para
aquela amostra da vida selvagem do jângal. Além disso — constatação
insuportável! — o odor de seu hálito misturava-se à atmosfera que ele próprio
respirava!
Tais
pensamentos moldavam-se com maior ou menor relevo no espírito de Brayton e
exigiam ação. A um processo que denominamos consideração e decisão. É assim que
nos tornamos prudentes ou imprudentes. É assim que a folha esmaecida, carregada
pela brisa outonal, mostra maior ou menor tino do que as companheiras, caindo
em terra ou na superfície do lago. O segredo da ação humana é claro — algo nos
contrai os músculos. Faz mal dar às preparatórias mudanças moleculares o nome
de vontade?
Brayton
ficou de pé e preparou-se para afastar-se da serpente, sutilmente, sem per
turbá-la, caso fosse possível fazê-lo pela porta. É desse modo que nos
retiramos da presença dos grandes, porque grandeza é poder e poder constitui
ameaça. Ele sabia que podia andar de costa, sem encontrar obstáculo, e achar a
porta sem enganar-se. Se o monstro o acompanhasse, o gosto que forrara as
paredes de quadros tinha coerentemente provido panóplia de armas orientais, uma
das quais poderia empunhar naquela circunstância. Nesse ínterim, os olhos da
cobra continuavam a arder mais impiedosamente malvados do que antes.
Brayton
ergueu do chão o pé esquerdo a fim de mudá-lo para trás. Nesse momento, sentiu
uma grande dificuldade em fazer isso.
—
Dizem que sou valente — murmurou —; coragem, então, vale menos do que orgulho?
Por que ninguém pode testemunhar minha vergonha, retirar-me-ei?
Estava
ereto, apoiando a mão direita no espaldar da cadeira e com o pé suspenso.
—Absurdo!
— disse alto. — Não sou um covarde tão perfeito que tenha medo de mostrar a mim
mesmo que estou com medo.
Elevou
um pouco mais o pé, dobrando levemente o joelho e arremessou-o decididamente no
chão — uma polegada adiante do outro! Não podia pensar em como aquilo
acontecera. Uma tentativa com o pé esquerdo deu o mesmo resultado; estava
apenas adiante do direito. A mão sobre o espaldar da cadeira apertava este; o
braço estendido procurava segurar algo atrás dele. Era evidente que relutava em
soltar o apoio. A cabeça maligna da cobra ainda se lançava para a frente do
meio da rodilha como antes, com o pescoço em posição horizontal. Não se movera,
mas seus olhos eram então faíscas elétricas lançando uma infinidade de agulhas
luminosas.
O
homem estava cor de cinza. Deu ainda um passo à frente, e outro, arrastando
quase a cadeira, a qual, quando finalmente solta, tombou no assoalho com
estrondo. O homem suspirou; a serpente não se mexeu, mas seus olhos tornaram-se
dois sóis deslumbrantes. O próprio réptil ficou inteiramente oculto por eles.
Despendiam ondas de cores vivas e brilhantes, que se alargavam cada vez mais, e,
ao atingirem o máximo, desmanchavam-se como bolhas de sabão; parecia que se lhe
aproximavam do rosto e logo depois estavam a uma distância incomensurável.
Ouviu alhures o batido contínuo de um grande tambor, com interrupções vagas de música
longínqua, inconcebivelmente doce, qual a melodia de uma harpa eólia. Sabia que
era a melodia do Sol nascente da estátua de Memnon e pensou estar entre os
caniços da margem do Nilo, ouvindo com os sentidos exaltados aquele hino
imortal, através do silêncio dos séculos.
A
música parou; tornou-se, gradativamente, quase o remoto ruído de uma tempestade
que se afasta. Uma paisagem, brilhando ao Sol e à chuva, estendia-se à sua
frente, arqueada sob um arco-íris que emoldurava em sua curva gigantesca uma
centena de cidades visíveis. A meia distância uma grande serpente, usando uma
coroa, alçava a cabeça acima das volumosas circunvoluções e olhava-o com os
olhos de sua finada mãe. De repente, essa encantadora paisagem pareceu subir
como o pano de boca de um teatro e desapareceu por completo. Alguma coisa
bateu-lhe fortemente no rosto e no peito. Ele caiu no chão; o sangue correu-lhe
do nariz quebrado e dos lábios feridos. Por um memento, ficou tonto e espantado,
e permaneceu de olhos fechados, com o rosto contra a porta. Em poucos minutos
restabeleceu-se e verificou, então, que, desviando-lhe o olhar, a queda
permitira-lhe a retirada. Mas a lembrança da serpente a pouca distância de sua
cabeça, apesar de não a ver — talvez estivesse mesmo no ato de saltar sobre ele
e enroscar lhe os anéis em torno da garganta — era horrível demais. Ergueu a
cabeça, fitou ainda aqueles olhos malignos e caiu outra vez em seu poder.
A
cobra não se movera e parecia ter perdido a influência sobre a sua imaginação;
as resplendentes visões dos momentos anteriores não se repetiram. Sob aquela
fronte chata e estúpida brilhavam apenas seus olhos de conta preta, como no princípio
com uma expressão indiscutivelmente malévola. Era como se o animal, tendo por
certo o seu triunfo, determinasse não mais usar qualquer dos seus irresistíveis
feitiços.
Seguiu-se
então uma cena terrível. O homem deitado no assoalho, a uma jarda do inimigo,
apoiou a parte anterior do corpo sobre os cotovelos, lançou a cabeça para trás
e espichou as pernas em todo o seu comprimento. Seu rosto mostrava-se branco
entre gotas de sangue; os olhos esbugalhavam-se. Havia espuma em seus lábios;
caiu em flocos. Convulsões terríveis percorreram-lhe o corpo, como se fossem
ondulações serpentinas. Ele se curvou sobre o peito, mudando as pernas de um
lado para o outro. E cada movimento levava-o um pouco mais para perto da
serpente. Ele lançou as mãos para a frente, a fim de dar uma volta, mas
continuou a avançar sobre os cotovelos.
IV
O
Dr. Druring e sua esposa estavam sentados na biblioteca. O cientista sentia-se
de muito bom humor.
—
Acabei de obter, por troca com outro colecionador —disse ele —, um esplêndido
exemplar de Ophiophagus.
—
E que vem a ser isso? — perguntou a senhora, sem grande interesse.
—
Ora, valha-me Deus, que profunda ignorância! Minha querida, um homem que
descobre, depois de casar, que sua esposa não sabe grego, tem direito ao
divórcio. Ophiophagus é uma serpente que come outras serpentes
—
Espero que ela coma todas as suas — disse ela displicentemente, alteando a lâmpada.
— Mas como é que ela pega as outras? Encantando-as, imagino.
—
Isso é mesmo seu, querida — disse o médico com acentuada impaciência. — Você
sabe de que modo me irrita qualquer alusão a essa vulgar superstição acerca do
poder de fascinação das serpentes.
A
conversa foi interrompida por um grito tremendo que atravessou a casa
silenciosa como a voz de um demônio bradando do interior de um túmulo. Uma vez
e mais outra ele soou com terrível clareza. Os dois levantaram-se de chofre, o
homem confuso, a senhora pálida e áfona de medo. Antes que os ecos do último
grito se desvanecessem, o médico já tinha saído da sala, subindo a escada de
quatro em quatro. No corredor, em frente ao quarto de Brayton, encontrou alguns
criados, que tinham acorrido do andar superior. Juntos, arremeteram contra a
porta, sem bater. Ela se abriu de par em par. Brayton jazia de bruços no chão,
morto. A cabeça e os braços em parte estavam ocultos pela guarda dos pés da
cama. Puxaram o corpo para fora, virando-o de costa. O rosto estava sujo de
sangue e espuma, os olhos arregalados, fixos, uma visão horrível
—
Morreu dum ataque — disse o cientista, ajoelhando-se e pondo-lhe a mão sobre o
coração. — Enquanto se achava nessa posição, aconteceu-lhe olhar para debaixo
da cama.
—
Santo Deus! —acrescentou — Como é que isso veio parar aqui?
Meteu-se
debaixo do leito, puxou a serpente e arrojou-a, ainda enrolada, para o meio do
quarto, onde, com um som áspero, ela se arrastou ao acaso pelo assoalho
encerado até parar junto à parede e aí deter-se. Era uma serpente empalhada,
cujos olhos não passavam de botões de sapato.
Fonte: “A Cigarra”/RJ,
edição de fevereiro de 1953.
Ouça este conto na locução e interpretação de André Egydio de Carvalho:
amigo , vou ler o conto, agora! Parece ser bon heim!
ResponderExcluircurioso que o Lovecraft usou a citação do Morryster no conto O Festival, o que prova que o Lovecraft lia muito o Bierce.
ResponderExcluircontinuando...pode ser que o Morryster seja um autor criado por Bierce, o Bierce tinha esse costume de criar autores fictícios e suas obras, citando-as nos contos dele. Lovecraft usou também essa forma de criação literária...
ResponderExcluirExatamente, Roger! Sua dedução está perfeitamente correta. Morryster é uma criação de Bierce. E, realmente, Lovercraft empregou-o em uma de suas obras. Grato pela perspicácia, amigo!
ExcluirMuito bom! Não esperava esse desfecho!
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