O SONHO - Conto Clássico de Horror - O. Henry
O SONHO1
O. Henry
(1862 – 1910)
Tradução de Paulo Soriano
Murrey teve um sonho.
Tanto a psicologia quanto a ciência tateiam quando nos tentam explicar as estranhas aventuras de nosso ser imaterial quando vagamos pelo reino do “irmão gêmeo da Morte, o Sono”. Este relato não tem escopo esclarecedor. Limita-se a registrar o sonho de Murray. Uma das fases mais intrigantes dessa vigília do sono é que sonhos, que parecem abarcar meses — ou mesmo anos —, podem ocorrer em poucos segundos ou minutos.
Na ala dos condenados à morte, Murray aguardava a execução. Um foco de luz elétrica, pendente do teto do corredor, incidia intensamente sobre a sua mesa. Numa folha de papel branco, uma formiga corria descontroladamente por aqui e ali, enquanto Murray bloqueava seu caminho com um envelope. A eletrocussão estava marcada para as oito horas da noite. Murray sorriu para as agitadas correrias do mais sábio dos insetos.
Havia outros sete condenados no pavilhão. Desde que lá estava, Murray vira três deles sendo conduzidos ao destino fatal. Um, enlouquecido e lutando como um lobo preso em uma armadilha; outro, não menos louco, oferecendo aos Céus uma hipócrita devoção; um terceiro, um covarde, desacordado e amarrado a uma maca. A si mesmo indagou como o seu coração, seus pés e sua face reagiriam à sua punição; pois esta era sua noite. Achava que deviam ser quase oito horas.
Em frente à sua, nas duas fileiras de catres, estava a cela de Bonifacio, um siciliano que matara a própria noiva e os dois oficiais que vieram prendê-lo. Com ele, Murray havia jogado damas por muitas horas, cada um anunciando o seu lance para o seu oponente invisível do outro lado do corredor.
Ouviu o vozeirão de Bonifácio — de inabalável qualidade musical — ressoar:
— Ei, mestre Murray! Como está se sentindo? Tudo bem, não é mesmo?
— Tudo bem, Bonifacio — respondeu Murray firmemente, deixando a formiga rastejar sobre o envelope, para depois depositá-la suavemente no chão de pedra.
—Isso é bom, mestre Murray. Homens como nós temos que saber morrer como homens. A minha hora é na semana que vem. Tudo bem. Lembre-se, mestre Murray, eu ganhei a última partida de damas. Talvez joguemos novamente algum dia. Não sei. Talvez voltemos a jogar aonde quer que nos mandem.
A estoica tirada de Bonifacio, seguida duma gargalhada ensurdecedora e melodiosa, não enregelou, senão aqueceu o coração entorpecido de Murray. No entanto, restava a Bonifacio ainda uma semana de vida.
Os presos ouviram o clique alto e costumeiro dos ferrolhos de aço quando abriram a porta do final do corredor. Três homens foram até a cela de Murray e a destrancaram. Dois eram guardas da prisão; o terceiro era Len — não; isto era nos velhos tempos —, agora o Reverendo Leonard Winston, um amigo e vizinho dos anos de miséria.
—Consegui que me deixassem assumir a função do capelão da prisão — disse, enquanto dava um aperto curto e forte na mão de Murray. Na mão esquerda, tinha ele uma pequena Bíblia, com o dedo indicador marcando uma página.
Murray sorriu levemente e arrumou caprichosamente dois ou três livros e alguns porta-canetas de sua mesinha. Queria falar, mas nada adequadamente fluía em sua mente.
Os prisioneiros chamavam aquele pavilhão, com oitenta pés de comprimento e vinte e oito pés de largura, de Rua do Limbo. O guarda habitual da Rua do Limbo, um homem imenso, rude e bondoso, tirou uma garrafa de uísque do bolso e ofereceu a Murray, dizendo:
— É algo comum, sabia? Todos tomam para se animar. Não há perigo de que se viciem, entende?
Murray bebeu profundamente.
—Esse é meu garoto! —disse o guarda. — Basta um bom calmante e tudo fica suave como seda.
Saíram ao corredor e os sete condenados souberam disto. A Rua do Limbo é um mundo fora do mundo; mas ele havia aprendido que, quando alguém era privado deste ou daquele sentido, substituía-o por outro. Todos sabiam que eram quase oito horas, e que Murray iria para a cadeira elétrica às oito. Há também nas muitas Ruas do Limbo uma aristocracia do crime. O homem que mata em campo aberto, que derrota seu inimigo ou perseguidor, corado pelas emoções primitivas e pelo ardor do combate, despreza o rato humano, a aranha e a cobra.
Foi por isto que, dos sete condenados, apenas três se despediram de Murray, enquanto ele caminhava pelo corredor entre dois guardas: Bonifacio, Marvin —que havia matado um guarda enquanto tentava escapar da prisão — e Bassett, o assaltante do trem, que foi encarcerado porque um inspetor de vagões não levantou as mãos quando ordenado a fazê-lo. Os quatro restantes mantiveram silêncio em suas celas, sem dúvida sentindo o ostracismo social, intrínseco à na sociedade da Rua Limbo, mais intensamente do que quando se lembravam de suas ofensas menos pitorescas à lei.
Murray encantou-se com a sua própria serenidade e quase indiferença. Na sala de execução havia cerca de vinte homens, uma congregação composta por agentes penitenciários, jornalistas e espectadores…
(… Ao aproximar-se da cadeira elétrica, Murray foi dominado por uma onda de sentimentos de repulsa. Ficou atordoado, estupefato, surpreso. A cena inteira na câmara da morte — as testemunhas, os espectadores, os preparativos para a execução — se tornaram irreais para ele. Um pensamento perpassou-lhe o espírito: um erro terrível está sendo cometido. Por que amarram-no à cadeira elétrica? O que ele teria feito? Que crime haveria cometido?
Nos poucos momentos em que as correias estão sendo ajustadas, veio-lhe uma visão. Ele tem um sonho. Ele vê uma pequena casa de campo, brilhante, iluminada pelo Sol, aninhada em um caramanchão de flores. Lá estão uma mulher e uma criancinha. Ele fala com elas e descobre que elas são sua esposa, sua filha — e a casa, seu lar. Então, afinal, a execução é um equívoco. Alguém cometeu um erro assustador e irrevogável. A acusação, o julgamento, a condenação, a sentença de morte na cadeira elétrica — tudo é um sonho. Ele toma sua esposa nos braços e beija a criança. Sim, aqui está a felicidade. Tudo fora um sonho…
Então — a um sinal do diretor da prisão — a corrente fatal é ligada.
Murray sonhara o sonho errado2.)
Fonte: Rolling Stones, 1919.
Ilustração: Mansurtyakov1/Pixabay.
Notas:
1Este foi o último trabalho realizado por O. Henry, encomendado pela revista Cosmopolitan. Após sua morte, o manuscrito inacabado foi encontrado em seu quarto, numa escrivaninha empoeirada. A história, como aparece aqui, foi publicada na Cosmopolitan em setembro de 1910. (N. do E. original.)
2Texto conforme anotações de O. Henry.
Caraca!!
ResponderExcluiresse vou ler hoje à noite, depois comento.
ResponderExcluirnão é à toa que o Henry é considerado um mestre na arte dos contos. Esse conto é bastante gnóstico, na minha humilde e sem importância opinião. Mas é um contaço, amigo Barão. Que conto magnífico! E olha que era só o rascunho que ele tinha feito, creio, antes de ser interrompido pela maldita - ou bendiita, sabe-se lá - morte.
ResponderExcluirna biografia do O. Henry na Wikipedia fala que ele esteve preso por uns tempos, creio que ele deve ter bolado esta história mentalmente na prisão e depois , livre, escreveu ela. Ele morreu na miséria e solitário. Aliás, a biografia dele é bem interessante. Mas ele é muito bom, um craque na arte do conto.
ResponderExcluira versão inglesa da Wikipedia é mais completa acerca da vida do O. Henry.
ResponderExcluirVou ler e depois comenta 💆🏾♀️
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