O NOIVO ESPECTRO - CONTO CLÁSSICO DE MISTÉRIO - Washington Irving



O NOIVO ESPECTRO
Washington Irving
(1873 – 1859)

No cume de um dos mais altos picos do Odenwald, em uma região selvagem e romântica da Alemanha setentrional, pouco distante da confluência do Meno com o Reno, dominou por muito tempo o castelo do barão Von Landshort. Este castelo está, hoje, arruinado e quase sepultado entre os troncos das árvores, por cima dos quais, entretanto, ainda se pode ver a torre de atalaia, forcejando, como o seu primeiro possuidor, por levantar bem alto a cabeça e dominar a circunvizinhança.

O barão era um descendente da grande família de Katzenellenbogen[1]. Herdou as ruínas no solar e todo o orgulho de seus antepassados. Posto que as disposições belicosas de seus predecessores houvessem diminuído muito as propriedades da família, o barão fez ainda esforços para manter alguma aparência de seu primeiro esplendor. Os tempos corriam tranquilos e os nobres alemães haviam abandonado seus antigos castelos incômodos, edificados como ninhos de águias entre as montanhas, por mais agradáveis residências nos vales. O barão, todavia, permaneceu em sua pequena fortaleza, amando com um amor hereditário e inveterado todas as antigas discórdias de família: estava em más relações com seus vizinhos por causa de disputas havidas entre seus avós e os deles.

O barão tinha uma filha única; mas, em compensação, a Natureza fizera desta menina um prodígio. Todas as amas, comadres e primas da terra asseguravam a seu pai que ela não tinha igual em beleza em toda a Alemanha. E quem mais do que elas era conhecedor de tal matéria? Demais, ela havia sido entregue com grandes recomendações a duas tias, velhas solteiras, que haviam passado alguns anos de sua idade em uma das pequenas cortes alemãs, e aí se tinham instruído em todos os ramos de conhecimentos necessários à educação de uma senhora moça. Graças às suas lições, ela tornou-se um milagre de perfeição. Na época de que falo, ela contava dezoito anos, bordava admiravelmente, e tinha feito em tapeçarias muitos episódios tirados da história dos santos com tal talento que se viam tantas figuras  quanto eram as almas no purgatório. Ela podia ler sem grande dificuldade e sabia desvencilhar-se de algumas legendas de quase todos os milagres cavalheirescos do Heldenbuch[2]. Tinha feito também consideráveis progressos na escrita: podia assinar seu próprio nome sem faltar-lhe uma letra, e tão corretamente que suas tias liam sem óculos. Primava em fazer pequenas inutilidades elegantes e delicadas de todas as espécies; era versada nas danças mais difíceis da época; tocava na harpa e na guitarra certa quantidade de árias, e sabia de cor todas as mais ternas baladas do Minnelieders[3].

Suas tias, havendo sido grandes namoradeiras em sua mocidade, foram admiravelmente escolhidas para servir de vigilantes guardas, e estritas censoras de sua sobrinha. Porque não há regente tão rigidamente prudente e tão inexoravelmente decorosa quanto uma namoradeira avelhentada. Raras vezes a consentiam fora de suas vistas; ela nunca deixava os domínios do castelo, salvo se bem acompanhada, ou, ao menos, bem guardada. Faziam-lhe continuadas leituras sobre o estrito decoro e obediência implícita. Quanto aos homens — oh! —, tinham-lhe ensinado a conservá-los à distância, e desconfiar deles tão absolutamente que, sem conveniente autorização, ela não lançaria um olhar para o mais belo cavalheiro do mundo, nem mesmo se ele estivesse expirando a seus pés.

Os bons efeitos deste sistema brilhante cintilavam miraculosamente. A jovem donzela era um verdadeiro modelo de docilidade e retidão. Enquanto outras dissipavam sua mocidade no turbilhão do mundo e se expunham a ver-se arrancadas e lançadas para um e outro lado pela primeira mão que aparecia, ela ia florescendo pacífica em sua fresca condição de mulher, sob a proteção de suas imaculadas tias celibatárias, como um botão de rosa que ganha cor entre espinhos que o resguardam. Suas tias falavam dela com orgulho e exaltação e diziam que, se toda as outras moças do mundo podiam desviar-se, deviam dar graças aos céus pela impossibilidade de acontecer semelhante coisa à herdeira de Katzenellenbogen.

Entretanto, o barão Von Landshort devia dar-se muito feliz de não ter muitos filhos. A pobreza obrigava-o a uma ostentação das mais acanhadas, porque a providência o enriquecera de grande companhia de parentes pobres. Cada um deles possuía as disposições afetuosas habituais aos aliados humildes, mostrava-se amigo íntimo do barão, e aproveitava todas as ocasiões possíveis para dar alegria ao castelo. Todas as festas eram celebradas por esta boa gente à custa dele e, quando estavam bem repletos e saciados, declaravam que na terra não havia nada tão delicioso quanto as reuniões de família, esses júbilos do coração.

Embora o barão fosse de pequena estatura, tinha a alma grande e vangloriava-se com satisfação com o pensamento de ser o maior homem do mundo pequeno que vivia em torno dele. Gostava de contar longas histórias sobre os francos antigos e guerreiros, cujos retratos pareciam contorcer as fisionomias nas paredes, e nunca achava ouvintes tão atentos quanto os que engordavam à sua custa.

Muito dado ao fantástico, acreditava firmemente em todos os contos sobrenaturais que circulavam abundantemente por montes e vales da Alemanha.  A credulidade de seus hóspedes excedia a sua própria crença; eles ouviam as histórias com olhos e boca abertos e nunca deixavam de assustar-se, mesmo que as ouvissem pela centésima vez. Assim vivia o barão Von Landshort, oráculo de sua mesa, monarca absoluto de seu pequeno território e feliz mais que tudo pela persuasão de que ele era o homem mais sábio de seu século.

Na época em que se passa a minha história, grande parte da família estava reunida no castelo para um negócio da mais alta importância: receber o noivo destinado à filha do barão.

Uma negociação havia sido entabulada entre o pai e um velho fidalgo da Baviera a fim de reunirem a dignidade de suas duas casas pelo casamento de seus filhos: os preliminares haviam sido dirigidos com o apropriado rigor cerimonial.  Os moços ficaram noivos sem se verem e logo os seus pais fixaram a ocasião do casamento. O jovem conde Von Altenburg fora chamado do exército para esse fim e estava atualmente a ponto de receber sua noiva das mãos do barão. De Wutzburg, onde estava, dirigiu cartas, nas quais indicava o dia e a hora em que esperava chegar.

Os preparativos necessários para fazer-lhe uma recepção conveniente puseram o castelo em polvorosa. Preparou-se a noiva com um cuidado extraordinário: as duas tias haviam presidido a seu vestuário, sobre o qual discutiam. A moça aproveitou esta disputa para seguir seu próprio gosto, que felizmente era bom. Tinha a aparência tão amável quanto o podia desejar uma noiva jovem e a perturbação da expectativa mais realce dava ao brilho de seus encantos.

As emoções que faziam enrubescer seu rosto e peito, a suave palpitação de seu seio, seus olhos perdidos em meditação, tudo traía o brando tumulto que agitava o seu jovem coração. As tias giravam continuamente em torno dela, porque tias solteironas estão aptas a tomar grande interesse em negócio desta natureza. Elas dirigiam-lhe incessantes conselhos sobre a maneira de comportar-se, de falar e de receber o amante esperado.

O barão não estava menos ocupado em preparativos e, no entanto, nada fazia exatamente. Era, porém, de natureza colérica e buliçosa, e não podia permanecer passivo quando todo mundo estava apressado. Atormentava-se e percorria de alto abaixo o castelo com ansiedade infinita, desarranjava continuamente os criados dos serviços em que estavam para exortá-los a serem diligentes e murmurava em cada sala e cada câmara, tão inquieto e importuno quanto uma mosca varejeira em dia quente de verão.

Ao mesmo tempo matava-se o bezerro gordo, as florestas ressoavam com os gritos dos caçadores, os gatos miavam atrás dos nacos de carne, as adegas forneciam oceanos de vinho de Rhein e Ferne e até mesmo o grande tonel de Heidelberg foi posto em contribuição. Estava tudo pronto para receber o hóspede distinto com abundantes iguarias e alegria, conforme o verdadeiro espírito da hospitalidade alemã... Entretanto, o hóspede demorava-se a aparecer. As horas sucediam-se às horas. O sol, que havia lançado seus raios inclinados sobre as riscas florestas do Odenwald, dourava então os cumes das montanhas. O barão subiu à mais alta torre do castelo. Prolongou a vista, forcejando descobrir alguma coisa do conde ou de sua comitiva. Uma vez julgou percebê-lo. O som das trombetas ressoou no vale e nos ecos das montanhas. Alguns cavaleiros vinham caminhando pela estrada. Mas, quando chegaram quase ao pé da montanha, tomaram direção diversa. Os morcegos começaram a esvoaçar no crepúsculo. O campo foi-se tornando-se cada vez mais escuro e nada mais se viu mover-se, a não ser algum camponês que voltava do trabalho.

Enquanto o castelo de Landshort estava mergulhado neste estado de perplexidade, uma cena muito interessante se passava em outra parte do Odenwald.

O jovem conde Von Altenburg prosseguia tranquilo seu caminho nesse trote moderado com que um homem caminha para o seu casamento. Os seus amigos já se haviam livrado de todas as dificuldades e incertezas próprias de quem deve fazer a corte. Mas ele estava certo de que a sua noiva o esperava para um banquete no final de sua jornada.

Em Wurtzburg ele havia encontrado um jovem companheiro de armas, com o qual tinha servido nas fronteiras, Herman von Starkenfaust, um dos braços mais valentes e dos mais nobres corações da cavalaria alemã, que voltava então do exército. O castelo de seu pai não era distante da antiga fortaleza de Landshort, mas uma desavença hereditária fizera suas famílias mutuamente hostis.

No momento mais caloroso do encontro, os dois amigos contaram todas as suas aventuras e boas fortunas passadas. O conde narrou a história de seu casamento com uma donzela que nunca vira, de cujos encantos, porém, havia recebido as mais arrebatadoras descrições.

Como o caminho dos amigos convergia para a mesma direção, combinaram passar juntos o resto do dia, e partiram cedo de Wurtzburg, havendo o conde indicado à sua comitiva a direção em que ela pudesse segui-lo e encontrá-lo.

Alegraram a viagem recordando-se de suas cenas e aventuras matinais, mas o conde cansou um pouco o seu companheiro pela obstinação com que voltava sempre aos supostos encantos de sua noiva.

Tinham eles, todavia, penetrado nas montanhas do Odenwald e atravessado um desfiladeiro coberto do bosque mais espesso e mais solitário. Sabe-se que as florestas da Alemanha foram sempre tão infestadas de ladrões quanto os seus castelos de espectros. Nessa época, os primeiros eram numerosíssimos, em razão dos reforços que lhe deram os soldados debandados que vagavam por todo o país. Não parecerá, portanto, extraordinário que os meus cavaleiros tenham sido atacados por uma súcia desses bandidos no meio da floresta. Eles se defenderam com bravura por tanto tempo que a comitiva do conde pôde chegar em seu socorro. Ao avistá-la, os ladrões fugiram, deixando o conde com uma ferida mortal. Foi ele transportado para Wurtzburg, e chamou-se um frade do convento vizinho, famoso por tratar ao mesmo tempo do corpo e da alma. Mas a metade de seus desvelos foi supérflua: os momentos do infeliz mancebo estavam contados.

Ele suplicou, com voz moribunda, a seu amigo que partisse imediatamente para o castelo de Landshort e explicasse a causa de sua demora. Embora não fosse um amante dos mais ardentes, era um dos homens mais pontuais e solicitou a seu amigo, com ardor, que cumprisse aquela missão prontamente e com cortesia.

—Enquanto isto não acontecer — disse ele —, não dormirei tranquilo em meu túmulo.

Estas palavras foram pronunciadas com particular solenidade. Semelhante pedido, em tal momento, não admitia hesitação. Starkenfaust tentou tranquilizá-lo, prometeu-lhe satisfazer fielmente seus desejos e deu-lhe a mão com penhor solene. O moribundo apertou-a agradecido, mas caiu logo em delírio, falou de sua noiva, de suas promessas, de sua palavra dada; pediu o cavalo que devia montar no castelo de Landshort e expirou imaginando que o montava.

Starkenfaust deu um suspiro e verteu uma lágrima de soldado ao infeliz destino de seu camarada, e pensou na desagradável missão de que se havia encarregado.  Estava triste e perplexo por ter de apresentar-se como hóspede, sem ter sido convidado, ante os seus inimigos, e entristecer suas festas alegres com notícias fatais às suas esperanças. Mas ele sentia em seu coração certo desejo curioso de ver essa afamada beldade de Katzenellenbogen, tão cuidadosamente retirada do mundo, pois era admirador do belo sexo, e havia um grão de excentricidade e empreendimento em seu caráter que o fazia apaixonado de todas as aventuras singulares.

Antes de partir, deu todas as ordens e fez todos os ajustes com os frades do convento para o funeral solene de seu amigo, que deveria ser enterrado na Catedral de Wurtzburg, junto de alguns de seus ilustres parentes. A comitiva do conde, desolada, prestou os deveres fúnebres aos restos do desafortunado cavaleiro.

Já é tempo de voltar para junto da antiga família de Katzenellenbogen, que esperava impacientemente o seu hóspede e ainda mais seu jantar, e do ilustre barão, que deixamos tomando fresco na torre.

Era noite e o hóspede não chegava. O barão desceu desesperado da torre: o banquete, que se fora demorando em sua honra, não podia diferir-se por mais tempo. A comida já estava muito cozida, o cozinheiro agoniava-se, e a casa parecia uma guarnição reduzida à fome. O barão foi obrigado, a contragosto, a dar ordens para que o banquete fosse servido, apesar da ausência de seu hóspede. Puseram-se todos à mesa e estavam para principiar, quando o som de uma trombeta, tocada do lado de fora da grade, anunciou a chegada de um estranho. Outro som prolongado encheu os antigos pátios do castelo; os ecos o repetiram e foi respondido pelo guarda do alto dos muros. O barão foi apressado receber seu futuro genro.

Tinha-se abaixado a ponte levadiça e a pessoa estava defronte da grade. Era um cavaleiro alto e gentil, montado num corcel negro.  Seu rosto estava pálido, mas tinha olhos brilhantes e aparência de digna melancolia. O barão ficou um pouco mortificado por ver seu genro tão simples e solitário. A sua dignidade ressentiu-se e considerou isto uma falta de respeito à ocasião solene e à importante família a que ele ia se unir. Entretanto, acalmou-se, refletindo que devia ser por impaciência estorvada que ele próprio fora receber o viajante e não mandasse seus criados.

— Muito sinto — disse o estranho — incomodar-vos tão mal a propósito.

Aqui o barão o interrompeu com um dilúvio de cumprimentos e de saudações porque, para falar a verdade, ele estimava muito a si mesmo por causa de sua cortesia e de sua eloquência.  O estranho tentou algumas vezes, mas em vão, impedir esta torrente de palavras; vendo que eram inúteis os seus esforços, curvou a cabeça e sujeitou-se a ouvir.  O barão fez, todavia, uma pausa. Já haviam atravessado o pátio interior do castelo e o recém-chegado estava ainda por falar, quando foi de novo interrompido pela pelo vislumbre da parte feminina da família, que acompanhava a trêmula e enrubescida noiva. Ele contemplou-a um momento ao entrar: parece que a sua alma inteira se extasiou desta contemplação e fixou-se nessa figura encantadora. Uma das tias murmurou alguma coisa ao ouvido de sua sobrinha. Esta fez um esforço para falar; seus olhos azuis e tímidos dirigiram um olhar reservado e interrogador para o estranho, e se baixaram novamente por terra. Suas palavras morreram antes de articuladas, mas um ligeiro sorriso roçou por seus lábios e as covinhas que se desenharam em suas faces, quando ela dirigiu aquele olhar, eram imensamente encantadoras. Para uma moça de dezoito anos, preparada há muito tempo para o amor e para o casamento, era impossível não ficar satisfeita com tão belo cavaleiro.

A hora adiantada em que chegado o hóspede não deixou tempo para confabulações. O barão foi peremptório e postergou toda conversação particular para o outro dia. Depois mostrou o caminho da sala do banquete, que permanecera intocado.

O jantar havia sido servido na sala grande do castelo. Pelas paredes estavam suspensos os retratos dos desgraçados heróis da casa de Katzenellenbogen e os troféus que tinham ganho nos combates e na caça.  As couraças rotas, as lanças quebradas e as bandeiras esfarrapadas misturavam-se com os despojos das guerras silvestres.  As mandíbulas do lobo e as presas do javali sorriam horrendamente entre as balestras e os machados de batalha. Um imenso par de chifre de cervo aparecia por cima da cabeça do jovem noivo.

O cavaleiro deu atenção aos convivas e à conversação. Pouco tocou na comida. Parecia absorvido em sua admiração pela noiva. Conversou com ela em voz baixa e de maneira a ser antes compreendido que ouvido, porque a linguagem do amor nunca é clara. Todavia, qual é a mulher cujo ouvido seja tão duro que não possa compreender as palavras sussurradas pelo amante? Havia em suas maneiras uma mistura de ternura e gravidade que parecia produzir um efeito onipotente sobre a donzela. Ela corava e empalidecia, escutando com grande atenção. Quando respondia, seus olhos se voltavam e se aventuravam a lançar um olhar de lado para a figura melancólica do jovem homem. Depois, soltava um suspiro de terna felicidade. Era evidente que ambos estavam completamente apaixonados. As tias, profundamente versadas nos mistérios do coração, declaravam que eles se apaixonaram à primeira vista.
 
A festa ficava alegre — ou, pelo menos, ruidosa — porque os hóspedes eram todos dotados desses apetites violentos que provêm da bolsa vazia e do ar das montanhas. O barão contou suas melhores e mais longas histórias. Nunca as contara tão bem ou com tão grande efeito. À menor coisa maravilhosa, os ouvintes ficavam admiradíssimos. E se sobrevinha alguma coisa jocosa, todos disparavam a rir ao mesmo tempo. É verdade que o barão, como os personagens elevados, tinha muita dignidade para proferir alguma graça que não fosse muito picante. Porém, eram sempre reforçadas com um copo de excelente Hockreimer, e uma graça, ainda que pesada, servida em sua mesa com um bom e velho vinho, tornava-se irresistível. Muitas coisas boas foram ditas pelos espíritos mais pobres e pelos espíritos mais mordazes, que não poderiam ser repetidas senão em semelhantes ocasiões. Muitos discursos enganadores foram murmurados aos ouvidos das damas, que as fizeram dar boas risadas, ainda que sufocadas. Uma ou duas canções foram gaguejadas por um primo do barão, pobre, porém folgazão, e elas obrigaram as duas tias a esconder o rosto com seus leques.

Em meio a toda esta folia, o noivo encontrava-se numa gravidade singular e inexplicável. À medida que a noite se adiantava, seu semblante tomava uma marca de tristeza mais profunda e mais estranha. As graças do barão pareciam causar-lhe mais melancolia. Por momentos, parecia perder-se em seus pensamentos; outras vezes, parecia ter as divagações inquietas de um espírito incomodado. Suas conversações com sua noiva tornaram-se cada vez mais misteriosas: nuvens começaram a elevar-se sobre a bela serenidade da fronte da donzela e seu esbelto corpo estremecia.

Nada disto escapou à atenção dos comensais. A alegria de todos ficou gelada pela inconcebível tristeza do noivo. Seus espíritos incomodaram-se; permutaram-se olhares e palavras em tom baixo e acompanhadas de movimentos de ombros e de cabeça. Os cantos e as risadas foram substituídos por contos bárbaros e lendas sobrenaturais. Uma história triste dava lugar a outra ainda mais triste e o barão fez com que algumas damas caíssem em desmaio contando-lhes a novela do cavaleiro fantasma que roubou a bela Lenore: uma história horrível, mas verídica, que depois foi posta em versos[4] e é lida e acreditada por todo o mundo.

O noivo ouvia com profunda atenção. Tinha constantemente lançado o olhar ao barão e, à medida que a história ia chegando ao fim, ele ia-se levantando da cadeira, crescendo cada vez mais, de maneira que aos olhos do barão pareceu tão alto quanto um gigante. No momento em que acabou a história, ele deu um suspiro profundo e despediu-se solenemente da companhia. Todos ficaram surpreendidos: o barão ficou positivamente petrificado.

— Como? Quereis deixar o castelo à meia-noite? Por quê? Tudo está preparado para a vossa recepção. Há um quarto pronto, se quiserdes descansar.

O noivo maneou a cabeça triste e misteriosamente.

—Devo descansar minha cabeça sob outro teto esta noite.

Nesta réplica, e no tom com que foi pronunciada, alguma coisa havia que fez o barão temer algum acontecimento. Mas reuniu suas forças e renovou seus oferecimentos hospitaleiros.

O noivo abanou a cabeça silenciosamente e, sem responder aos novos oferecimentos que lhe fizeram, sem repetir as suas despedidas aos comensais, saiu lentamente da sala. As tias estavam petrificadas: a noiva abaixou a cabeça e uma lágrima subiu-lhe aos olhos.

O barão acompanhou o noivo ao pátio do castelo, onde o corcel negro batia com os cascos na terra e relinchava de impaciência. Quando chegaram ao portal, cuja sombria abóbada era fracamente iluminada por uma tocha, o noivo parou e, com voz cavernosa, que a arcada da abóboda tornava ainda mais sepulcral, disse:

—Agora que estamos sós, quero informar-vos do motivo de minha partida. Contraí uma obrigação solene, indispensável.

— Mas — disse o barão — não podes mandar alguém em vosso lugar?

— Impossível. Devo cumprir pessoalmente a minha missão. Devo ir à catedral de Wurtzburg.

— Ah! — disse o barão, tomando coragem. — Esperai até amanhã. Amanhã lá levareis a vossa noiva.

— Não, não! — respondeu o cavaleiro com maior solenidade. — Meu empenho não admite noiva. Os vermes! Os vermes me esperam! Sou um defunto! Fui assassinado por ladrões e o meu corpo repousa em Wurtzburg. Devo ser enterrado à meia-noite. A sepultura me aguarda. Devo cumprir a minha palavra.

Cavalgou o seu corcel preto, desapareceu por trás da ponte levadiça e o ruído dos passos de seu cavalo perdeu-se no sibilo do vento da noite.

O barão voltou à sala imerso na mais profunda consternação e contou o que se havia passado. Duas damas desmaiaram imediatamente; outras, caíram doentes só com a ideia de haver jantado com um espectro. Foi opinião de alguns que podia muito bem ser o caçador selvagem, famoso nas lendas alemães. Outros falaram de espíritos da montanha, de demônios dos bosques e de entes sobrenaturais com que foi amedrontada a boa gente da Germânia desde os tempos imemoriais. Um dos parentes aventurou-se a sugerir que podia bem ser alguma evasão divertida do jovem cavaleiro e que a grande singularidade do capricho parecia harmonizar com tão melancólico personagem. Esta lembrança, entretanto, atraiu-lhe a indignação de todos os presentes e, particularmente, a do barão, que o considerou um pouco mais que um ateu, de sorte que ele foi constrangido a abjurar sua heresia tão depressa quanto lhe foi possível, e tornar à fé dos verdadeiros crentes.

Quaisquer que fossem, todavia, as dúvidas a tal respeito, elas dissiparam-se no outro dia com a chegada de missivas regulares, confirmando a notícia do assassinato do conde e de seu enterro na Catedral de Wurtzburg.

O terror que esta notícia derramou no castelo é fácil de imaginar. O barão fechou-se em sua câmara. Os hóspedes que tinham vindo alegrar-se com ele não puderam resolver-se a abandoná-lo em seu desgosto. Vagavam pelos pátios, ou se reuniam em grupos pelas salas, maneando a cabeça e levantando os ombros, pensando nos pesares de um homem tão bom. Ficavam mais tempo que nunca sentados à mesa e comiam e bebiam corajosamente, a fim de conservar são o juízo. Mas a situação da noiva viúva era a mais lastimosa. Perder o seu marido antes de o haver abraçado... E que marido!  Se o espectro pudera ser tão gracioso e tão nobre, o que não teria sido em vida? Ela enchia a casa com suas lamentações.

Na noite do segundo dia de sua viuvez, ela se havia retirado para sua câmara, acompanhada por uma de suas tias, que insistira para dormir em sua companhia. A tia, que era uma das melhores contadoras de história de almas do outro mundo da Alemanha, tinha justamente adormecido no meio de uma das mais longas. A câmara estava situada num lugar retirado e dava para um pequeno jardim. A sobrinha repousava, contemplando pensativa os raios da lua, que passavam pelas folhas de uma faia preta que ela divisava de seu leito. O relógio do castelo dava justamente meia-noite quando se ouviu, vinda do jardim, uma música agradável. Ela levantou-se com vivacidade e correu para a janela. Uma figura alta estava abrigada debaixo das árvores e, levantando a cabeça, caiu-lhe em cheio no rosto um raio da lua. Céu e terra! A donzela reconheceu o espectro do noivo! Um grito inarticulado ressoou nesse momento a seus ouvidos, e sua tia, que havia sido acordada pela música, e a tinha seguido em silêncio, caiu em seus braços! Quando ela olhou outra vez, o espectro havia desaparecido.

Destas duas mulheres, foi a tia que exigiu cuidados, por estar fora de si, aterrada: ela declarou que não queria nunca mais dormir daquela câmara. A sobrinha, pela primeira vez, pensou diferentemente e disse com resolução que não queria dormir em nenhuma outra câmara do castelo. A consequência dessa discussão foi que, doravante, ela dormiria ali sozinha; mas obteve da tia a promessa de nunca contar a história do espectro, receando ser obrigada a renunciar ao único prazer melancólico que tinha no mundo: o de habitar a câmara sobre a qual velava uma sombra de seu noivo durante as vigílias noturnas.

Por quanto tempo cumpriu a boa velha mulher a sua promessa? Ela gostava tanto de falar do fantástico e é tamanho triunfo ser o primeiro a contar uma história aterradora! Ela não teve tempo de lutar muito tempo contra esta tentação, porque, numa manhã, ao almoço, vieram dizer-lhe que a donzela havia desaparecido. Sua câmara estava vazia. O leito não fora tocado. A janela estava aberta e o passarinho fugira.

A admiração e a consternação que acolheram esta notícia só podem ser imaginadas por aqueles que testemunharam a agitação que os percalços de um grande homem causam entre seus amigos. Os parentes descansaram por um momento de seu infatigável trabalho de comer bem. E a tia, que até então não pudera articular uma palavra, levantou as mãos e exclamou:

— O espectro! O espectro! Ela foi raptada pelo espectro!

Contou então em poucas palavras a cena terrível do jardim e concluiu que a alma do outro mundo devia ter raptado sua noiva. Dois criados confirmaram a sua opinião, por terem ouvido o galope de um cavalo na montanha pela meia-noite e não havia dúvida de que fora o fantasma, montado em seu corcel negro, que levava a noiva para a sua sepultura[5]. Todos os que estavam presentes ficaram assustadíssimos com esta horrível probabilidade, pois os acontecimentos de tal natureza são extremamente comuns na Alemanha, como o testemunham muitas histórias autênticas.

Que situação para o pobre barão! Que alternativa despedaçadora para um pai amoroso e um membro da grande família de Katzenellenbogen! Sua única filha é levada para o túmulo, ou ele está para ter por genro algum demônio dos bosques, e talvez por netos uma turba de espectros! Como de ordinário, ele ficou completamente derrotado e o castelo em desordem. Mandaram-se homens a cavalo examinar todas as estradas, trilhas e vales de Odenwald. O próprio barão tinha já calçado suas botas fortes, cingido sua espada e estava para montar a cavalo e reunir-se aos que procuravam sua filha, quando foi forçado a parar por causa de nova aparição. Tinha visto aproximar-se do castelo uma dama montada num palafrém, acompanhada por um cavaleiro. Ela galopou para a grade, apeou-se e, caindo aos pés do barão, abraçou-lhe os joelhos. Era sua filha perdida e o seu companheiro era o noivo espectro! O barão ficou atônito: olhou para a filha e depois para a aparição, e quase duvidou da evidência de seus sentidos. O fantasma fora maravilhosamente melhorado em aparência depois de sua visita ao mundo dos espíritos. Suas vestes eram esplêndidas e faziam realçar uma cabeça nobre, de simetria completamente humana. Não tinha conservado nada de sua palidez e de sua melancolia. Seu belo rosto estava corado com o viço da mocidade e a alegria brilhava em seus grandes olhos negros.

O mistério foi logo esclarecido. O cavaleiro (pois, na verdade, como vós soubestes o tempo todo, ele não era uma aparição) anunciou-se com o nome de Sir Herman von Starkenfaust. Contou sua aventura com o conde, como se apressara para chegar ao castelo a fim de dar a desgraçada notícia da morte de seu amigo, e como a eloquência do barão o interrompera todas as vezes que nele tentara falar; como a visão da noiva o tinha cativado completamente; como, para passar algumas horas junto dela, tinha consentido que continuasse o engano.  Disse que ficara embaraçado para fazer uma retirada decente, até que a história do barão lhe inspirou a ideia de sua excêntrica partida. Falou que, por temer a hostilidade hereditária da família do barão, repetira suas visitas clandestinamente. Contou como tinha andado pelo jardim sob as janelas da donzela; como a tinha determinado a fugir com ele e, numa palavra, como, por fim, a tinha desposado legitimamente.

Em qualquer outra circunstância, o barão teria sido inflexível, porque desvelava-se muito em manter a sua autoridade paterna, e era religiosamente obstinado em todas as desavenças. Mas ele amava sua filha. Tinha-a chorado como perdida. Alegrou-se por encontrá-la viva; e, malgrado fosse o marido de uma casa hostil à sua, agradeceu ao céu por não ter feito esse marido um demônio. Entretanto, sentia-se ofendido, e com razão, pensando que o cavaleiro, fazendo-se passar por morto, tinha dito coisas que não eram a estrita verdade. Mas alguns velhos amigos presentes, antigos militares, asseguram-lhe que todos os estratagemas eram desculpáveis no amor, e que o cavaleiro tinha direito a pretender um privilégio especial, tendo outrora servido na cavalaria.

Foi por isto que, felizmente, tudo se arranjou. O barão perdoou imediatamente os esposos. As festas no castelo recomeçaram e os parentes pobres encheram o novo o membro da família de lisonjas e atenções: ele era tão galante, tão generoso, tão rico! É verdade que as tias ficaram por algum tempo escandalizadas por ver que seu sistema de estrita reclusão e de obediência passiva tivesse tal desfecho, mas atribuíam isto à negligência que haviam tido em não gradear as janelas. Uma delas ficou particularmente mortificada porque a sua história maravilhosa ficara um pouco danificada e porque o único fantasma que vira não era realmente um espectro. Mas a sobrinha pareceu perfeitamente venturosa por ser ele de carne e osso. E assim se acaba a minha história.


Tradução de autor desconhecido do séc. XIX. Fonte: O Recreador Mineiro, 1847.
Adaptação textual e notas: Paulo Soriano



[1] Literalmente, cotovelo de gato.
[2] Livro dos Heróis.
[3] Cantigas trovadorescas germânicas medievais.
[4] Trata-se da narrativa em versos do escritor alemão Gottfried August Bürger (1747– 1794). Nessa gótica narrativa, de cunho sobrenatural, Lenore, impaciente com o regresso de seu amado Wilhelm, que não retornara do campo de batalha, renega Deus. Certo dia, à meia-noite, a jovem recebe a visita de um misterioso cavaleiro, que ela supõe ser Wilhelm. Ele pede à moça que acompanhe numa viagem, a cavalo, rumo ao macabro leito nupcial. 
[5] Referência ao poema Lenore, de Gottfried August Bürger.

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