NO CAMPO DE OLIVEIRAS - Conto Trágico - Guy de Maupassant
NO CAMPO DE
OLIVEIRAS
Guy de Maupassant
(1850 – 1893)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
I
Quando
os homens do porto, do pequeno porto provençal de Garandou, ao fundo da Baía
Pisca, entre Marselha e Toulon, divisaram a embarcação do padre Vilbois, que
voltava da pesca, desceram à praia para ajudá-lo a puxar o barco.
O
padre era o ocupante único e remava como verdadeiro marujo, com uma energia
difícil de encontrar aos cinquenta anos. De mangas enroladas nos braços
musculosos, a sotaina arregaçada e presa entre os joelhos, meio desabotoada no
peito, o tricórnio no banco ao lado, na cabeça um chapéu coco de cortiça
recoberta de tela branca, ele tinha a aparência de um robusto e extravagante
sacerdote dos países tropicais, feito muito mais para correr aventuras do que
para dizer missas.
De
tempos a tempos, olhava para a retaguarda a fim de reconhecer o ancoradouro, depois
recomeçava a remar, de modo ritmado, metódico e forte, para mostrar uma vez
mais àqueles reles marinheiros do Meio-Dia como remam os homens do Norte.
Lançada
a toda velocidade, a barca tocou a areia e escorregou sobre ela como se fosse
trepar pela praia, nela enterrando a quilha; depois, parou de vez e os cinco homens
que esperavam o cura aproximaram-se dele, amáveis, alegres, simpáticos, para
com o padre.
—Eh ben! — disse um deles com seu forte sotaque de Provença. — Boa pesca, senhor cura?
O
padre Vilbois recolheu os remos, tirou o chapéu de cortiça, que substituiu pelo
tricórnio, desenrolou as mangas, tornou a abotoar a sotaina; em seguida, tendo
retomado o hábito e a aparência de cura da aldeia, respondeu com orgulho:
—
Sim, sim, muito boa: três lobos, duas moreias, e algumas girelas.
Os
cinco pescadores se haviam aproximado da barca e, debruçados sobre o bordo,
examinavam, com ar de entendidos, os peixes mortos, os gordos lobos, as moreias
de cabeça chata, horrorosas serpentes marinhas, e as girelas roxas, estriadas
em ziguezague de listras douradas como casca de laranja. Um deles disse:
—
Vou levar isto para sua quinta, senhor cura.
Após
despedir-se, o padre pôs-se a caminho, seguido por um homem e deixando os
outros ocupados em cuidar de suas embarcações.
Caminhava
a grandes passos vagarosos, com um ar de força e de dignidade. Como sentisse
calor por ter remado tão vigorosamente, tirava por vezes o chapéu no passar sob
a tênue sombra das oliveiras, para entregar ao ar da tarde — sempre morno, mas
um pouco mais frasco por causa de uma vaga brisa do oceano — a fronte quadrada,
coberta de cabelos brancos, estirados e cortados rente, mais uma fronte de oficial
do que de padre. A aldeia aparecia numa eminência, em meio a um largo vale, que
descia num declive suave em direção ao mar.
Era
tarde de julho. O Sol deslumbrante, prestes a alcançar a crista dentada das
colinas longínquas, alongava, em diagonal na estrada branca, enterrada sob um
sudário de poeira, a sombra interminável do padre, cujo imenso chapéu enchia o
campo vizinho de uma grande mancha escura, que parecia brincar, trepando com
vivacidade, por todos os troncos de oliveiras encontrados, para recair na terra
onde se arrastava entre as árvores.
Sob
os pés do padre Vilbois, uma nuvem de poeira fina, dessa farinha implacável de
que no verão se cobrem os caminhos provençais, eleva-se, fumegando em torno de
sua sotaina, que velava e cobria na orla, com uma tinta cada vez mais clara. Já
refrescado, ele continuava a andar com as mãos nos bolsos, no passo forte e
lento de montanhões fazendo uma ascensão. Seus olhos calmos dominavam a aldeia
— sua aldeia —, onde era o cura há vinte anos, aldeia escolhida por ele, obtida
por grande favor, onde esperava morrer. A igreja — sua igreja — coroava o
grande cone das casas amontoadas em torno dela, de suas duas torres de pedra
escura, desiguais e quadradas, que elevavam nesse belo vale meridional sua
silhueta antiga, mais semelhante a defesas de praça forte do que a campanários
de monumento sacro.
O
padre estava alegre, porque tinha pescado três lobos, duas moreias e algumas
girelas.
Exibiria
este novo triunfo ante seus paroquianos, eles que o respeitavam principalmente
porque, apesar de sua idade, talvez fosse o homem mais musculoso do lugar.
Estas pequenas vaidades inocentes eram seu maior prazer. Atirava a pistola de
modo a cortar talos de flores, às vezes esgrimia com o vendedor de tabaco, seu
vizinho, antigo preboste do regimento, e remava melhor do que ninguém naquela
costa.
Além
disso, era um antigo homem de sociedade muito conhecido outrora, muito
elegante, o barão de Vilbois, que se fizera padre aos trinta e dois anos, em consequência
de um desgosto de amor.
Descendente
de antiga família picarda, realista e religiosa, que há muitos séculos dava
seus filhos ao exército, à magistratura ou ao clero, pensou primeiro em tomar
ordens a conselho materno, depois, sob a insistência do pai, decidiu-se a ir a
Paris fazer um curso de Direito e solicitar depois alguma função séria no
Palácio da Justiça.
Mas, durante o curso, o pai sucumbiu de uma
pneumonia, consequência de caçadas no alagado, e a mãe, presa de pesar, morreu
pouco tempo depois. Assim, tendo herdado inesperadamente uma grande fortuna,
ele renunciara a projetos de qualquer carreira e contentara-se em viver como
gente rica.
Rapaz
bonito, inteligente, conquanto de espírito limitado por crendices, tradições e
princípios, hereditários como seus músculos de fidalgote picardo, ele agradou,
fez sucesso na boa sociedade, e gozou a vida como homem jovem, rígido, opulento
e considerado.
Eis,
porém, que, em seguida a alguns encontros em casa de um amigo, apaixonou-se por
uma jovem atriz, uma aluna muito jovem do Conservatório, que estreava
brilhantemente no Odeon.
Apaixonou-se
com toda a violência, toda a veemência de um homem nascido para crer em ideias
absolutas. Apaixonou-se vendo-a através do papel romântico em que obtivera um
grande êxito no próprio dia em que, pela primeira vez, aparecera ao público.
Ela
era linda, inatamente perversa, com um jeito de criança ingênua, que ele
denominava ar angélico. Soube conquistá-lo completamente, fazer dele um desses
loucos furiosos, um desses dementes em êxtase, que um olhar ou uma saia de
mulher queimam na fogueira das paixões mortais. Tomou-a por amante, fê-la
deixar o teatro e amou-a, durante quatro anos com um ardor sempre crescente.
Certamente,
apesar de seu nome e das tradições de honra de sua família, teria acabado por
desposá-la, se não tivesse um dia descoberto que ela o enganava há muito tempo
com o amigo que lha tinha apresentado.
O
drama foi tanto mais terrível quanto ela estava grávida e ele esperava o
nascimento da criança para decidir-se ao casamento. Quando teve na mão as
provas — cartas achadas numa gaveta —, lançou-lhe em rosto sua infidelidade,
sua perfídia, sua ignomínia, com toda a brutalidade do semisselvagem que era.
Ela,
porém, filha das sarjetas de Paris, tão impudente quanto impudica, segura do
outro homem como deste, além disto ousada como essas raparigas do povo que
sobem às barricadas por mera temeridade, desafiou-o e insultou-o; e como ele
erguesse a mão, mostrou-lhe o ventre.
Ele
parou, empalidecendo; pensou que havia um descendente seu naquela carne corrupta,
naquele corpo vil, naquela criatura imunda, um filho seu! Então, arremessou-se
a ela, a fim de esmagá-los a ambos, aniquilar aquela dupla vergonha. Ela teve
medo, sentindo-se perdida, e, ao cair sob uma pancada, como lhe visse o pé
prestes a esmagar o flanco arredondado onde já havia um embrião de homem,
gritou-lhe com as mãos estendidas para aparar os golpes:
—
Não me mates. Não é teu, é dele.
Ele
deu um passo atrás, tão estupefato, tão transtornado, que o seu furor
suspendeu-se-lhe como o calcanhar e ele balbuciou:
—Tu...
tu dizes?
Ela,
enlouquecida subitamente pelo terror diante da morte entrevista nos olhos e no
gesto terrífico daquele homem, repetiu:
—Não
é teu, é dele.
Ele
murmurou, com os dentes cerrados, aniquilado:
—A
criança?
—
Sim.
—Mentes.
E
de novo iniciou o gesto de pé, o gesto de quem vai esmagar alguém, enquanto sua
amante, erguida sobre os joelhos, tentando recuar, continuava a balbuciar:
—Se
eu te digo que é dele, é dele. Se fosse
teu, não o teria eu dito há muito tempo?
Este
argumento feriu-o como a própria verdade. Num desses lampejos de lucidez em que
todos os raciocínios aparecem ao mesmo tempo com uma clareza inspiradora,
precisos, irrefutáveis, concludentes, irresistíveis, ele se deu por convencido,
ficou certo de que não era o pai do miserável filho de tratante que ela
concebera; e aliviado, liberto, quase apaziguado repentinamente, renunciou a
destruir aquela criatura infame. Então disse-lhe em voz mais calma:
—
Levanta-te e vai embora, e que eu nunca mais te veja.
Nunca
mais a reviu.
Partiu
por sua vez. Desceu até ao Sul, em direção ao Sol e parou numa aldeia
construída no meio de um vale, à margem do Mediterrâneo. Agradou-lhe um albergue
voltado para o mar; nele tomou um quarto e lá ficou. Durante dezoito meses
permaneceu triste, desesperado, em completo isolamento. Lá viveu com a
lembrança devoradora da mulher traidora, a lembrança de seu encanto, de seu
envolvimento, de seu feitiço inconfessável, e com a falta dolorosa de sua
presença e de suas carícias. Andava à toa pelos vales provençais, passeando ao
Sol coado pelas folhinhas cinzentas das oliveiras, sua pobre cabeça doente,
onde viria uma obsessão.
Mas
suas antigas ideias piedosas, o ardor um tanto acalmado de sua fé primeira,
voltaram-lhe ao coração sutilmente naquela dolorosa solidão. A religião, que
lhe aparecera outrora como um refúgio contra a vida desconhecida, aparecia-lhe
agora como um refúgio contra a vida enganadora e torturante. Tinha conservado o
hábito da oração. Entregou-se a ele em seu desgosto e frequentemente ia, à hora
do crepúsculo, ajoelhar-se na igreja escura onde brilhava sozinho, ao fundo do coro,
o ponto de fogo da lâmpada, guarda sagrada do santuário, símbolo da presença
divina.
Confiou
sua dor a esse Deus, ao seu Deus, e contou-lhe toda a sua desdita. Pedia-lhe
conselho, compaixão, socorro, proteção, consolo, e em sua oração, repetida cada
dia com mais fervor, punha cada vez uma emoção mais forte.
Seu
coração magoado, roído pelo amor de uma mulher, continuava aberto e palpitante,
sempre ávido de ternura; e pouco a pouco, à força de rezar, de viver como
eremita com hábitos mais acentuados de fé, de se entregar a essa comunhão das
almas devotas com o Salvador que consola e atrai os infelizes, o amor místico
de Deus nele penetrou e venceu o outro.
Retomou então seus primeiros
projetos e decidiu oferecer à Igreja uma vida quebrada que deixara de
oferecer-lhe virgem.
Fez-se
padre. Por intermédio de sua família, por meio de suas relações, conseguiu ser
designado pároco daquela aldeia provençal aonde o acaso o tinha lançado e,
tendo consagrado a obras de beneficência grande parte de sua fortuna e guardado
apenas o que lhe permitisse continuar até a morte a ser útil e de auxílio aos
pobres, refugiou-se numa existência calma de práticas piedosas e devotamento a
seus semelhantes.
Era
um padre de visão estreita; contudo, era bom; uma espécie de guia religioso com
temperamento de soldado, um guia da Igreja que conduzia à força, pelo caminho certo,
a humanidade errante, cega, perdida na floresta da vida, em que todos os nossos
gostos, instintos e desejos são atalhos que fazem desgarrar. Contudo, muito do homem
de outrora vivia nele. Não deixou de apreciar os exercícios violentos, os
esportes nobres, as armas, e detestava as mulheres, todas elas, com um medo
infantil diante de um perigo misterioso.
II
O
marinheiro que acompanhava o padre estava impaciente por uma conversa, como
todo meridional. Não ousava, porém, falar, porque o cura exercia uma grande
ascendência sobre suas ovelhas. Por fim aventurou:
—
Então — disse ele — o senhor sente-se bem em sua quinta, senhor cura?
Aquela
quinta era uma dessas casas microscópicas onde os provençais das cidades e
aldeias vão aninhar-se, no verão, para tomar ar. O padre tinha alugado aquela
cabana no meio de um campo, a cinco minutos de seu presbitério, pequeno demais
e comprimido no centro da paróquia, junto da igreja.
Mesmo
no verão, não habitava regularmente no campo: lá ficava somente por uns dias,
de tempos a tempos, para viver em plena mata e atirar à pistola.
—
Sim, meu amigo — disse o padre —, eu me sinto muito bem nela.
A
casa baixa aparecia, construída no meio das árvores, pintada de cor-de-rosa,
listrada, picada, cortada em pedacinhos pelos galhos e folhas das oliveiras de
que o campo era plantado, sem uma cerca, onde no qual semelhava ter surgido
como um cogumelo da Provença.
Avistava-se
também uma mulher alta que se movia diante da porta, preparando uma mesinha de jantar,
onde colocava de cada vez, com lentidão monótona, um talher, um prato, um
guardanapo, um pedaço de pão, um copo.
Ela
usava a touca das arlesianas, um pontudo cone de seda ou veludo preto, no qual
florescia um cogumelo branco.
Quando
o padre chegou ao alcance de voz, gritou-lhe:
—
Eh! Marguerite!
Ela
parou a fim de olhar e, reconhecendo o patrão, disse:
—
Olha! É o senhor, senhor cura?
—
Sim. Trago-lhe uma bela pesca. Você vai assar-me imediatamente um lobo, um lobo
na manteiga, só manteiga, ouve?
A
criada, vindo ao encontro dos homens, examinava, com olho de conhecedor, os
peixes carregados pelo marujo.
—
É que temos um arroz de galinha —disse ela.
—
Tanto pior. O peixe guardado não vale o peixe tirado d’água. Vou
proporcionar-me um banquete de guloso, o que não me acontece muitas vezes; e,
além disso, o pecado não é grande.
A
mulher escolhia o lobo e quando se afastava, carregando-o, voltou-se:
—
Ah! Um homem veio procurá-lo três vezes, senhor cura.
Ele
perguntou com indiferença:
—
Um homem! Que tipo de homem?
—
Ora, um homem que não me inspira confiança.
—
Como! Um mendigo?
—
Talvez sim, não digo que não. Eu acho que é mais um “maoufatan”.
O
padre Vilbois pôs-se a rir a esse termo provençal que significa malfeitor,
ladrão de estradas, porque conhecia o espírito medroso de Marguerite, que não
podia passar uns tempos na quinta sem imaginar durante os dias, e
principalmente às noites, que iam ser assassinados.
Deu
alguns níqueis ao marinheiro, que se retirou e, ao dizer (porque conservara
todos os seus hábitos de cuidado e asseio do antigo homem de sociedade):
"Vou lavar o rosto e as mãos", Marguerite gritou-lhe da cozinha, onde
escamava com uma faca a pele do lobo, cujas escamas, um pouco sujas e sangue,
se soltavam quais minúsculas moedinhas de prata:
—
Olhe! Lá está ele...
O
padre voltou-se para a estrada e notou, com efeito, um homem, que de longe, lhe
pareceu muito malvestido, e que, a passos miúdos, se dirigia à casa. Esperou-o
sorrindo ainda por causa do terror da criada e pensando: — “Palavra, creio que
ela tem razão; ele bem parece um ‘maoufatan’”.
O
desconhecido aproximava-se com as mãos nos bolsos, os olhos fixos no padre, sem
se apressar. Era jovem, usava barba inteira loura e crespa, e mechas de cabelos
enrolavam-se em cachos saindo do chapéu de feltro mole, tão sujo e informe que
ninguém teria podido advinhar-lhe a cor e o feitio originais. Usava um longo
sobretudo pardo, calças esfarrapadas nos tornozelos e tinha os pés metidos em
espadrilhas, o que lhe dava um andar mole, surdo, inquietador, um passo
imperceptível de ladrão.
Quando,
chegou a alguns passos do sacerdote, tirou o trapo que lhe cobria a fronte,
saudando com um gesto teatral, e deixando à mostra uma cabeça murcha, viciosa e
linda, calva no topo do crânio, sinal de fadiga ou de deboche precoce, porque aquele
homem certamente não tinha mais de vinte e cinco anos.
O
padre também tirou o chapéu, adivinhando e sentindo que aquele não era
vagabundo comum, o operário sem trabalho ou o reincidente que vagueia entre
dois períodos de cadeia e que não sabe falar senão a linguagem misteriosa das
galés.
—
Bom dia, senhor cura, disse o homem.
O
padre respondeu simplesmente "Salve", não querendo chamar “senhor” àquele
passante suspeito e andrajoso. Contemplaram-se fixamente e o padre Vilbois, ante
o olhar daquele vagabundo, sentia-se perturbado, comovido, como à frente de um
inimigo desconhecido, invadido por uma dessas inquietações estranhas que se insinuam
em calafrios na carne e no sangue.
Por
fim, o vagabundo prosseguiu:
—
Muito bem! Reconhece-me?
O
cura, muito admirado, respondeu:
—
Eu, de forma alguma, não sei quem é.
—
Ah! O senhor não sabe quem sou. Olhe-me um pouco mais.
—
Por mais que o olhe, continuo a dizer que nunca o vi.
—
É verdade — replicou o outro, irônico —, mas vou mostrar-lhe alguém que o
senhor conhece melhor.
Pôs
o chapéu na cabeça e desabotoou o sobretudo. Dentro, o peito estava nu. Um
cinturão vermelho, enrolado em torno do ventre magro, sustinha as calças acima
dos quadris.
Tirou
do bolso um envelope, um desses incríveis envelopes que mostram vestígios de
todas as manchas, um desses envelopes que guardam no forro dos mendigos
errantes todos os papéis, verdadeiros ou falsos, roubados ou legítimos,
preciosos defensores da liberdade contra o policial encontrado. Tirou dele uma
fotografia, um desses cartões do tamanho de um papel para cartas, que outrora
era costume tirar, amarelada, gasta, arrastada por toda parte durante muito
tempo, aquecida contra a carne daquele homem e apagada pelo seu calor.
Então,
erguendo-se à altura do rosto, ele perguntou:
—
E este, conhece-o?
O padre deu dois passos à frente para ver
melhor e empalideceu, perturbado, porque era seu próprio retrato tirado para ela,
na época longínqua de seu amor.
Nada
respondia, porque não compreendia. O vagabundo repetiu:
—
Reconhece este?
E
o padre balbuciou:
—
Decerto que sim.
—
Quem é?
—
Sou eu.
—
É mesmo o senhor. Pois bem! Olhe-nos a ambos, agora, seu retrato e eu.
Ele
já tinha visto, o desventurado homem; tinha visto aqueles dois seres, o do
retrato e o que ria ao lado; assemelhavam-se como dois irmãos, mas ainda não
compreendia, e gaguejou:
—
Que pretende de mim, afinal?
Então
o mendigo, com voz maldosa:
— O que eu quero? Mas eu quero que primeiro me
reconheça.
—
Quem é você, então?
—
Quem sou eu? Pergunte a qualquer um na estrada, pergunte-o à sua criada,
perguntemos ao delegado da aldeia, se quiser, mostrando-lhe isto, e ele rirá
muito, sou eu que lhe digo. Ah! Não quer reconhecer que sou seu filho, papai
padre?
Então
o ancião, levantando os braços num gesto bíblico e desesperado, gemeu:
—
Não é verdade.
O
rapaz aproximou-se até tocá-lo, frente a frente.
—Ah!
Isso não é verdade. Ah, padre é preciso deixar de mentir, sabe?
Tinha
um aspecto ameaçador, com os punhos fechados, e falava com uma convicção tão
violenta que o padre, recuando sempre, perguntava a si mesmo qual dos dois se
enganava nesse momento. Ainda uma vez, entretanto, afirmou:
—
Jamais tive filhos.
O
outro replicou:
—E
nunca teve amantes talvez?
O
velho pronunciou resolutamente uma única palavra, uma confissão altiva:
—Sim.
—
E essa amante não estava grávida quando a expulsou?
De
súbito a raiva antiga, reprimida vinte e cinco anos antes, sufocada não, mas
encerrada no fundo do coração de amante, quebrou as abóbadas de fé, de devoção
resignada, de renúncia completa, com que a cercara, e, fora de si, ele
exclamou:
—
Expulsei-a porque ela me enganou e concebeu um filho de outro, sem o que eu a
teria matado, cavalheiro, e ao senhor com ela.
O
rapaz hesitou, surpreendido por sua vez com a indignação sincera do cura;
depois replicou, com mais doçura:
—
Quem lhe disse que o filho era de um outro?
—
Ora essa, ela própria, para afrontar-me.
Então
o vagabundo, sem contestar aquela acusação, concluiu no tom indiferente de um
malandro que julga uma causa:
—Eh,
bem! Foi mamãe que se enganou ao escarnecer do senhor, eis tudo.
Depois
daquele acesso de furor, o padre recuperou o sangue frio e por sua vez.
interrogou-o:
—E
quem lhe disse, ao senhor, que era meu filho?
—Ela,
ao morrer, senhor cura... E isto em
seguida.
E
expunha a pequena fotografia ao olhar do padre.
O
velho tomou-a, e lenta, longamente, com o coração agitado pela angústia,
comparou aquele viandante desconhecido com o seu retrato antigo e não mais
duvidou: ele era mesmo seu filho.
Sua
alma foi dominada por uma angústia inexprimível, horrivelmente dolorosa como o
remorso de um velho crime. Compreendia um pouco, adivinhava o resto, revia a
cena brutal da separação. Fora para salvar a vida, ameaçada pelo homem
ultrajado, que a mulher, a fêmea enganadora e pérfida, lhe dissera aquela
mentira. E a mentira tinha vencido. E um filho lhe nascera, crescera,
tornara-se aquele sórdido libertino que tinha cheiro de vício como um bode tem
cheiro de bicho.
Num
murmúrio, disse:
—
Quer andar um pouco em minha companhia para que nos expliquemos melhor?
O
outro começou a chacotear:
—
Mas, na verdade! Justamente para isso foi que eu vim.
Caminharam
juntos, lado a lado, pelo campo de oliveiras. O Sol tinha desaparecido. A
intensa frescura dos crepúsculos do meio-dia estendia pela campina um invisível
manto gelado. O padre tiritava e, erguendo bruscamente o olhar, num movimento
habitual de celebrante, percebeu em torno de si, balouçando-se contra o céu, a
folhagem miúda, acinzentada da árvore sagrada, que abrigara sob sua frágil
sombra a mais intensa dor, o desfalecimento único do Cristo.
Do
íntimo, brotou-lhe uma oração breve e desesperada, feita com a voz interior,
que de modo algum passa pela boca e com a qual os crentes imploram ao Salvador:
"Meu Deus, socorrei-me".
Em
seguida, voltando-se para o filho:
—
Então sua mãe morreu?
Um
novo desgosto despertava nele ao pronunciar essas palavras "Sua mãe
morreu", e crispava-lhe o coração, uma estranha miséria da carne humana
que jamais conseguiu esquecer e uma revivescência cruel da tortura que sofrera;
porém — mais ainda, talvez, porque ela estava morta —, um estremecimento
daquela curta e delirante felicidade de juventude, de que agora nada mais
restava além da chaga de sua lembrança.
O
rapaz respondeu:
—
Sim, senhor cura, minha mãe morreu.
—
Faz muito tempo?
—
Sim. faz três anos.
Uma dúvida nova assaltou o padre.
—
E por que não veio procurar-me há mais tempo?
O
outro hesitou.
—
Não pude. Alguns impedimentos... Mas, desculpe-me interromper estas
confidencias, que lhe farei depois, minuciosamente, quando for de seu agrado,
para dizer-lhe que nada comi desde ontem pela manhã.
Um
movimento de compaixão invadiu o velho que, estendendo as mãos bruscamente,
disse:
—
Oh! Meu pobre filho.
O
rapaz apertou aquelas grandes mãos estendidas, que lhe envolveram os dedos,
mais finos, mornos e febris.
Depois
respondeu no tom de motejo, que não lhe abandonava os lábios:
—
Ora essa! Na verdade, começo a acreditar que chegaremos a entender-nos.
O
cura pôs-se a andar.
—
Vamos jantar — disse. Lembrava-se, de repente, com uma alegriazinha instintiva,
confusa, estranha, do belo peixe que pescara, o qual, juntamente com o arroz de
galinha, constituiria nesse dia um bom repasto para aquele miserável rapaz.
A
arlesiana, inquieta, e com vontade de ralhar, esperava diante da porta.
—
Marguerite — gritou o padre —, leve a mesa para a sala, logo, logo, e ponha
dois talheres, mas bem depressa.
A
criada continuava aparvalhada só de pensar que seu patrão ia jantar com aquele
malfeitor. Então, o padre Vilbois pôs-se ele próprio a tirar e a transportar
para a sala única do rés do chão a mesa posta para ele. Cinco minutos mais
tarde, estava sentando defronte do vagabundo, diante de uma sopeira cheia de
sopa de couve, da qual subia por entre seus rostos uma nuvenzinha de vapor.
III
Quando
os pratos foram servidos, o vagabundo começou a engolir avidamente a sopa, às
colheradas rápidas. A fome do padre passara e ele apenas chupava lentamente o
saboroso caldo de couve, deixando o pão no fundo do prato.
De
repente, perguntou:
—
Como se chama?
O
homem riu, satisfeito por saciar a fome.
—
Pai desconhecido — disse ele —; como sobrenome, apenas o nome de minha mãe, que
o senhor provavelmente não esqueceu ainda. Em compensação, tenho dois prenomes,
que, entre parênteses, não me calham: “Philippe-Auguste”.
O
padre empalideceu e, com a garganta contraída, perguntou:
—
Por que lhe deram tais nomes?
O
vagabundo encolheu os ombros.
—
O senhor bem deve sabê-lo. Depois de deixá-lo, mamãe tratou de fazer seu rival
acreditar que eu era dele, e ele acreditou mais ou menos até os meus quinze
anos. Nesse tempo, porém, comecei a parecer-me demais com o senhor. E ele, o
canalha, renegou-me. Tinham- me dado seus dois prenomes, Philippe-Auguste, e se
eu tivesse tido a sorte de não parecer com alguém ou de ser filho do terceiro
ladrão que não tivesse aparecido, chamar-me-ia, hoje, visconde Philippe-Auguste
le Pravallon, filho tardiamente reconhecido pelo conde do mesmo nome, senador.
A mim próprio batizei de “Sem Sorte”.
—
Como sabe tudo isso?
—
Presenciando discussões, ora essa! E explicações ásperas, convenhamos. Ah! Tais
coisas são as que ensinam a viver!
Algo
de mais doloroso e mais atormentador do que tudo que sentira e sofrera durante
meia hora oprimia o padre. Era como uma espécie de sufocação que começava, que
ia aumentar e acabaria por matá-lo, e isso lhe vinha não tanto das coisas que
ouvia, como da maneira pela qual eram ditas e do rosto crapuloso do malandro
que as fazia ressaltar. Entre aquele
homem e ele, e seu filho, começava a sentir no momento aquela cloaca de imundícies
morais que, para certas almas, são venenos letais. Aquilo era seu filho? Não
podia acreditá-lo. Exigia todas, todas as provas; queria saber tudo, ouvir
tudo, escutar tudo, sofrer tudo. Pensou outra vez nas oliveiras que cercavam
sua casinha, e pela segunda vez murmurou: "Oh, meu Deus, socorrei-me!"
Philippe-Auguste
terminara a sopa. E perguntou:
—
Não há mais comida, padre?
Como
a cozinha fosse no exterior, num edifício anexo, e porque Marguerite não podia
ouvir a voz de seu pároco, este a prevenia do que precisava por algumas
pancadas num gongo chinês pendurado atrás de si, perto da parede.
Tomou
a maceta e bateu várias vezes na placa metálica circular. Um som fez-se ouvir,
a princípio fraco, e que aumentou, acentuou-se, vibrante, agudo, agudíssimo,
dilacerante, lamento horrível do cobre batido.
A
criada apareceu. Seu rosto estava crispado e ela deitava olhares furiosos ao “maonfatan”,
como se o seu intuito de cão fiel a tivesse advertido acerca do drama que se
abatera sobre seu patrão. Tinha nas mãos o lobo grelhado de que se evolava um
saboroso cheiro de manteiga derretida. O padre, com uma colher, separou a peixe
de ponta a ponta e, oferecendo o filé ao filho de sua juventude:
—Fui
eu que o pesquei ainda há pouco — disse ele, com uma ponta de orgulho que lhe
restava na desgraça.
Marguerite
não se arredava.
O
padre continuou:
—Traga
vinho, vinho bom, vinho branco do cabo Corso.
Ela
teve quase um gesto de revolta, e ele foi obrigado a repetir, assumindo um ar
severo:
—Vá.
Traga duas garrafas. — Porque, quando oferecia vinho a alguém, um raro prazer,
oferecia-se sempre numa garrafa.
Philippe-Auguste,
satisfeito, murmurou:
—
Distinto! Que ótima ideia. Há muito tempo não comia eu tanto.
A
criada voltou ao cabo de dois minutos. Para o padre pereceram duas eternidades,
porque uma necessidade de saber queimava-lhe o sangue, devoradora como o fogo
do inferno.
As
garrafas estavam abertas, mas criada permanecia na sala, de olhos fixos no
homem.
—
Deixe-nos — disse o cura. Ela fez que não intendia.
Ele
replicou, quase duramente:
—
Dei ordem para que nos deixasse a sós.
Então
ela foi embora.
Philippe-Auguste
comia o peixe com uma precipitação voraz; e o pai o olhava, cada vez mais surpreso
e desolado por tudo que descobria debaixo daquele rosto que tanto se lhe
assemelhava. Os pedacinhos que o padre Vilbois levava aos lábios, ficavam-lhe
na boca porque a garganta apertada negava-se a deixá-los passar. Por muito
tempo ele os mastigava, procurando entre todas as perguntas, que lhe vinham à
lembrança, aquela cuja resposta mais rapidamente desejava. Acabou perguntando:
— De que morreu ela?
—
Tuberculose.
—
Ficou doente por muito tempo?
—
Mais ou menos ano e meio.
—
Como contraiu a doença?
Calaram-se.
O padre pensava. Oprimam-no coisas que ele teria desejado já fossem de seu
conhecimento, porque desde o dia da rutura, desde o dia em que quase a matara,
nada soubera a seu respeito. Decerto, ele também não quisera saber, porque
resolutamente a lançara no largo fosso do esquecimento, a ela e a seus dias de
felicidade; mas, eis que sentia de repente nascer em si, agora que ela estava
morta, um desejo ardente de saber, um desejo ciumento, quase um desejo carnal.
Recomeçou:
—
É verdade que ela não vivia sozinha?
—
Não, ela vivia sempre com ele.
O
velho estremeceu.
—
Com ele! Com Pravallon?
—
Decerto.
E
o homem outrora enganado calculou que a mesma mulher, que o tinha traído, tinha
sido fiel a seu rival durante mais de trinta anos.
Foi
constrangido que balbuciou:
—Eles
foram felizes?
Motejando,
o rapaz respondeu:
—
Sim, sem dúvida, com alternativas. Tudo iria muito bem se não fosse eu. Sempre
estraguei tudo.
—
Como e por quê? — disse o padre.
—
Já lhe contei. Porque ele acreditou que eu era seu filho mais ou menos até os
meus quinze anos. Mas o velho não era tolo, acabou descobrindo a semelhança e
então começaram as cenas. Eu escutava às portas. Ele acusava mamãe de o ter
enganado. Mamãe retorquia: “É culpa minha? Tu sabias muito bem, quando me conquistaste,
que eu era amante de outro”. O outro era o senhor.
—
Ah! Desse modo era que se referiam a mim algumas vezes?
—
Sim, porém jamais lhe pronunciaram o nome diante de mim, a não ser no fim, bem
no fim, nos últimos dias, quando mamãe sentiu-se perdida. Mesmo assim eles
desconfiavam.
—E
você... Você soube logo que sua mãe não tinha uma situação regular?
—Hom'essa!
Não sou ingênuo, sabe? E nunca fui. Essas coisas adivinham-se logo, assim que a
gente começa a conhecer a vida.
Philippe-Auguste
esvaziava copo após copo. Seus olhos brilhavam, pois o longo jejum fazia-o
embebedar-se rapidamente.
O
padre percebeu isso, esteve para dizer-lhe que bastava, mas lembrou-se de que a
embriaguez acarretava imprudência e tagarelice, e, tomando a garrafa, encheu de
novo o copo do rapaz. Marguerite trazia o arroz de galinha. Colocando-o na
mesa, ela fixou novamente o olhar no vagabundo; em seguida, disse ao patrão com
um ar indignado:
—
Mas senhor, veja como ele está bêbado!
—
Deixa-nos afinal tranquilos — replicou o padre — e vai-te embora.
Ela
saiu, batendo a porta,
Ele
perguntou:
—
Que era que sua mãe dizia de mim?
—
Ora, o que em geral se diz do homem que se abandonou; que o senhor não era
acessível, era maçador para uma mulher e que lhe teria tornado a vida muito
difícil com as suas ideias.
— Ela disse isso com frequência?
—Sim,
às vezes com subterfúgios, para que eu não compreendesse, mas eu adivinhava
tudo.
—E
você, como era tratado na casa?
—Eu?
Muito bem a princípio e muito mal em seguida. Quando mamãe viu que eu estragava
o negócio, pôs-me no olho da rua.
—
Como foi?
—
Ora, ora, da maneira mais simples. Aos dezesseis anos pratiquei algumas
rapaziadas; então aqueles imprestáveis me puseram numa casa de correção, para
se desembaraçarem de mim.
Apoiou
os cotovelos na mesa, as faces nas duas mãos e, completamente ébrio, o espírito
afogado em vinho, foi tomado, de repente, de um desses desejos insopitáveis de
falar de si mesmo, que fazem divagar os bêbados em gabolices fantásticas. E
sorria com amabilidade, com uma graça feminina nos lábios, uma graça perversa
que o padre reconheceu. Não somente a reconheceu, mas sentiu-a, odiada e
acariciadora, aquela graça que outrora o tinha conquistado para perdê-lo. O
filho assemelhava-se cada vez mais à mãe, não pelos traços do rosto, mas pelo
olhar cativante e falso, e principalmente pela sedução do sorriso mentiroso,
que parecia abrir a porta da boca a todas as infâmias do íntimo.
Philippe-Auguste contou:
—Ah!
Ah! Ah! Desde a casa de correção eu tive uma vida singular que teria valor para
um grande romancista. Em verdade, Dumas pai, com seu Conde de Monte Cristo, não
achou casos mais divertidos do que os que me aconteceram.
Calou-se,
afetando uma seriedade filosófica de homem bêbado que reflete, e, depois,
disse:
—
Quando se quer que um menino dê para alguma coisa, ou pior que ele seja, não se
deve pô-lo numa casa de correção, por causa das amizades que grangeia lá
dentro. Eu tinha praticado uma façanha que não deu certo. Uma tarde, perto de
nove horas, eu e três camaradas, todos um pouco esquentados, andávamos sem rumo
na estrada real perto do vau de Folac, quando encontrei uma carruagem em que todos
dormiam, o cocheiro e sua família; era gente de Martinon que acabava de jantar
fora. Peguei o cavalo pela rédea, levei-o até a balsa de atravessar o rio e
empurrei a balsa até o meio do rio. Isso fez barulho, o burguês que guiava
acordou, nada viu e fustigou o cavalo. O cavalo disparou e pulou na correnteza
com o carro. Todos se afogaram! Os camaradas denunciaram-me. A princípio,
tinham rido muito, apreciando a comédia. Verdade é que não tínhamos imaginado
que aquilo acabasse mal. Esperávamos apenas um banho, coisa para rir. Depois
dessa, pratiquei outras mais duras para vingar-me da primeira, que não merecia
a correcional, palavra. Mas não vale a pena contar-lhe. Vou dizer-lhe somente
qual foi a última, porque essa lhe agradará, tenho certeza. Vinguei-o, papai.
O
pároco olhava o filho com um olhar aterrorizado e deixara de comer.
Philippe-Auguste
ia recomeçar a falar.
—Não
— disse o padre —, daqui a pouco.
Voltando-se,
deu uma pancada no vibrante címbalo chinês. Marguerite entrou imediatamente. E
o patrão ordenou-lhe em voz tão áspera que ela baixou a cabeça, espantada e
dócil.
—Traze-nos
o candeeiro e tudo que ainda não serviste e não apareças senão quando eu tiver
feito soar o gongo.
Ela
saiu, voltou e pôs sobre a toalha um candeeiro de porcelana branca, coberto por
um abajur verde, um grande pedaço de queijo frutos e, em seguida, retirou-se.
O
padre disse resolutamente:
—
Agora, sou todo ouvidos.
Philippe-Auguste
encheu tranquilamente seu prato de doce e seu copo de vinho. A segunda garrafa
estava quase vazia, se bem que o cura não lhe tivesse tocado.
O
rapaz continuou, gaguejando, com a boca entupida de alimento e de embriaguez:
— A última, ei-la. É muito dura: eu tinha
voltado para casa... e aí permanecia contra a vontade deles, porque tinham medo
de mim... Ah! É preciso que não me aborreçam... sou capaz de tudo quando me
amolam... O senhor sabe... eles viviam juntos e não viviam. Ele tinha duas
casas, uma casa de senador e uma casa de amante. Mas vivia muito mais em casa
de mamãe do que na casa dele, porque não podia passar sem ela. Ah! Mamãe era
muito sabida e muito segura... Aquela sabia segurar um homem! Ela o conquistou de
corpo e alma e guardou-o até o fim. Que tolos os homens! Assim, eu tinha
voltado e dominava-os pelo medo. Quando quero, sou desembaraçado e no ardil, na
habilidade, na força, ninguém me faz tremer. Aconteceu que mamãe adoeceu e ele
a instalou numa bonita propriedade perto de Meulan, em meio um parque do
tamanho de uma floresta. Isso durou,
como lhe disse, dezoito meses mais ou menos. Então sentimos o fim aproximar-se.
Todos os dias ele vinha de Paris e sentia pesar, mas de verdade. Assim, certa
manhã, tinham tagarelado aproximadamente uma hora e eu me perguntava de que
podiam falar tanto tempo, quando mamãe me chama. E mamãe me diz: “Estou perto
de morrer e tenho alguma coisa que desejo revelar-te, apesar do conselho do
conde”. Ela sempre o chamava “o conde” falando a seu respeito. “É o nome de teu
pai, que ainda vive”. Eu lhe tinha perguntado mais de cem vezes o nome de meu
pai... Mais de cem vezes... e ela sempre
recusara dizê-lo... Creio mesmo que um dia lhe apliquei um par de tabefes, para
obrigá-la a falar, mas de nada serviram. E depois, para desembaraçar-se de mim,
ela me confessara que o senhor morrera sem vintém, que era um joão-ninguém, um erro
de sua mocidade, um equívoco de virgem, sei lá. Ela me contou isso tão bem que
eu caí, mas em cheio, na história de sua morte.
“Assim,
ela me disse:
“--
É o nome de teu pai.
“O
outro, que estava sentado numa poltrona, por três vezes replicou:
“—
Você está errada, está errada, está errada, Rosette.
“Mamãe
sentou-se na cama. Vejo-a ainda com as maçãs do rosto vermelhas e os olhos
brilhantes, porque, apesar de tudo, ela me amava. Quando lhe falava, ela o chamava
de ‘Philippe’ e a mim de ‘Auguste’.
“Ele
se pôs a gritar como um desesperado:
“—
Por esse crápula, nunca; por esse vagabundo, esse reincidente... esse... esse...
esse...
“E
inventou tantos nomes para mim como se nada mais fizera na vida inteira.
“Eu
ia zangar-me; mamãe obrigou-me a calar e lhe disse:
“—
Então você quer que ele morra de fome porque nada tenho.
“Sem
perturbar-se, ele replicou:
“—
Rosette, eu lhe dei trinta e cinco mil francos por ano, durante 30 anos, o que
faz quase um milhão. Você viveu às minhas custas como mulher amada, posso
dizer, mulher feliz. Nada devo a esse mendigo que estragou nossos últimos anos
e ele nada terá de mim. É inútil insistir. Diga-lhe o nome do outro se quiser.
Lamento-o, mas lavo minhas mãos.
“Então,
mamãe volta-se para mim. Eu dizia com meus botões: ‘Bem... eis que encontro meu
verdadeiro pai... se ele tem uns cobres, sou um homem arranjado...’
“Ela
prosseguiu:
“—Teu
pai, o barão de Vilbois, chama-se hoje o padre Vilbois, cura de Garandou, perto
de Toulou. Era meu amante quando o deixei por este aqui.
“E
eis que ela me conta tudo, menos que o tinha tapeado a respeito de sua
gravidez. Mas as mulheres, o senhor sabe, são gente que nunca diz a verdade”.
Ele
escarnecia, inconscientemente, deixando escapar livremente todo seu lodo. Bebeu
ainda e, com o rosto sempre a mostrar alegria, continuou:
“—
Mamãe morreu dois dias... dois dias mais tarde. Seguimos seu caixão até o
cemitério, ele e eu... é gaiato... digo... ele... e eu... e três criados...
ninguém mais... Ele chorava como um bezerro desmamado... Estávamos ombro a
ombro... Dir-se-ia papai e o filho de papai.
“Depois
voltamos à casa. Ninguém afora nós dois. Eu dizia comigo mesmo. ‘É preciso fugir
sem um centavo’. Eu tinha justamente cinquenta francos. Que poderia descobrir
para vingar-me?
“Ele
me toca no braço e diz-me:
“—Preciso
falar-lhe.
“Segui-o
ao seu gabinete. Ele se sentou diante da secretária, depois, debatendo-se no
próprio desgosto, conta-me que não quer ser tão mau para mim como dizia mamãe;
pede-me que não amole o senhor... — Isso... isso nos diz respeito a você e a
mim... — Oferece-me uma nota de mil...
mil... mil... Que podia eu fazer com mil francos... eu... um homem como eu? Vi
que havia outras notas iguais na gaveta, um verdadeiro monte. À vista daquele
dinheiro, deu-me vontade de sangrá-lo. Estendo a mão para segurar o que ele me
oferece, mas, em lugar de receber sua esmola, salto-lhe em cima, jogo-o ao chão
e aperto-lhe a garganta até fazê-lo virar os olhos; em seguida, quando vejo que
ia morrer, amordaço-o, amarro-o, tiro-lhe a roupa, viro-o e depois... Ah! Ali! Ah!
Eu o vinguei de um modo engraçado”.
Philippe-Auguste
tossia, engasgado com a própria alegria, e sempre com o lábio arregaçado num
rito alegre e feroz; o padre Vilbois reencontrava o sorriso da mulher que o
tinha desvairado.
—
Depois? — disse ele.
—Depois...
Ah! Ah! Ah! Havia um fogaréu na chaminé... Fora em dezembro... No tempo do
frio... que ela morrera... mamãe... Um fogaréu de carvão... Apanho o
atiçador... ponho-o a aquecer... e eis... que lhe marco o dorso, com oito, dez
cruzes, não sei quantas, depois torno a voltar e faço-lhe outras tantas na
barriga. Engraçado, hein, papai? Era assim que antigamente ferreteavam os
forçados. Ele se retorcia como uma enguia... mas eu o amordaçara bem; ele não
podia gritar. Depois, apanhei as cédulas — doze; com a minha, isso perfazia
treze... Isso não me deu sorte. E fugi dizendo aos criados que não incomodassem
o senhor conde até à hora do jantar, porque estava dormindo. Eu julgava que
nada diriam, por medo ao escândalo, visto ser um senador. Enganei-me. Quatro
dias depois, fui pilhado num restaurante de Paris. Peguei três anos de prisão.
Por isso, não pude vir procurá-lo antes.
Bebeu
mais, e disse, gaguejando de tal modo que mal pronunciava as palavras:
— Agora, papai... papai cura! Que coisa gaiata
ter um cura por pai! Ah! Ah! Ah! É preciso ser gentil com o nenê, porque o nenê
não é qualquer... e que já pregou uma peça... é mentira... uma peça... ao
velho...
Uma
cólera — idêntica à que outrora desvairava o padre Vilbois diante da amante
traidora — apoderava-se dele, no momento, frente àquele homem abominável.
Ele,
que perdoara tanto, e em nome de Deus, segredos infames cochichados no mistério
dos confessionários, sentia-se inflexível, sem piedade em seu próprio nome e
agora não mais chamava em sua ajuda aquele Deus protetor e misericordioso,
porque compreendia que nenhuma proteção celeste ou terrestre pode salvar, cá
embaixo, aqueles sobre os quais tais desgraças se abatem.
Todo
o ardor de seu coração apaixonado e de seu sangue violento, extinto pelo
apostolado, acordava numa revolta irresistível contra aquele miserável que era
seu filho, contra aquela semelhança consigo e, também, com ela, a mãe indigna,
que o concebera semelhante a ela, e contra a fatalidade que soldava aquele
mendigo a seu pé paternal como uma grilheta a uma galé.
Ele
via, ele previa tudo com uma lucidez súbita, despertada por aquele choque, de
seus vinte e cinco anos de sono devoto e de tranquilidade. Convencido
subitamente de que era mister mostrar-se forte para ser temido por aquele
malfeitor e aterrá-lo desde o primeiro encontro, disse, com os dente cerrados
pelo furor e sem pensar em sua embriaguez:
—
Agora, que você contou tudo, ouça-me. Partirá amanhã pela manhã. Viverá num
lugar que lhe indicarei e de onde jamais sairá sem ordem minha. Lá eu lhe darei
uma pensão que lhe chegará para viver; pequena, no entanto, porque não tenho
dinheiro. Se desobedecer-me uma vez que seja, o caso estará acabado e terá de
ajustar contas comigo...
Embora
embrutecido pelo vinho, Philippe-Auguste compreendeu a ameaça e o criminoso que
nele existia despertou de repente. E foi entre soluços de ébrio que vomitou
estas palavras:
—Ora,
papai, não te metas a valente comigo. Tu és padre... tenho-te nas mãos... e tu
andarás direitinho como os outros.
O
padre estremeceu; e seus músculos de antigo atleta sentiram uma necessidade
incoercível de agarrar aquele monstro, dobrá-lo como um caniço e mostrar-lhe
que era preciso entregar-se.
Enquanto
sacudia a mesa, empurrando-a de encontro ao peito do mostro, o padre
gritou-lhe:
—Ah!
Tome cuidado, tome cuidado... Eu não tenho medo de pessoa alguma...
O
bêbado, perdendo o equilíbrio, oscilava na cadeira. Ao sentir que ia cair e que
estava nas mãos do padre, espichou o braço para uma das facas espalhadas sobre
a toalha, e seu olhar era o de um assassino. O padre Vilbois viu o gesto e deu
um tão grande empurrão na mesa que seu filho caiu de cabeça para baixo e
estirou-se no chão. O candeeiro rolou e apagou-se. Durante alguns segundos, o
ruido de vidros que se chocam cantou na escuridão; em seguida, houve uma
espécie de arrastar mole no ladrilho; depois, mais nada.
Com
o candeeiro quebrado, a escuridão súbita espalhara-se em torno deles tão
rápida, inesperada e profundamente que eles ficaram estupefatos, como à vista
de um acontecimento espantoso. O bêbado, enovelado junto à parede, deixara de
mexer-se e padre continuava na cadeira, mergulhado naquelas trevas, que lhe
afogavam a cólera. Aquele véu sombrio, lançado sobre ele ao deter-lhe o
arrebatamento, imobilizara igualmente o furioso impulso de sua alma; e outras
ideias lhe acudiram, sombrias e tristes como a escuridão. O silêncio desceu, um
silêncio espesso de sepulcro fechado, onde nada mais parecia viver nem
respirar. De fora também nada se ouvia, nem um rolar longínquo de veículo, nem
um latido de cão, nem mesmo o deslizar de um leve sopro de vento nos galhos das
árvores ou nas paredes.
Isso
durou muito tempo, muito tempo, talvez uma hora. Em seguida, subitamente, o
gongo vibrou! Vibrou tocado por uma pancada única, dura, seca e forte, que foi
seguida por um grande barulho de queda e de cadeira virada.
Marguerite,
que estava alerta, acorreu, mas, assim que abriu a porta, recuou espantada
diante da escuridão impenetrável. Depois, trêmula, o coração aos pulos, em voz
ofegante e baixa, chamou:
—
Senhor cura, senhor cura!
Ninguém
respondeu, nada se mexeu.
“Meu
Deus, meu Deus”, pensou ela, “que fizeram eles, que terá acontecido?”
Não
ousava adiantar-se, não ousava voltar para apanhar uma luz; e um desejo louco
de salvar-se, de fugir e de berrar, dominou-a, conquanto ela sentisse as pernas
moles como se fossem dobrar-se. Repetia:
—
Senhor cura, senhor cura; sou eu, Marguerite!
Mas,
de repente, apesar de seu medo, um desejo instintivo de socorrer o patrão e uma
dessas bravuras de mulher que as tornam heroicas em certos momentos,
encheram-lhe a alma de audácia aterrorizada, e ela, correndo à cozinha, trouxe
a lâmpada. Parou à porta da sala. A princípio, distinguiu o vagabundo,
estendido junto à parede, dormindo ou fingindo fazê-lo; depois, o candeeiro
quebrado; depois, sob a mesa, os dois pés escuros e as pernas calçadas de meias
pretas do padre Vilbois, que devia ter caído de costas, batendo com a cabeça no
gongo.
Palpitante
de terror, com as mãos trêmulas, ela repetia:
—
Meu Deus, meu Deus, que será isto?
E
como caminhasse pé ante pé, lentamente, escorregou em alguma coisa gordurosa e
quase caiu.
Então,
curvando-se, percebeu que, no ladrilho vermelho, escorria um liquido vermelho,
que se espalhava em torno de seus pés e corria rapidamente para a porta.
Adivinhou que era sangue.
Como
louca, fugiu, jogando fora a candeia para nada mais ver, e precipitou-se pelo
campo em direção à aldeia. Corria, batendo de encontro às árvores, de olhos
fixos nas luzes distantes, e berrando. Sua voz aguda espalhava-se pela noite
como um grito agourento de coruja e dizia sem parar: “O maoufatan... o maoufatan...
o maoufatan...”
Quando
alcançou as primeiras casas, homens espantados apareceram e cercaram-na; mas a
coitada debatia-se sem responder, tal a sua desorientação.
Afinal,
compreenderam que acontecera uma desgraça na herdade do padre, e um grupo
apanhou as armas para correr-lhe em socorro.
No
meio do campo de oliveiras, a casinha pintada de cor-de-rosa tornara-se
invisível e preta dentro da noite profunda e silenciosa; desde que se apagara o
clarão de sua única janela, ela se extinguira como um olho que se fecha, ficara
afogada na sombra, perdida nas trevas, e quase impossível de ser achada, para
quem quer que não fosse filho do lugar.
Em
breve, luzes correram ao longo do chão, através do arvoredo, dirigindo-se para
ela. Elas riscavam no capim queimado longos traços amarelos, e sob seu brilho
os troncos contorcidos das oliveiras pareciam às vozes monstros, serpentes
infernais enlaçadas e enroladas. Os reflexos projetados ao longe descobriram, de
repente, na obscuridade, algo de esbranquiçado e vago; logo depois, a parede
baixa e quadrada da casinha voltou a ser cor-de-rosa, diante da luz das
lanternas. Alguns camponeses levavam estas, acompanhando dois policiais de
revólver em punho, o guarda campestre, o delegado e Marguerite, que desfalecia
e era amparada por alguns homens.
Diante
da porta que ficara aberta, aterradora, houve um momento de hesitação. O
brigadeiro, porém, segurando um facho, entrou seguido pelos outros.
A
criada não mentira. O sangue, já coagulado, cobria o chão como um tapete. Tinha
escorrido até junto do vagabundo ensopando-lhe uma perna e uma das mãos.
Pai
e filho dormiam: um, com a garganta cortada, o sono eterno; o outro, o sono dos
ébrios. Os dois policiais lançaram-se sobre este e, antes que ele despertasse,
estava algemado. Esfregou os olhos, estupefato, cheio de vinho; e quando viu o
cadáver do padre, ficou aterrado, como se não entendesse.
—
Por que ele não fugiu? — perguntou o delegado.
—
Estava muito bêbedo, replicou o brigadeiro.
E
todos concordaram, porque ninguém jamais pensaria que o padre Vilbois, talvez,
se houvesse suicidado.
Fonte: “A Cigarra”/SP,
edição de março de 1953.
Imagem: PS/Copilot.
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