BERENICE - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe
BERENICE
Allan Pöe
(1809 – 1849)
Tradução de Silveira de Souza
Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas
meas aliquantulum forelevatas. [1]
Ebn Zaiat.
O infortúnio é múltiplo. A infelicidade na terra tem muitas
formas. Dominando o amplo e curvo horizonte, seus matizes são vários como os
vários matizes de cores do arco-íris – e igualmente distintos, ainda que numa
gradação toda particular. Dominando o amplo horizonte como o arco-íris! Por que
fui derivar da beleza algo tão atroz? Da promessa de paz tal símile de
tristeza? Mas se, na Ética, o mal é uma consequência do bem, então, de fato, a
tristeza se origina da alegria. Assim como a memória da felicidade passada é a
angústia de hoje, ou os tormentos atuais são frutos dos êxtases que uma vez
existiram.
Meu
nome de batismo é Egeu; não mencionarei o de família. No entanto, não há na
região torreões mais notórios e antigos do que aqueles que abrigam as minhas
lúgubres e cinzentas salas hereditárias. Nossa linhagem tem sido chamada de uma
estirpe de visionários; e, em muitas particularidades extravagantes – no
caráter da mansão familiar – nos afrescos do salão principal – na tapeçaria dos
dormitórios – nos cinzelados de alguns botaréus na sala de armas – mas em
especial na galeria de pinturas antigas – no estilo da biblioteca – e, por
último, na peculiar natureza de conteúdo dos volumes dessa biblioteca,
encontram-se evidências mais que suficientes para justificar tal denominação.
As
lembranças de minha infância estão ligadas à biblioteca e os seus volumes - mas
destes últimos não falarei nada. Ali morreu minha mãe. Ali eu nasci. Mas seria
mera frivolidade dizer que eu não havia vivido antes - que a alma não tem
existência prévia. Você não acredita? – Não vamos discutir o assunto. Convencido
eu próprio, não busco convencer ninguém. Há, contudo, uma lembrança de formas
aéreas – de olhos espirituais e significativos – de sons melodiosos ainda que
tristes – uma lembrança que não será excluída; memória como uma sombra, vaga,
variável, indefinida, inconstante; e como uma sombra, também, dada a
impossibilidade de livrar-me dela enquanto existir a luz de minha razão.
Nasci nessa sala. Assim, acordando da longa noite do que
parecia, mas não era, o nada, enveredei-me em seguida, repentinamente, nas
próprias regiões da terra das fadas – num palácio de imaginação - num selvagem
domínio de pensamento e erudição monásticos. Não admira que olhasse ao redor
com olhar ardente e assustado – que desperdiçasse minha infância em leituras e
dissipasse minha juventude em devaneios; mas o curioso é que os anos rolaram e
a plena maturidade encontrou-me ainda na mansão de meus pais. É espantoso como
a estagnação tenha caído sobre as fontes de minha vida – espantoso como uma
total inversão tenha se apossado da natureza de meus pensamentos mais comuns.
As realidades do mundo me afetavam como visões, somente como visões, enquanto
as selvagens ideias da terra dos sonhos tornaram-se, por sua vez – não o
material de minha vida diária – mas de fato a minha total e única existência.
***
Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos na minha
mansão paterna. Entretanto crescíamos de modo diferente – eu, com problemas de
saúde, afundado em tristezas – ela, ágil, graciosa, transbordante de energia.
Para ela, os passeios pelas encostas da colina. Para mim, os estudos em
clausura. – Eu, vivendo concentrado nos meus sentimentos, corpo e alma
entregues à mais intensa e penosa meditação. – Ela, vagueando pela vida,
despreocupada, sem pensar nas sombras do caminho, ou no voo das horas, tão
silencioso como as asas de um corvo. Berenice! – invoco o seu nome – Berenice!
– e das cinzentas ruínas da memória mil lembranças em tumulto se agitam ante
esse som. Ah! Vívida é agora a sua imagem em minha mente, tal como nos dias
antigos de despreocupação e alegria! Oh, esplêndida e, no entanto, fantástica
beleza! Oh, sílfide entre os arbustos de Arnheim! Oh, náiade em suas fontes! E
então – então tudo é terror e mistério, e uma estória que não deveria ser
contada. Uma doença – uma doença fatal – caiu como o simum sobre seu corpo, e,
mesmo nos instantes em que a contemplava, o espírito de mudança ia abatendo-se
sobre ela, invadindo-lhe a mente, os hábitos, o caráter, e, de um modo ainda
mais terrível e sutil, perturbando-lhe a própria personalidade! Ai, o
destruidor veio e foi embora, e a vítima – onde estava ela? Eu não mais a
conhecia – ou não a conhecia mais como Berenice.
Entre o numeroso séquito de males entrelaçados àquele
primeiro e funesto, que efetuou uma revolução de espécie tão horrível na
natureza moral e física de minha prima, pode ser mencionado entre os mais
aflitivos e obstinados uma espécie de epilepsia que não raro se transfigurava
em catalepsia – catalepsia que se assemelhava a um estado bem próximo da morte
real e do qual ela retornava, na maioria das vezes, de forma alarmantemente
abrupta. Enquanto isso minha própria enfermidade – disseram-me que não havia
mais chance de curá-la – minha própria enfermidade, então, cresceu rapidamente
e assumiu por fim um caráter monomaníaco, de uma modalidade nova e
extraordinária – revigorando a cada hora, a todo instante – finalmente obtendo
sobre mim o mais incompreensível domínio. Essa monomania, se devo assim
chamá-la, fundava-se numa irritabilidade mórbida daquelas propriedades da mente
referidas, na ciência metafísica, como “faculdade da atenção”. É mais que
provável que eu não esteja sendo compreendido; mas receio, na verdade, não
existir nenhum modo possível de transmitir à quase generalidade dos leitores
uma ideia adequada dessa nervosa exacerbação de interesse com que, no meu caso,
os poderes de meditação (para evitar termos técnicos) se ocupavam e absorviam
na contemplação dos objetos, mesmo os mais comuns do universo.
Refletir infatigavelmente durante horas, com a mente
concentrada em alguma frívola ilustração à margem da página de um livro ou na
tipologia desse livro – entregar-me absorto à contemplação de uma curiosa
sombra a cair oblíqua sobre o tapete, ou sobre o chão – perder uma noite
inteira a observar a chama invariável de uma lâmpada, ou as brasas de uma
lareira – devanear durante dias sobre o perfume de uma flor – repetir
monotonamente alguma palavra banal, até que o som, devido à frequente
repetição, impedisse a transmissão de qualquer ideia ao espírito – perder
completamente a sensação de movimento ou de existência física, perseverando
obstinadamente e por longo tempo num estado de absoluta imobilidade corporal –
tais eram algumas das mais comuns e menos perniciosas extravagâncias induzidas
por uma condição das faculdades mentais que, na verdade, não eram ao todo sem
paralelos, mas por certo ofereciam um desafio para algo como análise ou
interpretação.
Vamos, entretanto evitar mal-entendidos. A excessiva, grave
e mórbida atenção, assim excitada por objetos absolutamente frívolos, não deve
ser confundida em sua natureza com a tendência à meditação comum a todos os
seres humanos, a que se entregam, em especial, as pessoas de imaginação
ardente. Nem mesmo era, como a princípio se poderia supor, uma condição
extrema, exagerada, dessa tendência, mas uma situação fundamental e nitidamente
diversa. Naquele caso, o sonhador, ou cismático, ao interessar-se por um objeto
usualmente não-trivial, imperceptivelmente vai perdendo de vista esse objeto,
enredando-se num emaranhado de deduções e sugestões resultantes daí, até que,
ao final de um dia não raro pleno de voluptuosidade, desaparece o incitamento
ou causa primeira de seus devaneios, inteiramente afundado no esquecimento. No
meu caso, o objeto inicial é invariavelmente trivial, embora vá assumindo, por intermédio
de minha visão doentia, uma importância irreal e refratária. Raramente eram
feitas inferências e as poucas realizadas retornavam, por assim dizer, de
maneira pertinaz, ao objeto original, como a um centro. As meditações nunca
eram agradáveis; e, ao final do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora
da visão, alcançava aquele interesse exagerado, sobrenatural, que era o traço
predominante da doença. Em síntese, as faculdades do espírito mais
particularmente exercidas eram, em mim, como já o disse antes, as da atenção,
assim como, para o sonhador comum, são as especulativas.
Os meus livros, à época, se de fato não contribuíam para
excitar a perturbação, participavam largamente, como pode ser percebido, dada a
sua natureza imaginosa e inconsequente, das qualidades características da
perturbarão mesma. Lembro-me bem, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio De amplitudine beati
regni Dei – da grande obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus – do De Carne Christi, de Tertuliano, no qual
as sentenças paradoxais Mortius est Dei
filius; credibile est quia ineptum est: et sepultus resurrexit; certum est quia
impossible est[2], ocuparam todo o meu tempo por muitas
semanas de laboriosa e frutífera pesquisa.
Assim pareceria que, deslocada da posição de equilíbrio
somente por coisas banais, minha razão mostrasse semelhança com aquele penhasco
no oceano mencionado por Ptolomeu Hephestion, o qual, resistindo com firmeza
aos ataques da violência dos humanos, como à impetuosa fúria das águas e dos
ventos, tremia apenas sob o toque da flor conhecida pelo nome de asfódelo. E
embora, a um pensador distraído, pudesse aparentar um evento fora de qualquer
dúvida que a terrível transformação provocada pela infeliz enfermidade na
condição moral de Berenice produzia em mim motivos para o exercício daquela
intensa e mórbida meditação, cuja natureza ainda tenho algumas dificuldades
para explicar, esse entretanto não era o caso, em absoluto. Nos intervalos de
lucidez da minha doença, a desgraça dela na verdade me causava sofrimento, e,
sentindo profundamente a completa decadência da sua beleza e de sua meiga vida,
nunca deixei de ponderar com amargura no modo impressionante pelo qual,
repentinamente, tão estranha reversão se tivesse abatido sobre ela. Essas
reflexões, porém, não faziam parte da idiossincrasia do meu mal; eram como as
que ocorriam, em circunstâncias semelhantes, à maioria das pessoas. Fiel a seu
próprio caráter, minha doença revelava interesse nas menos importantes e, no
entanto, mais surpreendentes mudanças na estrutura física de Berenice, bem como
na singular e imensamente aterradora distorção de sua personalidade.
Durante os dias mais esplendorosos de sua beleza sem
paralelos, era mais do que certo que eu nunca a amara. Na estranha anomalia de
minha existência, os sentimentos, comigo, jamais provinham do coração e as
paixões nasciam sempre da mente. Pelas cinzentas madrugadas – em meio às
sombras entrelaçadas das florestas, ao meio-dia – e no silêncio de minha
biblioteca, à noite, ela passava esvoaçante diante de meus olhos, e eu a via –
não como a Berenice, ser vivo e respirante, mas como a Berenice de um sonho –
não como um ser terrestre – de carne e osso – mas como uma abstração desse ser
– não como algo que se pudesse admirar, mas analisar – não como um objeto de
amor, mas como um tema para as mais abstrusas e desconexas especulações. E
agora – agora eu estremecia na presença dela, empalidecia à sua aproximação.
Entretanto, mesmo lamentando amargamente sua condição decadente e desoladora,
eu lembrava que ela havia me amado por longo tempo e que, certa ocasião, num
impulso irrefletido, eu lhe havia pedido em casamento.
E agora estava por fim se aproximando a data de nossas
núpcias quando, numa tarde hibernal, um desses dias intempestivamente quentes,
calmos e brumosos, que se assemelham à “ama-de-leite da bela Alcíone”[3], eu sentei no gabinete interno da
biblioteca e pensei estar sozinho. Mas, ao levantar os olhos, vi Berenice em pé
a minha frente.
Foi a minha imaginação excitada - ou uma indistinta
influência da atmosfera – ou o impreciso crepúsculo do aposento – ou as vestes
cinzentas que lhe caíam folgadas sobre o corpo – a causa daquela aparição de
contorno tão vago e espectral? Não saberia dizê-lo. Ela não mencionou uma única
palavra, e eu – tornei-me incapaz de pronunciar sequer uma sílaba. Gélido
calafrio percorreu-me o corpo; oprimia-me uma sensação de angústia insuportável
e uma curiosidade irrefreável, dilacerante, passou a invadir o meu espírito.
Sentei-me de volta na cadeira, permaneci alguns segundos sem respirar, imóvel,
com os olhos pregados naquela figura. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum
vestígio existia mais daquele ser de outrora. Meus olhos ardentes examinaram
então minuciosamente o seu rosto. A fronte era alta, muito pálida,
singularmente serena, parcialmente coberta por uma mecha de cabelos que em
outros tempos foram negros como o azeviche, e que sombreavam as têmporas
encovadas com anéis agora de um amarelo vivo e contrastavam, pelo seu caráter
fantástico, com a melancolia dominante em seu rosto. Os olhos eram sem vida,
apagados, parecendo sem pupilas e eu desviei involuntariamente a atenção de seu
olhar vítreo para me deter na contemplação de seus lábios delgados e
contraídos. Eles se entreabriram: e num sorriso de especial significado, os
dentes da transformada Berenice mostraram-se, lentamente, à minha visão.
Quisera Deus que eu nunca os tivesse visto, ou, ao fazê-lo, houvesse morrido!
***
O bater de uma porta que se fechava perturbou-me a atenção
e, ao levantar os olhos, percebi que minha prima não estava mais no aposento.
Mas do desordenado aposento de meu cérebro, ai de mim!. nada havia saído; ali
ficara o lívido e assustador espectro daqueles dentes. Nem a mínima mancha se
via em sua superfície – nem um matiz no esmalte – nem a mais leve reentrância
na regularidade de suas pontas – nada, a não ser o que os breves instantes de
seu sorriso haviam impresso na minha memória. Eu os via agora mais nítidos do
que os vira então. Os dentes! Os dentes! – Eles estavam aqui e ali, em qualquer
lugar, e visíveis, e palpáveis diante de mim; longos, estreitos, excessivamente
brancos, com os lábios pálidos retorcendo-se sobre eles, como no exato e
terrível momento em que apareceram pela primeira vez. Então veio a fúria total
de minha monomania, e lutei em vão contra sua estranha e irresistível
influência. Ante a multiplicidade de objetos do mundo exterior, o meu
pensamento não se ligava a outra coisa a não ser aqueles dentes. Eu os desejava
com uma ânsia frenética. Todos os outros assuntos, todos os diversos interesses
se absorveram naquela única contemplação. Eles – apenas eles se apresentavam ao
olho do espírito, e eles, na sua solitária individualidade, passaram a ser a
essência de minha vida mental. Eu os examinava sob todas as luzes. Revolvia-os
em todos os aspectos. Investigava suas características e demorava-me a estudar
todas as peculiaridades. Media a sua forma. Refletia sobre as alterações de sua
natureza. Estremecia ao atribuir a eles, na imaginação, um poder sensível,
senciente, e mesmo quando fazia abstração dos lábios, conferia a eles uma
capacidade de expressão moral. Foi dito acertadamente de Mademoiselle Sallé que
tous ses pas étaient des sentiments[4] e, de Berenice, eu acreditava com a
maior seriedade que todos os seus dentes eram ideias. Des idées! – ah, estava aqui o pensamento idiota que me destruiu. Des idées! – ah, por isso eu os cobicei
tão loucamente! Pressentia que só a posse deles poderia restituir a minha paz,
devolvendo-me a razão. E assim fechou-se a noite ao meu redor – e então vieram
as trevas, que se demoraram, foram embora – e amanheceu de novo – e as névoas
de uma segunda noite reuniam-se agora em torno – e eu continuava ainda sentado
imóvel naquele aposento solitário; ainda mergulhado em meditação; e a
fantasmagoria dos dentes mantinha ainda a sua terrível ascendência sobre mim,
como se flutuasse, com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes e sombras
mutáveis do quarto. Por fim, um grito de horror e desalento partiu os meus
sonhos; e, em seguida, após uma pausa, escutei o som de vozes assustadas,
entremeadas de lamentos de tristeza, ou de dor. Levantei-me do assento e, escancarando
uma das portas da biblioteca, vi na antecâmara, em pé, uma criada que, em
pranto, disse-me que Berenice – não existia mais. Tivera um ataque de epilepsia
pela manhã, e agora, ao cair da noite, a cova estava pronta para a sua ocupante
e já se haviam completadas as preparações para o enterro. Com o coração
pesaroso, ainda que relutante e oprimido pelo medo, dirigi-me para o quarto de
dormir da falecida. Era um quarto grande, muito escuro e a cada passo dado
naquele sombrio interior defrontava-me com aprestos do enterro. Os cortinados
do leito, assim me disse um criado, recobriam o caixão, e neste, sussurrou-me
ele, se achava tudo o que restou de Berenice. Teria alguém me perguntado se eu
não queria olhar o corpo? Não vi ninguém mexer os lábios, entretanto a pergunta
havia sido feita e o eco das sílabas ainda ressoava no quarto. Era impossível
recusar e com uma sensação de asfixia avancei vagarosamente na direção do
leito. Ergui de leve as negras dobras dos cortinados. Ao largá-las, elas caíram
sobre meus ombros e, ocultando-me assim dos vivos, envolveram-me numa estrita
comunhão com o cadáver. A atmosfera se impregnara inteiramente do odor da
morte. O cheiro peculiar do caixão me fazia mal e cheguei a supor que emanações
deletérias já exalavam do corpo. Teria dado mundos para fugir dali – voar para
longe da influência perniciosa daquele ambiente mortuário – respirar uma vez
mais o ar puro dos céus eternos. Entretanto não tinha mais forças para mover-me
– meus joelhos tremiam – e eu fiquei plantado ali, a olhar fixamente aquele
corpo rígido que jazia estendido no escuro caixão aberto. Deus do céu! – seria
possível? Seria o meu cérebro que desvairava – ou teria sido na verdade o dedo
da morta que se mexera na mortalha que a envolvia? Gelado por indizível pavor
lentamente dirigi o olhar para o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado um lenço
ao redor do queixo, mas, não sei como, ele se desprendera. Os lábios lívidos
estavam retorcidos numa espécie de sorriso, e, através dessa lúgubre moldura,
uma vez mais cintilaram diante de mim, como palpável realidade, os dentes de
Berenice, brancos, nítidos, funéreos. Afastei-me dali em convulsão, sem dizer
uma só palavra, precipitando-me como um louco para fora daquele lugar de morte,
horror e mistério.
***
Encontrei-me outra vez na biblioteca e de novo sentado ali
sozinho. Parecia acordar novamente de um sonho confuso e excitante. Eu sabia
que já era meia-noite e também que Berenice acha-se enterrada desde o pôr do
sol. Mas do atroz período intermediário eu não tinha uma lembrança positiva, ou
pelo menos uma compreensão definida. No entanto a vaga memória disto estava
impregnada de horror – horror mais horrível por ser vago, e terror mais
terrível pela ambiguidade. Era uma página assombrosa no registro de minha
existência, escrita completamente com indistintas, e horrendas e ininteligíveis
recordações. Eu me esforçava por decifrá-la, mas em vão – enquanto, de vez em
quando, como o espírito de um som esquecido, o lancinante e estridente grito de
uma voz de mulher parecia retinir em meus ouvidos. Eu havia cometido alguma
ação – mal qual era? E os ecos do aposento repetiam “o que era”?
Sobre a mesa ao meu lado ardia uma lâmpada, e perto dela
achava-se uma pequena caixa de ébano. Não havia nenhuma característica notável
nessa caixa e já a tinha visto antes muitas vezes, pois pertencia ao médico da
família. Mas como ela viera parar ali sobre a minha mesa, e por que eu
estremecia ao vê-la? Essas coisas de modo algum eram dignas de importância, e
meus olhos finalmente pousaram sobre as páginas abertas de um livro, e sobre as
sentenças que nelas se salientavam. Sentenças de palavras estranhas, mas
simples, do poeta Ebn Zaiat: Dicebant
mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore
levatas. Por que afinal, enquanto eu me concentrava na leitura, os meus
cabelos se eriçaram até as pontas e o sangue de meu corpo congelou-se nas
veias?
Alguém bateu de leve à porta da biblioteca, e, pálido como o
habitante de um túmulo, um criado entrou na ponta dos pés. Seu olhar
mostrava-se desvairado pelo terror e ele me falou numa voz trêmula, áspera e
muito baixa. Que dizia ele? – ouvi algumas frases truncadas. Falou de um grito
lancinante que perturbara o silêncio da noite – da reunião das pessoas da casa
– das buscas na direção do som – e daí o tom de sua voz pareceu crescer,
vibrante e distinto, quando ele me sussurrou a respeito de um túmulo violado –
de um corpo desfigurado deixado à margem da cova com a sua mortalha, e, no
entanto, ainda respirando, ainda palpitante, ainda vivo!
Apontou para minhas roupas – estavam enlameadas, sujas de
sangue coagulado. Eu não falei nada e ele segurou-me as mãos com cuidado – elas
estavam marcadas com arranhões de unhas humanas. Dirigiu minha atenção para um
certo objeto encostado à parede – olhei-o por alguns instantes – era uma pá.
Com um grito saltei para a mesa e agarrei a caixa de ébano que estava ali. Mas
não consegui abri-la; escorregou de minhas mãos trêmulas e caiu pesadamente
sobre o chão, fazendo-se em pedaços. Dela, com um som chocalhante, rolaram
alguns instrumentos de cirurgia dentária, misturados a trinta e duas pequenas
peças, brancas, parecendo de marfim, que se espalharam pelo assoalho.
Imagem: Harry Clarke (1889-1931)
- Sobre o tradutor
João Paulo SILVEIRA DE SOUZA nasceu em
Florianópolis, SC, em 1933. Começou cedo suas atividades culturais em SC. Na
década de 50 passou a integrar o Círculo de Arte Moderna, mais conhecido como
Grupo Sul, movimento que trouxe o Modernismo para Santa Catarina. Também nessa
década participou de atividades teatrais, integrando como diretor do grupo
teatral TESC (Teatro Experimental de SC); e dirigiu o mensário de literatura e
arte Roteiro.
De 60 a 70, foi professor de matemática
no Instituto Estadual de Educação e Escola Técnica Federal de SC, em
Florianópolis. Dirigiu de 71 a 76, a Divisão de Informação e Divulgação do
Departamento de Extensão Cultural da UFSC. Em 79, passou a trabalhar no setor
de editoração da Fundação Catarinense de Cultura, onde coordenou as Edições FCC
e dirigiu as publicações: Boi-de-Mamão (79 a 81); Cadernos da Cultura
Catarinense (84-85) e Escritores Catarinenses, série de fascículos (90-91).
Atualmente aposentado do serviço público, dedica-se a trabalhos de editoração
eletrônica e projetos gráficos de livros. É membro da Academia Catarinense de
Letras.
LIVROS PUBLICADOS
• O VIGIA E A CIDADE (contos),
Florianópolis, SC, 1960;
• UMA VOZ NA PRAÇA (contos),
Florianópolis, 1962;
• QUATRO ALAMEDAS, Porto Alegre, RS,
1976;
• OS PEQUENOS DESENCONTROS (crônicas),
Florianópolis, 1977;
• O CAVALO EM CHAMAS (contos), São
Paulo, SP, 1981;
• CANÁRIO DE ASSOBIO (crônicas),
Florianópolis, 1985;
• HYBRIS (poesia e prosa),
Florianópolis, 1989; • UM ÔNIBUS E QUATRO DESTINOS (romance, em parceria com
Francisco José Pereira e Holdemar Menezes), Porto Alegre, 1994; • RUMOR DE FOLHAS
(poemas), Florianópolis, 1966;
• RELATOS ESCOLHIDOS (contos),
Florianópolis, 1998;
• TROLOLÓ PARA FLAUTA E CAVAQUINHO
(crônicas), em parceria com Flávio José Cardozo, Florianópolis.
[1] "Diziam meus companheiros que, se visitasse o túmulo da
amiga, minhas inquietações seriam bastante suavizadas". (N. do T.)
[2] “O filho de Deus está morto; isto é crível porque é absurdo;
e sepultado ressuscitou; isto é verdadeiro porque impossível”. (N. do T.)
[3] Por que Júpiter, durante o inverno, dava por duas vezes sete
dias de calor, os homens passaram a chamar a este tempo benigno e temperado de
“a ama-de-leite da bela Alcíone”. – Simônides. (Nota de E. A. Pöe.)
[4]
“Todos os
seus passos eram sentimentos” (N. do E.)
Comentários
Postar um comentário