BERENICE - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe
BERENICE
Allan Pöe
(1809 – 1849)
Tradução de
Silveira de Souza
Dicebant mihi
sodales, si sepulchrum amicae visitarem,
curas meas
aliquantulum forelevatas. [1]
Ebn Zaiat.
O
infortúnio é múltiplo. A infelicidade na terra tem muitas formas. Dominando o
amplo e curvo horizonte, seus matizes são vários como os vários matizes de
cores do arco-íris – e igualmente distintos, ainda que numa gradação toda
particular. Dominando o amplo horizonte como o arco-íris! Por que fui derivar
da beleza algo tão atroz? Da promessa de paz tal símile de tristeza? Mas se, na
Ética, o mal é uma consequência do bem, então, de fato, a tristeza se origina
da alegria. Assim como a memória da felicidade passada é a angústia de hoje, ou
os tormentos atuais são frutos dos êxtases que uma vez existiram.
Meu
nome de batismo é Egeu; não mencionarei o de família. No entanto, não há na
região torreões mais notórios e antigos do que aqueles que abrigam as minhas
lúgubres e cinzentas salas hereditárias. Nossa linhagem tem sido chamada de uma
estirpe de visionários; e, em muitas particularidades extravagantes – no
caráter da mansão familiar – nos afrescos do salão principal – na tapeçaria dos
dormitórios – nos cinzelados de alguns botaréus na sala de armas – mas em
especial na galeria de pinturas antigas – no estilo da biblioteca – e, por
último, na peculiar natureza de conteúdo dos volumes dessa biblioteca,
encontram-se evidências mais que suficientes para justificar tal denominação.
As
lembranças de minha infância estão ligadas à biblioteca e os seus volumes - mas
destes últimos não falarei nada. Ali morreu minha mãe. Ali eu nasci. Mas seria
mera frivolidade dizer que eu não havia vivido antes - que a alma não tem
existência prévia. Você não acredita? – Não vamos discutir o assunto.
Convencido eu próprio, não busco convencer ninguém. Há, contudo, uma lembrança
de formas aéreas – de olhos espirituais e significativos – de sons melodiosos
ainda que tristes – uma lembrança que não será excluída; memória como uma
sombra, vaga, variável, indefinida, inconstante; e como uma sombra, também,
dada a impossibilidade de livrar-me dela enquanto existir a luz de minha razão.
Nasci
nessa sala. Assim, acordando da longa noite do que parecia, mas não era, o
nada, enveredei-me em seguida, repentinamente, nas próprias regiões da terra
das fadas – num palácio de imaginação - num selvagem domínio de pensamento e
erudição monásticos. Não admira que olhasse ao redor com olhar ardente e
assustado – que desperdiçasse minha infância em leituras e dissipasse minha
juventude em devaneios; mas o curioso é que os anos rolaram e a plena
maturidade encontrou-me ainda na mansão de meus pais. É espantoso como a
estagnação tenha caído sobre as fontes de minha vida – espantoso como uma total
inversão tenha se apossado da natureza de meus pensamentos mais comuns. As
realidades do mundo me afetavam como visões, somente como visões, enquanto as
selvagens ideias da terra dos sonhos tornaram-se, por sua vez – não o material
de minha vida diária – mas de fato a minha total e única existência.
***
Berenice
e eu éramos primos e crescemos juntos na minha mansão paterna. Entretanto
crescíamos de modo diferente – eu, com problemas de saúde, afundado em
tristezas – ela, ágil, graciosa, transbordante de energia. Para ela, os
passeios pelas encostas da colina. Para mim, os estudos em clausura. – Eu,
vivendo concentrado nos meus sentimentos, corpo e alma entregues à mais intensa
e penosa meditação. – Ela, vagueando pela vida, despreocupada, sem pensar nas
sombras do caminho, ou no voo das horas, tão silencioso como as asas de um
corvo. Berenice! – invoco o seu nome – Berenice! – e das cinzentas ruínas da
memória mil lembranças em tumulto se agitam ante esse som. Ah! Vívida é agora a
sua imagem em minha mente, tal como nos dias antigos de despreocupação e alegria!
Oh, esplêndida e, no entanto, fantástica beleza! Oh, sílfide entre os arbustos
de Arnheim! Oh, náiade em suas fontes! E então – então tudo é terror e
mistério, e uma estória que não deveria ser contada. Uma doença – uma doença
fatal – caiu como o simum sobre seu corpo, e, mesmo nos instantes em que a
contemplava, o espírito de mudança ia abatendo-se sobre ela, invadindo-lhe a
mente, os hábitos, o caráter, e, de um modo ainda mais terrível e sutil,
perturbando-lhe a própria personalidade! Ai, o destruidor veio e foi embora, e
a vítima – onde estava ela? Eu não mais a conhecia – ou não a conhecia mais
como Berenice.
Entre
o numeroso séquito de males entrelaçados àquele primeiro e funesto, que efetuou
uma revolução de espécie tão horrível na natureza moral e física de minha
prima, pode ser mencionado entre os mais aflitivos e obstinados uma espécie de
epilepsia que não raro se transfigurava em catalepsia – catalepsia que se
assemelhava a um estado bem próximo da morte real e do qual ela retornava, na
maioria das vezes, de forma alarmantemente abrupta. Enquanto isso minha própria
enfermidade – disseram-me que não havia mais chance de curá-la – minha própria
enfermidade, então, cresceu rapidamente e assumiu por fim um caráter
monomaníaco, de uma modalidade nova e extraordinária – revigorando a cada hora,
a todo instante – finalmente obtendo sobre mim o mais incompreensível domínio.
Essa monomania, se devo assim chamá-la, fundava-se numa irritabilidade mórbida
daquelas propriedades da mente referidas, na ciência metafísica, como
“faculdade da atenção”. É mais que provável que eu não esteja sendo
compreendido; mas receio, na verdade, não existir nenhum modo possível de
transmitir à quase generalidade dos leitores uma ideia adequada dessa nervosa
exacerbação de interesse com que, no meu caso, os poderes de meditação (para
evitar termos técnicos) se ocupavam e absorviam na contemplação dos objetos,
mesmo os mais comuns do universo.
Refletir
infatigavelmente durante horas, com a mente concentrada em alguma frívola
ilustração à margem da página de um livro ou na tipologia desse livro –
entregar-me absorto à contemplação de uma curiosa sombra a cair oblíqua sobre o
tapete, ou sobre o chão – perder uma noite inteira a observar a chama
invariável de uma lâmpada, ou as brasas de uma lareira – devanear durante dias
sobre o perfume de uma flor – repetir monotonamente alguma palavra banal, até
que o som, devido à frequente repetição, impedisse a transmissão de qualquer
ideia ao espírito – perder completamente a sensação de movimento ou de
existência física, perseverando obstinadamente e por longo tempo num estado de
absoluta imobilidade corporal – tais eram algumas das mais comuns e menos perniciosas
extravagâncias induzidas por uma condição das faculdades mentais que, na
verdade, não eram ao todo sem paralelos, mas por certo ofereciam um desafio
para algo como análise ou interpretação.
Vamos,
entretanto evitar mal-entendidos. A excessiva, grave e mórbida atenção, assim
excitada por objetos absolutamente frívolos, não deve ser confundida em sua
natureza com a tendência à meditação comum a todos os seres humanos, a que se
entregam, em especial, as pessoas de imaginação ardente. Nem mesmo era, como a
princípio se poderia supor, uma condição extrema, exagerada, dessa tendência,
mas uma situação fundamental e nitidamente diversa. Naquele caso, o sonhador,
ou cismático, ao interessar-se por um objeto usualmente não-trivial,
imperceptivelmente vai perdendo de vista esse objeto, enredando-se num
emaranhado de deduções e sugestões resultantes daí, até que, ao final de um dia
não raro pleno de voluptuosidade, desaparece o incitamento ou causa primeira de
seus devaneios, inteiramente afundado no esquecimento. No meu caso, o objeto
inicial é invariavelmente trivial, embora vá assumindo, por intermédio de minha
visão doentia, uma importância irreal e refratária. Raramente eram feitas
inferências e as poucas realizadas retornavam, por assim dizer, de maneira
pertinaz, ao objeto original, como a um centro. As meditações nunca eram
agradáveis; e, ao final do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora da
visão, alcançava aquele interesse exagerado, sobrenatural, que era o traço
predominante da doença. Em síntese, as faculdades do espírito mais
particularmente exercidas eram, em mim, como já o disse antes, as da atenção,
assim como, para o sonhador comum, são as especulativas.
Os
meus livros, à época, se de fato não contribuíam para excitar a perturbação,
participavam largamente, como pode ser percebido, dada a sua natureza imaginosa
e inconsequente, das qualidades características da perturbarão mesma. Lembro-me
bem, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio De
amplitudine beati regni Dei – da grande obra de Santo Agostinho, A Cidade
de Deus – do De Carne Christi, de Tertuliano, no qual as sentenças
paradoxais Mortius est Dei filius; credibile est quia ineptum est: et
sepultus resurrexit; certum est quia impossible est[2],
ocuparam todo o meu tempo por muitas semanas de laboriosa e frutífera pesquisa.
Assim
pareceria que, deslocada da posição de equilíbrio somente por coisas banais,
minha razão mostrasse semelhança com aquele penhasco no oceano mencionado por
Ptolomeu Hephestion, o qual, resistindo com firmeza aos ataques da violência
dos humanos, como à impetuosa fúria das águas e dos ventos, tremia apenas sob o
toque da flor conhecida pelo nome de asfódelo. E embora, a um pensador
distraído, pudesse aparentar um evento fora de qualquer dúvida que a terrível
transformação provocada pela infeliz enfermidade na condição moral de Berenice
produzia em mim motivos para o exercício daquela intensa e mórbida meditação,
cuja natureza ainda tenho algumas dificuldades para explicar, esse entretanto
não era o caso, em absoluto. Nos intervalos de lucidez da minha doença, a
desgraça dela na verdade me causava sofrimento, e, sentindo profundamente a
completa decadência da sua beleza e de sua meiga vida, nunca deixei de ponderar
com amargura no modo impressionante pelo qual, repentinamente, tão estranha
reversão se tivesse abatido sobre ela. Essas reflexões, porém, não faziam parte
da idiossincrasia do meu mal; eram como as que ocorriam, em circunstâncias
semelhantes, à maioria das pessoas. Fiel a seu próprio caráter, minha doença
revelava interesse nas menos importantes e, no entanto, mais surpreendentes
mudanças na estrutura física de Berenice, bem como na singular e imensamente
aterradora distorção de sua personalidade.
Durante
os dias mais esplendorosos de sua beleza sem paralelos, era mais do que certo
que eu nunca a amara. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos,
comigo, jamais provinham do coração e as paixões nasciam sempre da mente. Pelas
cinzentas madrugadas – em meio às sombras entrelaçadas das florestas, ao
meio-dia – e no silêncio de minha biblioteca, à noite, ela passava esvoaçante
diante de meus olhos, e eu a via – não como a Berenice, ser vivo e respirante,
mas como a Berenice de um sonho – não como um ser terrestre – de carne e osso –
mas como uma abstração desse ser – não como algo que se pudesse admirar, mas
analisar – não como um objeto de amor, mas como um tema para as mais abstrusas
e desconexas especulações. E agora – agora eu estremecia na presença dela,
empalidecia à sua aproximação. Entretanto, mesmo lamentando amargamente sua
condição decadente e desoladora, eu lembrava que ela havia me amado por longo
tempo e que, certa ocasião, num impulso irrefletido, eu lhe havia pedido em casamento.
E
agora estava por fim se aproximando a data de nossas núpcias quando, numa tarde
hibernal, um desses dias intempestivamente quentes, calmos e brumosos, que se
assemelham à “ama-de-leite da bela Alcíone”[3],
eu sentei no gabinete interno da biblioteca e pensei estar sozinho. Mas, ao
levantar os olhos, vi Berenice em pé a minha frente.
Foi
a minha imaginação excitada - ou uma indistinta influência da atmosfera – ou o
impreciso crepúsculo do aposento – ou as vestes cinzentas que lhe caíam
folgadas sobre o corpo – a causa daquela aparição de contorno tão vago e
espectral? Não saberia dizê-lo. Ela não mencionou uma única palavra, e eu –
tornei-me incapaz de pronunciar sequer uma sílaba. Gélido calafrio percorreu-me
o corpo; oprimia-me uma sensação de angústia insuportável e uma curiosidade
irrefreável, dilacerante, passou a invadir o meu espírito. Sentei-me de volta
na cadeira, permaneci alguns segundos sem respirar, imóvel, com os olhos
pregados naquela figura. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio
existia mais daquele ser de outrora. Meus olhos ardentes examinaram então
minuciosamente o seu rosto. A fronte era alta, muito pálida, singularmente
serena, parcialmente coberta por uma mecha de cabelos que em outros tempos
foram negros como o azeviche, e que sombreavam as têmporas encovadas com anéis
agora de um amarelo vivo e contrastavam, pelo seu caráter fantástico, com a
melancolia dominante em seu rosto. Os olhos eram sem vida, apagados, parecendo
sem pupilas e eu desviei involuntariamente a atenção de seu olhar vítreo para
me deter na contemplação de seus lábios delgados e contraídos. Eles se
entreabriram: e num sorriso de especial significado, os dentes da transformada
Berenice mostraram-se, lentamente, à minha visão. Quisera Deus que eu nunca os
tivesse visto, ou, ao fazê-lo, houvesse morrido!
***
O
bater de uma porta que se fechava perturbou-me a atenção e, ao levantar os
olhos, percebi que minha prima não estava mais no aposento. Mas do desordenado
aposento de meu cérebro, ai de mim!, nada havia saído; ali ficara o lívido e
assustador espectro daqueles dentes. Nem a mínima mancha se via em sua
superfície – nem um matiz no esmalte – nem a mais leve reentrância na
regularidade de suas pontas – nada, a não ser o que os breves instantes de seu
sorriso haviam impresso na minha memória. Eu os via agora mais nítidos do que
os vira então. Os dentes! Os dentes! – Eles estavam aqui e ali, em qualquer
lugar, e visíveis, e palpáveis diante de mim; longos, estreitos, excessivamente
brancos, com os lábios pálidos retorcendo-se sobre eles, como no exato e terrível
momento em que apareceram pela primeira vez. Então veio a fúria total de minha
monomania, e lutei em vão contra sua estranha e irresistível influência. Ante a
multiplicidade de objetos do mundo exterior, o meu pensamento não se ligava a
outra coisa a não ser aqueles dentes. Eu os desejava com uma ânsia frenética.
Todos os outros assuntos, todos os diversos interesses se absorveram naquela
única contemplação. Eles – apenas eles se apresentavam ao olho do espírito, e
eles, na sua solitária individualidade, passaram a ser a essência de minha vida
mental. Eu os examinava sob todas as luzes. Revolvia-os em todos os aspectos.
Investigava suas características e demorava-me a estudar todas as
peculiaridades. Media a sua forma. Refletia sobre as alterações de sua natureza.
Estremecia ao atribuir a eles, na imaginação, um poder sensível, senciente, e
mesmo quando fazia abstração dos lábios, conferia a eles uma capacidade de
expressão moral. Foi dito acertadamente de Mademoiselle Sallé que tous ses pas
étaient des sentiments[4]
e, de Berenice, eu acreditava com a maior seriedade que todos os seus dentes
eram ideias. Des idées! [5]–
ah, estava aqui o pensamento idiota que me destruiu. Des idées! – ah,
por isso eu os cobicei tão loucamente! Pressentia que só a posse deles poderia
restituir a minha paz, devolvendo-me a razão. E assim fechou-se a noite ao meu
redor – e então vieram as trevas, que se demoraram, foram embora – e amanheceu
de novo – e as névoas de uma segunda noite reuniam-se agora em torno – e eu
continuava ainda sentado imóvel naquele aposento solitário; ainda mergulhado em
meditação; e a fantasmagoria dos dentes mantinha ainda a sua terrível
ascendência sobre mim, como se flutuasse, com a mais viva e hedionda nitidez,
entre as luzes e sombras mutáveis do quarto. Por fim, um grito de horror e
desalento partiu os meus sonhos; e, em seguida, após uma pausa, escutei o som
de vozes assustadas, entremeadas de lamentos de tristeza, ou de dor.
Levantei-me do assento e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi na
antecâmara, em pé, uma criada que, em pranto, disse-me que Berenice – não
existia mais. Tivera um ataque de epilepsia pela manhã, e agora, ao cair da
noite, a cova estava pronta para a sua ocupante e já se haviam completadas as
preparações para o enterro. Com o coração pesaroso, ainda que relutante e
oprimido pelo medo, dirigi-me para o quarto de dormir da falecida. Era um
quarto grande, muito escuro e a cada passo dado naquele sombrio interior
defrontava-me com aprestos do enterro. Os cortinados do leito, assim me disse
um criado, recobriam o caixão, e neste, sussurrou-me ele, se achava tudo o que
restou de Berenice. Teria alguém me perguntado se eu não queria olhar o corpo?
Não vi ninguém mexer os lábios, entretanto a pergunta havia sido feita e o eco
das sílabas ainda ressoava no quarto. Era impossível recusar e com uma sensação
de asfixia avancei vagarosamente na direção do leito. Ergui de leve as negras
dobras dos cortinados. Ao largá-las, elas caíram sobre meus ombros e,
ocultando-me assim dos vivos, envolveram-me numa estrita comunhão com o
cadáver. A atmosfera se impregnara inteiramente do odor da morte. O cheiro
peculiar do caixão me fazia mal e cheguei a supor que emanações deletérias já
exalavam do corpo. Teria dado mundos para fugir dali – voar para longe da
influência perniciosa daquele ambiente mortuário – respirar uma vez mais o ar
puro dos céus eternos. Entretanto não tinha mais forças para mover-me – meus
joelhos tremiam – e eu fiquei plantado ali, a olhar fixamente aquele corpo
rígido que jazia estendido no escuro caixão aberto. Deus do céu! – seria
possível? Seria o meu cérebro que desvairava – ou teria sido na verdade o dedo
da morta que se mexera na mortalha que a envolvia? Gelado por indizível pavor
lentamente dirigi o olhar para o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado um lenço
ao redor do queixo, mas, não sei como, ele se desprendera. Os lábios lívidos
estavam retorcidos numa espécie de sorriso, e, através dessa lúgubre moldura,
uma vez mais cintilaram diante de mim, como palpável realidade, os dentes de
Berenice, brancos, nítidos, funéreos. Afastei-me dali em convulsão, sem dizer
uma só palavra, precipitando-me como um louco para fora daquele lugar de morte,
horror e mistério.
***
Encontrei-me outra vez na biblioteca e de novo sentado ali sozinho. Parecia acordar novamente de um sonho confuso e excitante. Eu sabia que já era meia-noite e também que Berenice acha-se enterrada desde o pôr do sol. Mas do atroz período intermediário eu não tinha uma lembrança positiva, ou pelo menos uma compreensão definida. No entanto a vaga memória disto estava impregnada de horror – horror mais horrível por ser vago, e terror mais terrível pela ambiguidade. Era uma página assombrosa no registro de minha existência, escrita completamente com indistintas, e horrendas e ininteligíveis recordações. Eu me esforçava por decifrá-la, mas em vão – enquanto, de vez em quando, como o espírito de um som esquecido, o lancinante e estridente grito de uma voz de mulher parecia retinir em meus ouvidos. Eu havia cometido alguma ação – mal qual era? E os ecos do aposento repetiam “o que era”?
Sobre
a mesa ao meu lado ardia uma lâmpada, e perto dela achava-se uma pequena caixa
de ébano. Não havia nenhuma característica notável nessa caixa e já a tinha
visto antes muitas vezes, pois pertencia ao médico da família. Mas como ela
viera parar ali sobre a minha mesa, e por que eu estremecia ao vê-la? Essas
coisas de modo algum eram dignas de importância, e meus olhos finalmente
pousaram sobre as páginas abertas de um livro, e sobre as sentenças que nelas
se salientavam. Sentenças de palavras estranhas, mas simples, do poeta Ebn
Zaiat: Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas
aliquantulum fore levatas. Por que afinal, enquanto eu me concentrava na
leitura, os meus cabelos se eriçaram até as pontas e o sangue de meu corpo
congelou-se nas veias?
Alguém
bateu de leve à porta da biblioteca, e, pálido como o habitante de um túmulo,
um criado entrou na ponta dos pés. Seu olhar mostrava-se desvairado pelo terror
e ele me falou numa voz trêmula, áspera e muito baixa. Que dizia ele? – ouvi
algumas frases truncadas. Falou de um grito lancinante que perturbara o
silêncio da noite – da reunião das pessoas da casa – das buscas na direção do
som – e daí o tom de sua voz pareceu crescer, vibrante e distinto, quando ele
me sussurrou a respeito de um túmulo violado – de um corpo desfigurado deixado
à margem da cova com a sua mortalha, e, no entanto, ainda respirando, ainda
palpitante, ainda vivo!
Apontou
para minhas roupas – estavam enlameadas, sujas de sangue coagulado. Eu não
falei nada e ele segurou-me as mãos com cuidado – elas estavam marcadas com
arranhões de unhas humanas. Dirigiu minha atenção para um certo objeto
encostado à parede – olhei-o por alguns instantes – era uma pá. Com um grito
saltei para a mesa e agarrei a caixa de ébano que estava ali. Mas não consegui
abri-la; escorregou de minhas mãos trêmulas e caiu pesadamente sobre o chão,
fazendo-se em pedaços. Dela, com um som chocalhante, rolaram alguns
instrumentos de cirurgia dentária, misturados a trinta e duas pequenas peças,
brancas, parecendo de marfim, que se espalharam pelo assoalho.
- Sobre o tradutor
João Paulo SILVEIRA DE
SOUZA nasceu em Florianópolis, SC, em 1933. Começou cedo suas atividades
culturais em SC. Na década de 50 passou a integrar o Círculo de Arte Moderna,
mais conhecido como Grupo Sul, movimento que trouxe o Modernismo para Santa
Catarina. Também nessa década participou de atividades teatrais, integrando
como diretor do grupo teatral TESC (Teatro Experimental de SC); e dirigiu o
mensário de literatura e arte Roteiro.
De 60 a 70, foi
professor de matemática no Instituto Estadual de Educação e Escola Técnica
Federal de SC, em Florianópolis. Dirigiu de 71 a 76, a Divisão de Informação e
Divulgação do Departamento de Extensão Cultural da UFSC. Em 79, passou a
trabalhar no setor de editoração da Fundação Catarinense de Cultura, onde
coordenou as Edições FCC e dirigiu as publicações: Boi-de-Mamão (79 a 81);
Cadernos da Cultura Catarinense (84-85) e Escritores Catarinenses, série de
fascículos (90-91). Atualmente aposentado do serviço público, dedica-se a
trabalhos de editoração eletrônica e projetos gráficos de livros. É membro da
Academia Catarinense de Letras.
LIVROS PUBLICADOS
• O VIGIA E A CIDADE
(contos), Florianópolis, SC, 1960;
• UMA VOZ NA PRAÇA (contos), Florianópolis, 1962;
• QUATRO ALAMEDAS, Porto Alegre, RS, 1976;
• OS PEQUENOS DESENCONTROS (crônicas), Florianópolis, 1977;
• O CAVALO EM CHAMAS (contos), São Paulo, SP, 1981;
• CANÁRIO DE ASSOBIO (crônicas), Florianópolis, 1985;
• HYBRIS (poesia e prosa), Florianópolis, 1989; • UM ÔNIBUS E QUATRO DESTINOS (romance, em parceria com Francisco José Pereira e Holdemar Menezes), Porto Alegre, 1994; • RUMOR DE FOLHAS (poemas), Florianópolis, 1966;
• RELATOS ESCOLHIDOS (contos), Florianópolis, 1998;
• TROLOLÓ PARA FLAUTA E CAVAQUINHO (crônicas), em parceria com Flávio José Cardozo, Florianópolis.
[1]
"Diziam meus companheiros que, se visitasse o túmulo da amiga, minhas
inquietações seriam bastante suavizadas". (N. do T.)
[2] O filho de Deus está morto; isto é crível porque é absurdo; e sepultado ressuscitou; isto é verdadeiro porque impossível”. (N. do T.)
[3] Porque Júpiter, durante o inverno, dava por duas vezes sete dias de calor, os homens passaram a chamar a este tempo benigno e temperado de “a ama-de-leite da bela Alcíone”. – Simônides. (Nota de E. A. Pöe.)
[4] “Todos os seus passos eram sentimentos” (N. do E.)
[5] “Ideais!” (N.
do E.)
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