UM PRESENTE DE NATAL PARA OS MORTOS - Conto de Terror Natalino - Luciano Barreto
UM
PRESENTE DE NATAL PARA OS MORTOS
Luciano
Barreto
Depois
de trabalhar trinta anos em uma Prefeitura do interior do Estado do Rio de
Janeiro, achei que teria descanso ao aposentar o bisturi e, assim, não
mancharia mais meu jaleco com sangue.
Foi
preciso ter um estômago forte e um psicológico mais forte ainda para aprender
meu ofício. Os detalhes não são pertinentes agora, pois hoje, nessa época
natalina, e apesar de morar sozinho, nunca mais estive só. E é aí que me achava
em desgraça; e é aí que o sobrenatural sobrepujou as primeiras e assustadoras
cenas de uma necropsia e causou incomparável pavor em mim. A manifestação do
sobrenatural é o cerne desta história; entretanto, mais incrível do que a
horrível manifestação, é seu motivo.
Tudo
começou quando percebi algumas situações inusitadas e estranhas. Um copo que,
na minha rápida ausência, mudou sua posição e se aproximou do limiar da mesa.
Uma colcha que eu havia deixado dobrada sobre a cama e depois de voltar ao
cômodo estava desarrumada, também no limiar do leito. O chuveiro que funcionou
no meio da madrugada, mas a água não desceu pelo ralo, isto é, contrariou o
caimento do chão e se empoçou num canto do piso. Ou o lustre que, antes
pendurado, passou a contradizer a lei da gravidade e estranhamente assumiu um
impossível ângulo inclinado.
Meus
olhos nada viam, mas o coração padecia com um sentimento inquietante. O detalhe
mais dramático, angustiante e medonho é que todos os objetos e manifestações
apontavam para o uma mesma direção, um mesmo sentido: o Norte.
Essas
são as coisas que eu vinha ouvindo e vendo nesses cinco meses de aposentadoria.
Tudo começou na primeira noite como aposentado. À tarde, abracei meus colegas,
despedindo-me de todos. Enquanto a noite se avizinhava lentamente, eu pensava
nos milhares de mortos que abri e fechei com os enferrujados e cegos bisturis
do IML local.
Naquela
tarde de partida, não quis conhecer meu substituto na lida com os falecidos. O
sujeito iria chegar às 19h para iniciar o plantão noturno. Às 18h30 eu já
estava em minha residência. Soube que era um jovem que fora aprovado em um
concurso público para o recém-criado cargo de Técnico de Medicina Legal do
Estado do Rio de Janeiro. Esses concursados iriam substituir os servidores das
Prefeituras com o passar dos meses. Devo ter sido um dos primeiros a ser sacado
da labuta mortuária. Os médicos legistas mais antigos afirmaram que o neófito
não tinha zelo com os corpos que lá eram examinados.
Foi
na noite de Natal de 1991 que eu acordei, após beber muito na rua para ter
coragem de enfrentar mais uma noite fantasmagórica em minha casa, com o
horrível gosto acre na boca. A nuca doía muito. Cambaleando, ergui meu cansado
e suado corpo e fui lavar o rosto. Não sem antes perceber que o ventilador
estava desligado da tomada, mas mesmo assim girava lentamente no sentido contrário
ao normal, quando ligado. Esquadrinhei a situação com algum temor, e cheguei à
conclusão de que as três pás giravam para o Norte. Então, o temor graduou-se
para medo. Por cinco meses, não fiquei em paz na minha casa. Alternava medo com
raiva. Praguejei e rumei para uma pequena varanda onde ainda hoje me sinto mais
à vontade para dar uns tragos em bebida mais destilada que a cerveja. Ali eu vi
que a garrafa de cana estava deitada sobre a mesa e direcionada para a mesma
direção que as pás do ventilador giravam. Algumas gotas ainda vertiam o líquido
alcoólico.
As
reincidências das manifestações sempre adicionavam desespero e raiva ao medo.
Lavei o rosto, tomei quase um litro de água e saí de casa bem assustado e
triste, o que havia se tornado uma rotina.
Caminhava
acompanhado pelo medo e falta de esperança para solução dos meus problemas.
Pensei em procurar ajuda espiritual, mas nunca acreditara em tais curas. Em
certo momento, absorto em meus pensamentos, algo me assustou. Era uma placa que
informava aos motoristas que mais adiante teriam acesso à BR-101 Norte. Senti
um espasmo de horror e minha dolorida nuca se arrepiou quando vi que um dos
arames da placa se rompera e ela deslizara alguns centímetros no poste, tendo a
seta indicativa sido desviada em direção a um prédio velho. Imediatamente,
associei a placa ao IML. Por muitos anos, vi-a quando me dirigia para o serviço
no necrotério. Então, instintivamente, olhei para onde a placa apontava. E
nesses cinco meses afastado, nada vi de diferente. Lá estava o mesmo prédio
velho e surrado. Lá estava o IML local. Eu caminhara sorumbático e não
percebera que estava perto do necrotério. A decisão de não voltar lá ainda
estava em vigor. Apesar de ter amigos lá, não achei prudente regressar ao
setor, pois eu não aceitara a sumária aposentadoria. Ou me aposentava ou iria
trabalhar com papéis na Prefeitura. À época, preferi a aposentadoria. Disse
para mim mesmo que seguiria caminhando a esmo, a fim de me distanciar das
ocorrências sobrenaturais que rondavam minha casa. Entretanto, uma movimentação
estranha no local me deixou curioso. Vários repórteres, muitas viaturas
policiais, uma multidão entupia o lugar. Havia uma espécie de cinturão de
proteção no qual os policiais militares isolavam o local para que as pessoas
não entrassem no IML. Sendo a cidade pequena, o alarido logo ganhou notoriedade
para os munícipes. Contrariando o que já estava decidido, resolvi me aproximar
para saber o que estava acontecendo.
Um
dos repórteres me conheceu e perguntou o que havia acontecido. Eu disse que não
sabia, pois estava chegando naquele exato momento. Embrenhei-me na multidão e consegui
chegar à porta principal da qual entrei e saí por muitos e muitos anos da minha
vida e que, quando da aposentadoria, julguei nunca mais cruzar. Um dos PMS me
advertiu para que não tentasse entrar no local. Eu assenti e fiquei parado
apenas olhando a movimentação.
Um
homem de terno andava de um lado para o outro. Dois detetives conversavam. Havia
alguns policiais militares lá dentro também. E consegui ver também um perito
legista, o doutor Morigute, que era um grande amigo. Ele estava sentado com a
cabeça enterrada nas mãos. Parecia lamentar algo. Subitamente, sofri um forte
esbarrão nas costas. Surpreso, vi que era o diretor do IML, o outro perito
legista com quem também possuía grande amizade. Seu nome era Eliseu. Ele estava
tão apressado que nem havia me visto. O diretor passou pelos militares da
entrada e foi conversar com o homem de terno, depois foi ter com o médico que
parecia extremamente desolado. Em seguida entrou no corredor que conduzia à
sala de necropsia; posteriormente regressou e com ele apareceram dois peritos
criminais. Achei bastante estranho, pois peritos criminais e sala necropsia não
era uma combinação que vi muitas vezes.
Havia
um grupo de pessoas que gritava palavras ofensivas. Alguns outros falavam que
em pleno Natal não poderiam sepultar seu parente. E criticavam a polícia com um
sem-número de palavrões. Elas reclamavam a entrega de um cadáver. O doutor
Eliseu voltou-se para a primeira linha da multidão onde nós — eu e as pessoas
que reclamavam da demora da entrega do corpo — estávamos e olhou com o rosto
inexpressivo. Quando me viu, arregalou os olhos e veio ao meu encontro.
Empurrou um dos PMS — o mesmo que me advertira para não entrar no IML —,
puxou-me pela manga da camisa para dentro do saguão central e me disse que
havia ligado para minha casa. Eu informei que havia saído desde cedo. O médico
me levou para uma sala e disse chiando como um asmático:
—
Preciso de sua ajuda. Não há ninguém para dissecar dois corpos — ele revelou
com os olhos bem abertos.
—
Estou percebendo, doutor. A família está indômita lá fora.
—
Olhe, Francisco, estou com um problema daqueles. É algo inacreditável.
—
Conte, doutor Eliseu. Ultimamente, ando acreditando no inacreditável.
—
Venha comigo.
Saímos
da sala e seguimos para o corredor que conduzia à sala de necropsia. No caminho
ele parou e falou com o sujeito que trajava o terno cinza, depois me
apresentou-o; era o delegado de polícia da cidade. Então, o delegado falou
discretamente ao meu ouvido:
—
Contamos com sua ajuda, senhor.
Eu
assenti ante a seriedade com a qual ele se pronunciara.
Pela
segunda vez senti um calafrio quando caminhei em direção àquela sala de
necropsia. A primeira vez fora quando debutara no serviço fúnebre. No decurso
de cinco meses, tal qual a fachada da construção, nada havia mudado. Paredes
bolorentas, piso danificado e pouca iluminação. A antecâmara do terror, eu
apelidara aquele corredor. Na soleira da porta imediatamente anterior à dita
sala, o doutor Eliseu me revelou o ocorrido.
—
O fato é que o morto matou o vivo. Alfredo, o Técnico de Medicina Legal novato,
estava lavando um defunto, parente dessa grande família que está aí fora, e a
rigidez cadavérica era tamanha que os dedos do cadáver estavam extremamente
retesados. Num movimento infeliz, dois dedos do morto engancharam no
guarda-mato do revólver que estava num coldre do tipo semiaberto do novato e,
para não sujar a arma de sangue, ele não quis segurá-la com as mãos, pois
naquele momento vestia luvas e estas estavam ensanguentadas. Assim, o garoto
tentou se desvencilhar com algum movimento mais brusco. Achamos que Alfredo
calculou que os dedos do falecido estavam presos no coldre, mas por fora e não
na parte exposta, onde se localiza o guarda-mato e o gatilho. Eu falei para
esse moleque não usar arma enquanto trabalhasse na dissecação dos corpos.
Resumo da estória; a arma disparou e atingiu a femural do novato que sangrou
até morrer. O legista de plantão alega que alguém o trancou no alojamento pelo
lado de fora. A perícia comprovou que um barrote fora colocado entre a porta e
a parede, impedindo que o perito saísse para saber a causa do tiro e para ver
se alguém havia se machucado.
Ele
abriu a porta e eu vi os cadáveres. O novato estava arriado no chão, perto da
mesa de necropsia. Seu corpo estava encoberto por uma penumbra, mas vi seu
rosto que refletia a imagem de algo horrivelmente sobrenatural. O outro defunto
estava deitado de barriga para cima, nu e descalço. Suas mãos estavam cruzadas
sobre o peito.
—
O que os peritos criminais falaram? — perguntei curioso.
—
Estavam com tanto nojo do local que nem examinaram com argúcia toda a área.
—
Meu Deus! — falei com profunda sinceridade e incredulidade.
—
Eu sei — confessou o diretor —; é realmente incrível uma coincidência dessas.
—
Não falo disso, doutor Eliseu. Falo daquelas pegadas ensanguentadas que estão
quase imperceptíveis junto às paredes. Veja — o homem girou o próprio corpo,
espantado —, elas vão do primeiro falecido — o que a família aguarda lá fora —
até o alojamento e, depois, em alguns momentos, se sobrepõem; como se fosse um
caminho de volta.
—
Pai do céu! Meus olhos não estão vendo isso.
O
diretor do IML coçou a cabeça, olhou para os lados e disse:
—
Os peritos já vistoriaram e liberaram o local. Assim, peço que você limpe as
pegadas. Conversei com o delegado e você será reconduzido ao cargo de Auxiliar
Municipal de Necropsia, mas a aposentadoria é definitiva. Daremos uma ajuda de
custo a você. A capital não tem outro Técnico para enviar à nossa cidade. E
você sabe: esse é um serviço tão digno e essencial quanto qualquer outro.
Francisco, preciso que você trabalhe nesses dois corpos. Eu assinarei o laudo.
Comece pelo desnudo porque os parentes estão a ponto de invadir isso aqui.
Depois examinaremos o corpo de Alfredo e vamos procurar o projétil que
supostamente o matou. A família dele está chegando da capital. O que acha? Tem
interesse?
O
médico temeu minha resposta.
—
Tudo bem, doutor Eliseu. Creio que posso ajudá-lo. Será uma espécie de terapia
para mim. Sempre gostei de trabalhar aqui. E aprendi a respeitar esse ofício.
O
médico abriu um sorriso comedido e apertou minha mão. Coloquei o avental e me
aproximei do homem que jazia na mesa de exame necroscópico. Na movimentação
habitual, reparei que alguém colocara algumas luzes natalinas e uma guirlanda
na sala de necropsia. Louvei aquela atitude. Eu não teria pensado nisso. Então,
achei ter visto a sombra de um sorriso de satisfação no rosto do defunto
desnudo que sumiu quando me detive com funesta atenção, após direcionar o foco
de luz branca para seu rosto. Instintivamente, reparei em suas mãos. Movi a luz
a fim de iluminá-las. Vi que pequeninos pedaços de madeira estavam cravados nas
mãos; eram farpas de madeira. E a falange distal do dedo indicador direito estava
coberta de sangue. O doutor Eliseu estava escrevendo numa mesa mais afastada da
mesa de exame e me olhou com uma imensa interrogação na cabeça. Tive certeza que
se eu não falasse das farpas, ele não saberia. Por decisão minha, ele não
soube. O legista também não soube da inscrição feita com sangue na parte
interna do antebraço esquerdo do cadáver. Quando a vi, demorei quase um minuto
inteiro para me recobrar. Meus olhos, marejados, piscaram algumas vezes. Com
imenso cuidado, fui lavando a frase: “Seja bem-vindo”.
Muito bom conto,consegue prender a atenção....
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