A NEUROSE DA GUILHOTINA - Conto Clássico Cruel - Eugenia Schmit
A NEUROSE DA GUILHOTINA
Eugenia Schmit
(Séc. XIX)
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
— Lady Clelia — disse o rei da França à celestial inglesa ajoelhada a seus pés —, vem também, a exemplo de tantas damas blasonadas, implorar o perdão deste condenado a morte, que o diabo confunda? Se assim é millady, tem muito a esperar da minha justiça e pouco da minha clemência; pois não lhe ocultarei que me desagrada soberanamente a leviandade das mulheres que não hesitara em comprometer o seu bom nome por semelhante celerado
—Perdão, meu senhor—replicou a inglesa abaixando pudicamente os grandes olhos virginais, —eu venho pedir a vossa majestade, para esse criminoso, o inverso da clemência e da piedade. Venho suplicar-lhe, de joelhos, que se haja sem misericórdia para com ele e que ordene que a execução tenha lugar amanhã, sem falta, porque desejo partir nessa mesma noite para Lipski, a fim de assistir a outro divertimento do mesmo gênero.
Entrarei na prisão de Newgate, como “repórter”, e já comprei, por mil libras esterlinas, um bilhete de admissão.
E a monstruosa criatura, ao dizer estas palavras satânicas, tinha a serenidade triunfante das consciências imaculadas.
O rei, atordoado, atentava curiosamente o rosto de Lady Clelia, sem saber se ella estaria doida furiosa, ou dizendo simplesmente um gracejo de mau gosto.
Mas ela, sorrindo com,tristeza e fitando no monarca os seus olhos profundos e nostálgicos, disse imperturbavelmente, com um fleuma irritante de criança muito amada:
—Ah, é verdade! Esquecia-me de lhe explicar a minha singular predileção por esse trágico passatempo. E tenho mesmo notado, com íntimo pesar, que todas as pessoas a quem falo nisso dão provas de surpresa e terror, não sei por quê.
É uma coisa tão natural! Imagine vossa majestade que o spleen1, essa terrível doença do meu país, me persegue por. toda parte: excepto quando a ventura me permite assistir a uma execução capital. É tão curioso ver os trejeitos dos supliciados!
Alguns, loucos de terror, tremem convulsivamente ao sentir a mão pesada do carrasco; outros, morrem com a suprema correção dos homens verdadeiramente superiores, sem desfalecimentos, nem cobardia.
Confesso, porém, que me agradam mais os primeiros, por causa dos seus medonhos gritos de aflição, que eu acho muito engraçados.
Por isso, como sou muito rica, nunca perco ensejo de assistir a uma execução, a não ser quando há, por acaso, duas no mesmo dia, em países diferentes.
Ando sempre a viajar, para as aproveitar todas. Recebo jornais de todos os países; e, como não me é possível saber todas as línguas do mundo, pago generosamente a muitos interpretes, que me acompanham em todas as minhas viagens, o trabalho fastidioso me traduzirem todas as notícias que se possam dizer a respeito à minha singular paixão. Ah, mas não pense vossa majestade que tudo são rosas nesta vida.
Há meses parti para Londres, onde esperava ter o gosto de assistir a uma execução que vira anunciada.
Por fatalidade, descarrilou o comboio que me conduzia, o que deu em resultado um atraso de muitas horas, sem haver a lamentar algum desastre pessoal. Quando cheguei, a execução tivera lugar havia duas horas. Esse contratempo deixou-me desesperada, como vossa majestade pôde supor. O que, porém, atenuava o meu desapontamento era a certeza de que haveria brevemente uma execução em Cracóvia, para onde parti, sem demora. Quando cheguei a essa cidade, soube com espanto que o maldito condenado conseguira iludir a vigilância dos soldados encarregados de o guardar, e se enforcara na sua cela. Furiosa por ver assim frustradas todas as minhas esperanças mais queridas, parti imediatamente para Castela, onde acabava de ser condenado à morte um conspirador. Quando me dirigia para a praça em que havia de realizar-se a execução, disseram-me que o infame, ao ver o carrasco e os seus ajudantes, fora acometido dum insulto apoplético, de que lhe resultara morte instantânea. Agora, completamente desanimada eis-me de novo em Versalhes, onde espero que vossa majestade me conceda o favor que lhe pedi.
O rei, muito pálido, e com a voz trêmula de indignação, interrogou com império:
— E se esse homem, cuja cabeça vem pedir-me, estiver inocente do crime de que é acusado, Lady Clelia?
—Descanse vossa majestade que eu não costumo preocupar-me com tais bagatelas, contanto que possa assistir ao meu espetáculo favorito — respondeu com o seu ar mais casto e senhoril a excêntrica inglesa.
Más o rei, pálido como a morte, ergueu-se de súbito e disse como uma frieza terrível e exagerada:
—Millady, já que teve a imprudência de me fazer confidência de suas “inocentes” extravagâncias, deixe-me ser franco a meu turno. Ah, julga que são os pequeninos cérebros doentios das mulheres ociosas e milionárias é que são habitados pelo capricho? Engana-se. Eu, que sou um forte e um justo, também às vezes me sinto atacado desse terrível mal que se chama neurose da guilhotina. Mas sabe em que difere da sua a minha criminosa mania? É que enquanto a si pouco lhe importa a hierarquia do condenado, a cujo suplício assiste com prazer, a mim só me deliciam os gritos convulsivos e o derradeiro arranco de fidalgas orgulhosas e branca como astros, que coram de vergonha e indignação, sob os apupos da canalha, em caminho do cadafalso.
Depois, chamando os guardas e indicando-lhes Lady Clelia, semimorta de espanto e de terror, ordenou:
— Conduzam esta mulher a uma prisão e esperem que eu a entregue ao carrasco.
E, caindo de joelhos, murmurou baixa — tão baixa que só o seu coração ouvia — as palavras que seus lábios murmuravam:
“Meu Deus, há no mundo criaturas mais pervertidas do que eu. Vós, senhor bem sabeis que eu nunca ordenei a morte de uma das vossas criaturas sem me sentir aguado pelo remorso e pela piedade, e que nunca assinei com firmeza uma sentença de morte. Vós bem sabeis, Deus misericordioso, que lançaste na minha alma o horror do crime e o amor do Justo e do Belo. Eu serei sempre virtuoso no tribunal da minha consciência, senhor, enquanto vós criardes os monstros abomináveis e, todavia, inconscientes, que só acham sabor ao espetáculo das carnificinas!”
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Fontes: Pacotilha/MA, 11/01/1888; O Espírito Santense/ES, 9/6/1888 e Seis de Março/PR, 9/6/1888.
1Melancolia.
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