UMA DESCIDA NO MAELSTRÖM - Conto Fantástico - Edgar Allan Poe
UMA DESCIDA NO
MAELSTRÖM
Edgar Allan Poe
(1809 – 1849)
Tradução de Silveira de Souza
Os caminhos de
Deus na Natureza, assim como na ordem da Providência, não são os nossos
caminhos; nem são os modelos que estruturamos de modo algum comensuráveis com a
imensidão, profundidade e inescrutabilidade de Suas obras, que têm em si um
fundo maior que o poço de Demócrito.
Joseph Glanville
Havíamos
atingido agora o cume do rochedo mais elevado. Por alguns minutos o velho
demonstrou estar cansado demais para falar.
“Não
faz muito tempo”, disse por fim, “eu podia ter guiado o senhor por este caminho
tão bem quanto o mais novo de meus filhos; mas, cerca de três anos atrás,
aconteceu comigo um fato como nunca ocorreu antes a nenhum ser mortal – pelo
menos a alguém que tenha sobrevivido para contá-lo – e as seis horas de
implacável terror que enfrentei na ocasião me abalaram o corpo e o espírito. O
senhor deve imaginar que eu seja... muito velho – mas não sou. Menos de um dia
foi o suficiente para que os meus cabelos mudassem do negro para o branco, as
pernas e os braços enfraquecessem e meus nervos se afrouxassem, a tal ponto que
fico trêmulo ao menor esforço e assustado só em ver uma sombra. Acredita que
mal posso olhar de cima deste pequeno penhasco sem ficar tonto?
O
“pequeno penhasco”, à borda do qual ele tão despreocupadamente se jogara para
descansar, de um jeito que o corpo, pela sua parte mais pesada, ficava pendente
e só não caía devido à sustentação que lhe dava o cotovelo, apoiado com firmeza
sobre a aresta extrema e escorregadia da borda – este “pequeno penhasco”
elevava-se – verdadeiro precipício de rocha negra e brilhante – cerca de mil e
quinhentos ou mil e seiscentos pés sobre um mundo de penhascos abaixo de nós.
Nada me teria tentado a ir além de meia dúzia de jardas antes de sua beira. Na
verdade, tão perturbado me sentia ante a arriscada posição de meu companheiro,
que me deixei cair de comprido sobre o chão, agarrei os arbustos ao meu redor e
não ousei nem mesmo olhar para o alto – enquanto lutava em vão para afastar a
ideia de que a própria base da montanha estava em perigo com a fúria dos
ventos. Foi preciso algum tempo para que eu pudesse voltar a raciocinar e
adquirir a coragem suficiente para sentar e olhar os pontos distantes.
“O
senhor deve aprender a enfrentar essas dificuldades”, disse o guia, “pois eu o
trouxe aqui para que pudesse ter a melhor visão possível do cenário daquele
fato que mencionei – e contar-lhe a história toda com o próprio lugar sob a
vista.”
“Estamos
agora”, continuou, com aquele modo de falar minucioso que o caracterizava –
“estamos agora sobre a costa norueguesa – a sessenta e oito graus de latitude –
na grande província de Nordland – e no lúgubre distrito de Lofoden. A montanha
em cujo cume nos sentamos é Helseggen, a Nublada. Agora levante-se um pouquinho
mais – se sentir tontura, agarre-se na grama – assim – e olhe para o mar, para
além daquela cinta de vapor abaixo de nós.”
Olhei
aturdido, e vi uma larga extensão de oceano, cujas águas exibiam um matiz de
tinta tão carregado que me lembrou de imediato a descrição do Mare
Tenebrarum, do geógrafo Nubian. A imaginação humana não pode conceber um
panorama mais deploravelmente desolado. À direita e à esquerda, tão distantes
quanto o olho podia alcançar, estendiam-se, como as muralhas do mundo, as
linhas de um rochedo horrivelmente negro e saliente, cujo caráter de melancolia
não seria com maior vigor melhor ilustrado senão pela ressaca, que se atirava
para o alto contra sua branca e medonha crista, permanentemente uivando e
soltando urros estridentes. Bem defronte ao promontório, sobre cujo ápice nos
encontrávamos, e numa distância de mais ou menos cinco ou seis milhas ao largo,
avistava-se uma ilhota que parecia desértica; ou, melhor dizendo, deduzia-se a
sua existência através das vagas em tumulto que a envolviam. Mais próxima da
terra cerca de duas milhas, via-se outra de tamanho ainda menor, pavorosamente
árida e escarpada, rodeada a intervalos diversos por grupos de rochas negras.
A
aparência do oceano, no espaço entre a ilha mais distante e a costa, tinha
alguma coisa de insólita. Ainda que, naquele momento, estivesse soprando da
terra um vento tão forte que um brigue, a uma enorme distância, mantinha-se à
capa, com dois rizes na carangueja, e mergulhava para fora da vista todo seu
casco, mesmo assim nada existia ali que se assemelhasse a vagalhões constantes,
mas apenas um curto, rápido, furioso arremesso cruzado de águas para todas as
direções, – como se, em outras palavras, desafiassem o vento. Havia pouca
espuma, exceto na vizinhança imediata das rochas.
“A
ilha mais distante”, recomeçou o velho, “é chamada Vurrgh pelos noruegueses. A
que fica a meio caminho é Moskoe. Aquela a uma milha para o norte é Ambaaren.
Mais além estão Islesen, Hothholm, Keildhelm, Suarven, e Buckholm. Ainda mais
longe – entre Moskoe e Vurrgh – estão Otterholm, Flimen, Sandflessen, e
Stockholm. Esses são os nomes verdadeiros desses lugares – mas a razão porque
se achou necessário dar nomes a eles todos, isto é mais do que o senhor ou eu
podemos entender. O senhor ouve alguma coisa? Vê alguma mudança na água?”
Fazia
quase dez minutos que estávamos sobre o cume de Helseggen, ao qual havíamos
subido vindos do interior de Lofoden, de modo que não havíamos tido nenhum
vislumbre do mar, até que ele surgiu de repente ao chegarmos lá em cima.
Enquanto o velho falava, tomei consciência de um som ruidoso, forte e
gradualmente crescente, como mugidos de uma vasta manada de búfalos numa
pradaria da América; e, no mesmo instante, percebi que aquilo que os
marinheiros denominam o aspecto encrespado do oceano, lá embaixo estava
rapidamente se transformando numa corrente que se dirigia para leste. Mesmo
enquanto a olhava, essa corrente adquiria inacreditável velocidade. Cada
momento aumentava a impetuosidade das águas – num movimento sempre mais
vertiginoso. Em cinco minutos todo o mar, tão longe quanto Vurrgh, era
fustigado por fúria ingovernável; mas entre Moskoe e a costa é que o tumulto se
tornava dominante. Ali, o vasto leito das águas retalhava-se e cerzia-se em mil
sulcos em conflito, explodia de súbito em convulsões frenéticas – arfando,
fervendo, sibilando – revoluteava em vórtices gigantescos e inumeráveis, e tudo
ia girando e submergindo na direção leste com uma rapidez que nunca se vê nas
águas em outros lugares, exceto quando despenham por precipícios.
Alguns
minutos depois recaiu sobre a cena uma outra radical transformação. A
superfície geral ficou um pouco mais homogênea, e os vórtices, um a um,
desapareceram, enquanto enormes faixas de espuma foram surgindo onde nada havia
sido visto anteriormente. Essas faixas, por fim, estendendo-se a uma grande
distância, e combinando-se uma às outras, acrescentaram a si o movimento
giratório dos vórtices submersos, e pareciam formar o gérmen de um outro
vórtice mais vasto. Repentinamente – muito repentinamente – este assumiu
distinta e definida existência, num círculo de diâmetro maior que uma milha.
O
rebordo do redemoinho era representado por um cinturão de espuma luminosa; mas
nenhuma partícula deslizava para a boca do espantoso funil, cujo interior, tão
longo quanto o olhar podia alcançar, era uma parede de água, jato negro, polido
e brilhante, inclinado para o horizonte num ângulo de aproximadamente quarenta
e cinco graus, girando e girando numa entontecedora velocidade, em oscilante e
opressivo movimento, e que lançava aos ventos uma voz aterradora, meio grito,
meio rugido, tal que nem mesmo a poderosa catarata de Niágara, nos seus
tormentos, alguma vez lançou aos céus.
A
montanha estremecia na própria base e rochedo parecia abalar-se. Atirei-me de
rosto sobre o chão e agarrei as escassas ervas num excesso de agitação nervosa.
“Isto”,
disse eu finalmente ao velho – “isto não pode ser outra coisa senão o grande
redemoinho do Maesltröm.”
“Às
vezes é assim denominado”, disse ele. “Nós, os noruegueses, o chamamos
Moskoe-ström, por causa da ilha de Moskoe, a meio caminho.”
As
narrativas conhecidas a respeito desse vórtice de modo algum prepararam o meu
espírito para o que vi. Aquela de Jonas Ramus, que é talvez a mais
circunstancial de todas, não oferece a menor noção seja da grandiosidade, seja
do horror da cena – ou do violento e perturbador sentido de “algo novo” que
confunde o espectador. Não estou certo de que ponto de vista o escritor em
questão o abordou, nem em que época; mas não deve ter sido do cume do
Helseggen, nem durante uma tempestade. Há certas passagens de sua descrição,
não obstante, que podem ser citadas pelos pormenores que apresentam, ainda que
de efeito bastante fraco para transmitir uma impressão do espetáculo.
“Entre
Lofoden e Moskoe”, diz ele, “a profundidade da água é entre trinta e seis e
quarenta braças; mas, do outro lado, na direção de Ver (Vurrgh) essa
profundidade decresce de modo a não permitir uma passagem favorável a um navio
sem o risco de espatifar-se nas rochas, o que pode acontecer mesmo com o tempo
mais calmo.
Quando
há maré, a corrente percorre a região entre Lofoden e Moskoe com turbulenta
rapidez; mas o fragor de seu impetuoso refluxo para o mar é insuficientemente
comparado ao da mais alta e terrível das cataratas. O bramido pode ser ouvido a
várias léguas de distância, e os vórtices ou poços possuem tal extensão e
profundidade que, se um barco está em seu campo de atração, inevitavelmente é
sorvido e atirado para o fundo, fazendo-se em pedaços no embate contra os
rochedos; e quando as águas se acalmam, os fragmentos dele são de novo atirados
à tona. Entretanto, esses intervalos de tranquilidade acontecem somente entre o
fluxo e o refluxo, e em tempo calmo, e não duram mais que um quarto de hora,
recomeçando então gradualmente a sua violência. Quando a corrente giratória se
torna mais impetuosa, e sua fúria é aumentada por uma tempestade, é perigoso
aproximar-se dela a menos de uma milha norueguesa. Barcaças, iates e navios têm
sido arrastados por não se haverem precavido contra ela , evitando passar
dentro de sua zona de alcance. Acontece com frequência, de modo semelhante, que
baleias ficam muito próximas da corrente e são dominadas pela sua força; então,
é impossível descrever seus mugidos e bramidos devido aos esforços inúteis que
fazem para se libertarem. Certa vez um urso, ao tentar nadar de Lofoden a
Moskoe, foi apanhado pela corrente e puxado para o fundo, enquanto ele urrava
tão terrivelmente que se podia ouvir da praia. Toras de abetos e pinheiros, de
enorme volume, após serem sugadas pela corrente, retornam à superfície de tal
modo quebradas e despedaçadas, que se diria haver nascido cerdas sobre elas.
Isso vem mostrar claramente que o fundo do abismo consiste de rochas
pontiagudas, de encontro as quais as toras são atiradas num giro aleatório. Tal
corrente é regulada pelo fluxo e refluxo do mar – que se alternam a cada seis
horas. No ano de 1645, na manhã do domingo da Sexagésima, ela se enfureceu com
tamanho estrondo e impetuosidade que mesmo as pedras das casas, na costa,
vieram abaixo.”
Quanto
à profundidade das águas, eu não via como ela poderia ser determinada com
certeza na imediata vizinhança do vórtice. As “quarenta braças” devem
referir-se somente às partes do canal próximas da costa ou de Moskoe ou de
Lofoden. A profundidade no centro do Moskoe-ström deve ser incomensuravelmente
maior, e não existe melhor prova desse fato do que a obtida só em olhar, mesmo
de esguelha, sobre o abismo do vórtice que se vislumbra do ponto mais alto do
rochedo de Helseggen. Olhando desse pico lá para baixo, por cima do uivante
Phlegethon, não pude reter um sorriso ante a singeleza com que o honesto Jonas
Ramus registra, como casos difíceis de acreditar, as anedotas de baleias e de
ursos, pois sem dúvida me pareceu uma coisa evidente por si mesma que o maior
navio de linha que possa existir, ao cair sob a influência daquela atração
letal, podia resistir-lhe tão pouco quanto uma pena a um furacão, e devia
desaparecer súbita e completamente.
As
tentativas de explicação do fenômeno – algumas das quais, recordo, pareceram-me
suficientemente plausíveis à leitura – agora assumiam um aspecto muito
diferente e insatisfatório. A ideia geralmente acolhida é que este, assim como
três vórtices menores entre as ilhas Ferroe, “não têm outra causa senão a
colisão de vagas que se levantam e caem, no fluxo e no refluxo, contra uma
cadeia de rochedos e bancos de rocha que confinam as águas, pressionando-as de
tal modo que elas se precipitam como uma catarata; e assim, quanto mais alto se
levanta a torrente, mais profunda deve ser a queda, e o resultado natural disso
tudo é um redemoinho ou vórtice, cuja prodigiosa força de sucção é
suficientemente conhecida por exemplos menores.” É o que diz a Enciclopédia
Britânica. Kircher e outros supõem que no centro do canal do Maelström há
um abismo que atravessa o globo e vai sair em alguma parte muito remota – tendo
sido o Golfo de Botnia nomeado certa vez um tanto arbitrariamente. Essa
opinião, por si mesma trivial, era a que, enquanto eu olhava, minha imaginação
mais prontamente aceitou; e, ao mencioná-la para o guia, fiquei surpreso ao
ouvi-lo dizer que, conquanto fosse essa a opinião quase universalmente aceita
pelos noruegueses sobre tal assunto, contudo não era a dele próprio. Quanto à
primeira opinião, confessou sua incapacidade para compreendê-la; e aqui devo
concordar com ele – pois, ainda que concludente no papel, ela se torna
inteiramente ininteligível, e mesmo absurda, ante os estrondos do abismo.
“O
senhor deu agora uma boa olhada no redemoinho”, disse o velho, “e se o senhor
quiser arrastar-se em torno desta rocha, de modo a abrigar-se do vento e
amortecer o ruído das águas, poderei contar-lhe uma história que o convencerá
de que devo conhecer algo do Moskoe-ström.”
Coloquei-me
no local desejado por ele, e o velho prosseguiu:
“Eu
e meus dois irmãos certa vez possuímos uma sumaca, aparelhada em escuna, de
cerca de 70 toneladas, com a qual tínhamos o hábito de pescar entre as ilhas
além de Moskoe, perto de Vurrgh. Todos os remoinhos violentos do mar oferecem
boa pesca, em ocasiões favoráveis, bastando para isso somente a coragem para a
tentativa; mas entre todos os homens da costa de Lofoden, nós três éramos os
únicos, como lhe disse, que fazíamos o trabalho regular de ir até as ilhas. Os
locais usuais de pesca ficam a uma grande distância mais abaixo, na direção
sul. Lá o peixe pode ser colhido a qualquer hora, sem muito risco, e por isso
tais locais são os preferidos. No entanto, pontos especiais aqui para cima
entre as rochas não apenas oferecem as variedades mais raras, como em
quantidade bem maior; de modo que muitas vezes, num único dia, nós apanhávamos
o que os mais tímidos no ofício não apanhariam juntos numa semana. Na verdade,
fazíamos disso um assunto de especulação desesperada: – o risco de vida
sobrepujando o trabalho, e a coragem respondendo pelo capital.
Abrigávamos
a sumaca numa enseada cerca de cinco milhas mais ao norte da costa, em relação
a esta; e era uma prática nossa, quando fazia bom tempo, tirar vantagem dos
quinze minutos de calma para aventurarmo-nos através do canal principal do
Moskoe-ström, bem acima da cavidade, e então fundear em algum lugar próximo de
Otterholm, ou Sandflesen, onde os remoinhos não são tão violentos como em
outros lugares. Permanecíamos ali mais ou menos o tempo entre uma calmaria e
outra, quando então levantávamos âncora e retornávamos. Nunca iniciávamos essa
expedição sem que houvesse vento firme para ir e voltar – um vento do qual nos
sentíssemos seguros de que não mudaria antes do nosso retorno – e sobre este
ponto raramente nos enganávamos. Duas vezes, durante seis anos, fomos obrigados
a passar a noite inteira ancorados devido a uma longa calmaria, que era de fato
uma coisa rara naquelas imediações; e uma vez tivemos de ficar ali fundeados
aproximadamente uma semana, morrendo de fome, pois uma rajada nos surpreendeu
pouco depois que chegamos, fazendo o canal tormentoso demais para se pensar em
atravessá-lo. Nessa ocasião teríamos sido impelidos mar afora a despeito de
tudo (pois a força dos remoinhos nos projetava em círculos tão violentamente
que, por fim, tivemos de enredar nossa âncora e arrastá-la), se não tivesse
acontecido de cairmos numa dessas inumeráveis correntes cruzadas que – hoje
aqui, amanhã ali – nos conduziu a sotavento de Flimen, onde, por sorte,
conseguimos fundear.
Não
poderia contar-lhe a vigésima parte das dificuldades que encontramos “nos
pesqueiros” – que eram locais perigosos para se ficar, mesmo quando fazia bom
tempo – mas sempre conseguíamos driblar as garras do próprio Moskoe-ström sem
acidentes, embora às vezes o meu coração viesse à boca quando acontecia de
estarmos um minuto adiantado ou atrasado em relação à maré. Às vezes o vento
não era tão forte como imaginávamos de início, e então fazíamos um percurso
menor que o desejado, enquanto a corrente tornava a sumaca ingovernável. Meu
irmão mais velho tinha um filho de dezoito anos, e eu tinha dois filhos
robustos. Eles teriam sido de grande utilidade nessas saídas, tanto para o uso
dos remos, como pescando à popa – mas, seja como for, ainda que nós próprios
corrêssemos os riscos, não tínhamos coragem para permitir que os jovens
passassem por tais perigos – porque, a despeito de tudo que se pudesse dizer ou
fazer, era um horrível perigo, e essa é a verdade.
Dentro
de poucos dias vai fazer três anos que ocorreu o fato que estou começando a
contar-lhe. Foi no décimo dia de julho de 18..., um dia que o povo desta parte
do mundo nunca vai esquecer – pois foi quando soprou o mais terrível furacão já
vindo dos céus. E, no entanto, durante toda a manhã, e na verdade até à
tardinha, havia uma brisa constante e leve do sudoeste, enquanto o sol brilhava
firme, de modo que os homens do mar mais experimentados dentre nós não podiam
prever o que se seguiu.
Os
três – meus dois irmãos e eu – cruzamos na direção das ilhas por volta das duas
horas da tarde, e logo quase abarrotamos a sumaca com os melhores peixes, os
quais, observamos, vieram naquele dia em quantidade nunca vista antes.
Exatamente às sete horas – pelo meu relógio – levantamos âncora e iniciamos o
retorno para casa, no intento de atravessar a pior parte do Ström com a maré
calma, que, sabíamos, poderia ser feita até às oito horas.
Partimos
com vento novo, no quarto de estibordo, e durante algum tempo seguimos com boa
velocidade, sem imaginar qualquer perigo, pois na verdade não víamos razão
alguma para apreensões. Mas de súbito fomos surpreendidos por uma brisa vinda
de Helseggen. Isso era extremamente raro – algo que nunca antes nos sucedera –
e comecei a sentir-me um tanto inquieto sem saber exatamente por quê. Pusemos o
barco a favor do vento mas não pudemos avançar por causa dos remoinhos, e eu já
estava a ponto de propor retornarmos ao ancoradouro quando, olhando para trás,
vimos o horizonte inteiro encoberto por uma estranha nuvem cor de cobre, que se
alçava com a mais espantosa velocidade.
Nesse
meio tempo a brisa que nos interceptara caiu, ficamos em completa calmaria, o
barco à deriva, girando para todas as direções. Tal estado de coisas, contudo,
não demorou o suficiente para nos dar tempo de pensar sobre ele. Em menos de um
minuto a tempestade desabava sobre nós – em menos de dois, o céu se achava
inteiramente toldado – além dessas coisas e mais o borrifar de espumas pelo
vento, tudo ficou subitamente tão escuro que não podíamos ver um ao outro na
sumaca.
Quando
sobrevêm tais furações é loucura tentar descrevê-los. O mais velho marujo na
Noruega nunca experimentou algo semelhante. Havíamo-nos desfeito das velas
antes de sermos atingidos pela ventania; mas, à primeira lufada, nossos dois
mastros saltaram pela borda como se tivessem sido serrados – e o mastro
principal levou consigo o meu irmão mais novo, que se amarrara nele por
segurança.
Nosso
barco era uma pluma mais leve que qualquer outra coisa que alguma vez já
balançou sobre o mar. O convés, inteiramente plano, tinha apenas uma pequena
escotilha perto da proa, e era sempre costume nosso trancar essa escotilha
quando estávamos nas imediações do Ström, por precaução contra a fúria do mar.
Contudo, nas circunstâncias atuais, teríamos afundado de imediato – porque, por
alguns instantes, ficamos totalmente enterrados sob as águas. Como meu irmão
mais velho escapou à destruição eu não sei dizer, pois nunca mais tive uma
oportunidade para verificar esse fato. Da minha parte, assim que cortei o
traquete, lancei-me de comprido no convés, com os pés pressionando a estreita
amurada da proa, e as mãos agarrando firme o anel de ferro de uma cavilha
próxima do pé do mastro dianteiro. Foi unicamente o instinto que me levou a
fazer isso – sem dúvida a melhor coisa que poderia ter feito – pois eu estava
por demais atordoado para pensar.
Por
alguns momentos ficamos completamente submersos, como falei, e durante esse
tempo prendi o fôlego, agarrado à cavilha.
Quando
não podia mais suster a respiração, apoiava-me sobre os joelhos, ainda com as
mãos seguras, e assim podia levantar a cabeça. Nesse instante nossa pequena
embarcação deu rápidas sacudidelas, assim como faz um cachorro quando sai da
água, e dessa forma, em certa medida, pôde erguer-se acima dos mares. Eu agora
buscava vencer o estado de depressão que me dominara e recobrar a presença de
espírito necessária para saber o que fazer, quando senti alguém segurar com
força o meu braço. Era o meu irmão mais velho, e meu coração pulsou mais forte
de alegria, pois eu estava certo que ele havia caído do barco – no entanto,
logo em seguida, a alegria se transformou em puro horror, porque ele aproximou
a boca de minha orelha e gritou a palavra “Moskoe-ström!”
Ninguém
saberá dos meus sentimentos naquele momento. Tremia da cabeça aos pés como se
acometido da mais violenta convulsão febril. Eu sabia suficientemente bem o que
ele queria dizer com aquela única palavra – sabia o que desejava fazer-me
entender.
Com
o vento que agora nos dirigia, estávamos presos à força do torvelinho do Ström,
e nada poderia salvar-nos!
O
senhor deve ter percebido que ao atravessar o canal do Ström, seguíamos sempre
um longo caminho acima do torvelinho, mesmo no tempo mais calmo, e então
esperávamos e, com cuidado, ficávamos à espreita do repouso da maré. – Mas
agora estávamos sendo arrastados para o próprio remoinho, e sob um furação como
aquele! “Com certeza”, pensei, “chegaremos ali no exato momento do repouso – há
ainda uma diminuta esperança nisso” – no momento seguinte, porém, amaldiçoei a
mim mesmo pelo fato de pensar semelhante tolice e sonhar com uma esperança
impossível. Sabia muito bem que estávamos condenados, mesmo que estivéssemos
num navio de novecentos canhões.
Nesse
tempo o primeiro ímpeto da tempestade havia passado, ou talvez não o tivéssemos
sentido muito, pois corríamos a favor do vento, mas, de qualquer modo, as águas
do mar que à princípio se mantiveram baixas pelo vento, e permanciam planas e
espumosas, levantavam-se agora como montanhas. Singular transformação, também,
afetava os céus. Em todas as direções, ao redor, estava ainda escuro como breu,
mas aproximadamente acima de nossas cabeças, de repente, abriu-se uma fenda
circular de claro céu – tão claro como nunca o vi assim, de um profundo azul
brilhante – e através dele resplandecia a lua cheia com um fulgor tal que nunca
antes eu imaginara que aquele astro pudesse ter. Iluminava tudo a nossa volta
com a maior nitidez – no entanto, ó Deus, que espetáculo estava ela a iluminar!
Tentei
em seguida por uma ou duas vezes falar com meu irmão – mas, não sei como, o
barulho aumentara tanto que não consegui fazê-lo entender uma única palavra,
mesmo gritando o mais alto possível em seu ouvido. Pouco depois, ele sacudiu a
cabeça, voltando para mim um rosto pálido como a morte, e ergueu um de seus
dedos, como se quisesse dizer: escuta!.
Não
pude entender a princípio o significado daquilo – mas em breve fui tomado por
um horrendo pensamento. Puxei o relógio da algibeira. Estava parado. Examinei o
seu mostrador à luz da lua e então rebentei em lágrimas enquanto atirava o
relógio para longe sobre o mar. Ele havia parado às sete horas! Deixáramos
passar o tempo de repouso da maré e o remoinho do Ström estava no auge da
fúria!
Quando
um barco é bem construído, convenientemente equipado e sem excessiva carga, as
ondas sob forte ventania, se o barco navega ao largo, parecem sempre deslizar
por debaixo dele – o que aparenta muito estranho para alguém em terra – e isso
é o que se chama flutuar, na linguagem de bordo. Pois bem, até então havíamos
flutuado com habilidade; mas logo depois uma onda gigantesca apanhou-nos em
sentido contrário, e levou-nos com ela enquanto levantava – para o alto – para
o alto – como para o céu. Nunca teria acreditado que qualquer onda pudesse
erguer-se tão alto. Em seguida começamos a descer numa varredura curva,
deslizando e mergulhando, o que me fez sentir nauseado e tonto, como se
estivesse despencando, num sonho, do cume de uma montanha. Mas enquanto
estivemos no alto da onda, olhei em volta de relance – e essa única e rápida
visão foi totalmente suficiente. Vi a nossa exata posição naquele instante. O
vórtice do Moskoe-Ström estava a um quarto de milha a nossa frente – mas não
mais semelhante ao Moskoe-ström de todos os dias; o turbilhão que você via
agora era como uma levada de moinho. Se eu não tivesse certeza de onde
estávamos, e o que nos esperava, não teria reconhecido aquele local. Ao vê-lo,
fechei horrorizado e involuntariamente os olhos. Colavam-se as pálpebras como
num espasmo.
Não
havia ainda passado dois minutos até sentirmos, de repente, que as ondas
baixavam e estávamos envoltos em espuma. O barco dera violenta meia volta para
bombordo, e então precipitara-se como um raio para a nova direção. Nesse
instante o ruidoso estrépito das águas foi completamente abafado por um
guinchar estridente – um som que você poderia imaginar dado pelas válvulas de
muitos milhares de navios, que deixassem escapar ao mesmo tempo seu vapor.
Estávamos agora no cinturão de corrente que circula sempre o vórtice; e eu
naturalmente pensava que a qualquer momento ele iria nos atirar ao fundo abismo
- o qual podíamos apenas vislumbrar em virtude da espantosa velocidade com que
éramos projetados. O barco não parecia de fato afundar na água, mas deslizar como
uma bolha de ar sobre a superfície. Seu lado de estibordo voltado para o
turbilhão, e à bombordo levantava-se o mundo do oceano que havíamos deixado.
Erguia-se como uma gigantesca parede retorcida entre o horizonte e nós.
Pode
parecer estranho, mas agora, quando estávamos justamente nas mandíbulas do
abismo, sentia-me menos agitado do que quando estávamos somente nas
proximidades. Entranhada na mente a falta de esperança, livrei-me em grande
parte do terror que de início me abatia. Suponho ter sido o desespero que
deixara os meus nervos tensos.
Pode
ser tomado por bravata – mas o que digo ao senhor é verdadeiro – comecei a
refletir sobre a coisa grandiosa que seria morrer em tais circunstâncias, e
quanta tolice existira da minha parte em atribuir tamanha consideração a algo
insignificante como minha existência individual, diante daquela maravilhosa
manifestação do poder de Deus. Devo admitir haver corado de vergonha quando tal
ideia atravessou o meu espírito. Após alguns momentos apossou-se de mim a mais
aguda curiosidade relacionada com o próprio vórtice. Sentia explicitamente um
desejo de explorar suas profundezas, mesmo tendo certeza do custo desse
sacrifício; e o pesar que mais me atribulava era o de nunca poder contar aos
velhos companheiros em terra sobre os mistérios que iria ver. Essas, sem
dúvida, eram fantasias singulares para ocupar a mente de um homem em situação
de tal extremidade – e desde então muitas vezes tenho pensado que as revoluções
do barco em torno do abismo devem me ter deixado um tanto zonzo.
Houve
outra circunstância que facilitou o restabelecimento de meu autocontrole: foi o
cessar do vento, que não nos podia alcançar na presente situação – pois, como o
senhor pode ver por si mesmo, o cinturão de corrente é consideravelmente mais
baixo que o nível geral do oceano, e esse de que falo agora erguia-se como uma
torre acima de nós, um negro, alto, montanhoso espinhaço. Se o senhor nunca
esteve no mar por ocasião de uma forte tempestade, não pode formar uma ideia da
confusão da mente ocasionada pela ação conjunta do vento e de jatos de espuma.
Eles cegam, ensurdecem, e asfixiam você, e anulam toda capacidade de ação e
reflexão. Mas, em grande medida, estávamos livres agora desses incômodos –
assim como a criminosos condenados à morte numa prisão são permitidas pequenas
indulgências, recusadas a eles enquanto a condição é ainda incerta.
Quantas
vezes fizemos o circuito em volta do cinturão é impossível dizer. Giramos e
giramos por talvez uma hora, voando antes que flutuando, penetrando
gradualmente mais e mais o centro do remoinho, e ficando sempre mais próximo e
mais próximo de sua terrível borda interior. Durante todo esse tempo nunca
deixei de segurar com firmeza a cavilha de ferro. Meu irmão estava na popa,
agarrado a uma pequena barrica vazia que, com toda certeza, havia sido
fortemente amarrada a um gradeado na curva de ré, e era a única coisa de bordo
que não fora varrida para o mar quando, logo na primeira investida, a
tempestade se abateu sobre nós. Ao chegarmos na proximidade da orla do abismo,
ele se desprendeu da barrica e veio na direção da cavilha, da qual, na agonia
de seu terror, tentou afastar as minhas mãos, como se o anel de ferro não fosse
largo o suficiente para permitir que ambos nos agarrássemos com segurança.
Nunca senti desgosto mais profundo do que quando o vi praticar tal ação – ainda
que soubesse que ele estava louco quando fez aquilo – um louco delirante cheio
de pavor. Não me preocupei, contudo, em disputar o lugar com ele. Fosse ele ou
eu quem agarrava o anel de ferro, eu sabia não fazer nenhuma diferença; assim,
deixei-o onde estava e fui para a popa agarrar-me ao barril. Não houve grande
dificuldade nisso, pois a sumaca circulava de modo bastante regular e sobre uma
quilha nivelada – apenas balançando para lá e para cá entre as imensas
convulsões e efervescências do vórtice. Mal me firmara na nova posição, quando
sentimos uma formidável guinada para boreste, e despenhamos a prumo no abismo.
Murmurei uma prece rápida a Deus, e pensei que tudo havia acabado.
Enquanto
sentia a nauseante vertigem da descida, instintivamente me agarrei com mais
força ao barril, e fechei os olhos.
Por
alguns segundos não ousei abri-los – enquanto esperava a destruição instantânea
e conjeturava por que não estava já em luta mortal com as águas. Porém,
decorreram instante após instante e eu continuava vivo. A sensação de queda
cessara; e o movimento do barco mais se parecia como havia sido antes, quando
circulávamos no cinturão de espumas, exceto que agora dava a impressão de
navegar em linha reta. Enchi-me de coragem e olhei uma vez mais para o
espetáculo.
Não
vou esquecer nunca as sensações de medo, horror, e admiração pelo que pude
olhar a minha volta. O barco parecia estar suspenso, como por mágica, a meio
caminho para baixo, na superfície interior de um funil de enorme
circunferência, prodigioso em profundidade, e cujos lados perfeitamente
brunidos poderiam dar a ilusão de ébano, não fosse a estonteante rapidez de seu
giro, e o vislumbre e pálida radiância que, como os raios da lua cheia, eram
emitidos daquela fenda circular entre nuvens, da qual já falei, e que se
espraiavam num fluxo de áurea beleza ao longo das paredes negras, e iam
desfalecer lá longe, embaixo, no desvão mais íntimo do abismo.
De
início estava muito confuso para observar qualquer coisa com exatidão. Tudo o
que eu podia ver era a geral explosão de terrificante esplendor. Quando me
recuperei um pouco, no entanto, meu olhar dirigiu-se instintivamente para
baixo. Nessa direção eu conseguia obter um raio de visão desimpedido da maneira
como a sumaca assemelhava pendurar-se na superfície inclinada do poço. A quilha
permanecia completamente nivelada – ou seja, o convés do barco se achava em
plano paralelo com o plano da água – mas este último inclinava-se num ângulo
maior que quarenta e cinco graus, de modo que parecíamos navegar pendendo sobre
um dos bordos. Não pude deixar de observar, apesar disso, que não tinha maior
dificuldade de agarrar ou ficar de pé nessa situação do que se tivesse num
plano horizontal; e isso, suponho, se devia à velocidade com que circulávamos.
Os
raios da lua pareciam buscar a base mesma do profundo abismo; mas eu nada podia
ver distintamente, por causa de um denso nevoeiro que envolvia tudo, e sobre o
qual pairava um magnífico arco-íris, como aquela estreita e vacilante ponte que
os muçulmanos dizem ser a única senda entre o Tempo e a Eternidade. Esse
nevoeiro, ou poeira de espuma, era sem dúvida ocasionado pela colisão
estrepitosa das grandes paredes do funil, ao se encontrarem todas lá embaixo –
mas não ousarei tentar descrever o estrondo que subia aos céus, vindo dali.
Nosso
primeiro deslizamento para o abismo propriamente dito, vindos do cinturão de
espuma acima, havia nos conduzido a uma grande distância para baixo na
vertente; mas a descida ulterior não teve absolutamente a mesma proporção.
Varrendo em círculos – com movimento não-uniforme – mas em estonteantes
oscilações e sacudidelas, que às vezes nos enviavam somente a umas poucas
centenas de jardas - e de outras vezes faziam-nos correr quase que o circuito
completo do vórtice. A cada revolução, o avanço que fazíamos para baixo era
vagaroso, mas bastante sensível.
Olhando
em torno sobre o vasto deserto líquido de ébano na superfície do qual éramos
transportados, percebi que a nossa embarcação não era o único objeto no abraço
do vórtice. Tanto acima como abaixo de nós eram visíveis fragmentos de navios,
volumosos blocos de traves e troncos de árvores, com muitos objetos bem
menores, tais como peças de mobiliário, caixotes quebrados, barris e aduelas.
Já descrevi a curiosidade não-natural que substituíra os meus primitivos
terrores. Esta parecia aumentar à medida em que me aproximava mais e mais de
meu horrível destino. Agora comecei a espiar, com um estranho interesse, as
inumeráveis coisas que flutuavam em nossa companhia. Devia estar delirando –
pois encontrava mesmo motivo de divertimento especular sobre as velocidades
relativas dessas coisas em suas várias descidas na direção da espuma lá
embaixo. “Este abeto”, lembro ter dito a mim mesmo certa ocasião, “será com
certeza a próxima coisa a dar o terrificante mergulho e desaparecer” – e ficava
desapontado ao verificar que os destroços de um navio mercante holandês
ultrapassava-o e afundavam antes. Por fim, após diversas estimativas dessa
natureza, e ficando decepcionado em todas – esse fato – o fato dos invariáveis
erros de cálculo – levou-me a um conjunto de reflexões que fizeram minhas
pernas tremerem de novo e meu coração bater pesadamente uma vez mais.
Não
era um novo terror que me afetava dessa forma, mas o despontar mais excitante
de uma esperança. Tal esperança surgiu parcialmente da memória, e parcialmente
da observação atual. Lembrei-me da grande variedade de coisas espalhadas pela
costa de Lofoden, que tinham sido absorvidas e depois atiradas de volta pelo
Moskoe-ström. Sem a menor dúvida, a maioria dos objetos havia sido despedaçada
da maneira mais extraordinária – tão esfolados e encarquilhados eram eles que
pareciam estar cheios de pontas e lascas – mas então, distintamente, recordei
que havia alguns que não se mostravam em absoluto desfigurados. Ora, eu não
podia explicar tal diferença, a não ser pela suposição de que os fragmentos
esmagados eram os únicos que tinham sido completamente absorvidos – que os
outros haviam entrado no vórtice num período mais tardio da maré, ou, por
alguma razão, haviam descido tão lentamente depois de entrarem, que não
alcançaram o fundo antes do regresso do fluxo, ou do refluxo, conforme o caso.
Imaginei a possibilidade, nas duas situações, que eles de novo, em giros,
tivessem sido arremessados para cima, à superfície do oceano, sem sofrer o
destino daqueles que afundaram mais cedo, ou foram absorvidos com maior
rapidez.
Fiz,
também, três importantes observações. A primeira foi que, em regra geral,
quanto maiores os corpos, mais rápida era a descida; a segunda, que entre duas
massas de igual extensão, uma esférica, e a outra de qualquer outra forma,
a superioridade na velocidade da descida ficava com a esférica; a terceira, que
entre duas massas de igual tamanho, uma cilíndrica, e a outra de qualquer outra
forma, a cilíndrica era absorvida mais lentamente. Desde que escapei, mantive
várias conversas a respeito desse assunto com um velho mestre-escola do
distrito; e foi com ele que aprendi o significado das palavras “cilindro” e
“esfera”. Ele me explicou – embora eu tenha esquecido a explanação – como
aquilo que eu observara era, de fato, consequência natural das formas dos
fragmentos flutuantes – e mostrou-me porque acontecia que um cilindro,
flutuando num remoinho, oferecia maior resistência à sucção, e era arrastado
com maior dificuldade do que um corpo igualmente volumoso, mas de outra forma
qualquer[1]
Havia
uma circunstância surpreendente que ofereceu grande reforço a essas
observações, tornando-me ansioso para conhecer-lhe a razão, e era que, a cada
revolução, passávamos por algo semelhante a um barril, ou mesmo uma verga ou o
mastro de um navio, enquanto muitas outras coisas, que estavam no nosso nível
quando abri pela primeira vez os olhos para ver os prodígios do vórtice, agora
estavam acima de nós, e pareciam haver-se movido muito pouco da sua posição
original.
Não
hesitei por mais tempo sobre o que fazer. Decidi amarrar-me com firmeza ao
barril de água sobre o qual eu me agarrava, cortar o cabo que o prendia à
quilha, e atirar-me com ele no mar. Tentei atrair a atenção de meu irmão por
sinais, apontei para o barril que vinha flutuando próximo de nós, e fiz o que
estava em meu poder para que ele entendesse o que eu pretendia realizar.
Imaginei finalmente que ele havia compreendido o meu plano – mas, se foi este o
caso ou não, ele sacudiu a cabeça desesperadamente, e recusou mover-se da sua
posição junto à cavilha de ferro. Era impossível alcançá-lo; a situação de
emergência não admitia atraso; e assim, num esforço doloroso, resignei-me
deixá-lo ao seu destino, amarrei-me ao barril com as cordas que o prendiam à quilha,
e precipitei-me com ele para o mar, sem outro momento de hesitação.
O
resultado foi precisamente o que eu esperava que fosse... Como eu mesmo é quem
agora conto essa história ao senhor – o senhor pode ver que de fato escapei – e
como o senhor já tem conhecimento da maneira como tal fuga foi efetivada, e
deve, portanto, saber por antecipação tudo o que direi em seguida – vou levar a
narrativa rapidamente à conclusão. Transcorrera aproximadamente uma hora, após
haver abandonado a sumaca, quando esta, tendo descido uma grande distância
abaixo de mim, deu três ou quatro violentos giros em rápida sucessão, e,
carregando com ela meu querido irmão, afundou verticalmente, de uma só vez e
para sempre, no caos de espuma lá embaixo. O barril ao qual eu estava amarrado
afundara muito pouco, mais ou menos a metade da distância entre o fundo do
vórtice e o ponto do qual saltei de bordo, antes de acontecer a grande mudança
que se deu no caráter do turbilhão. A inclinação dos lados do imenso funil foi
se tornando a cada momento menos íngreme. Os giros do remoinho eram
gradualmente menos violentos. Aos poucos, a espuma e o arco-íris desapareceram,
e o fundo do abismo parecia elevar-se lentamente. O céu estava claro, os ventos
amainaram, e a lua cheia mostrava-se resplandecente a oeste, quando me
encontrei na superfície do oceano, à plena vista das praias de Lofoden, e por
cima do lugar onde estivera o abismo do Moskoe-ström. Era a hora da calmaria –
mas o mar se elevava com ondas gigantescas, ainda sob os efeitos deixados pelo
furacão. Fui sendo carregado violentamente para o canal do Ström e, em poucos
minutos, precipitado costa abaixo até os “pesqueiros” dos pescadores. Um bote
me recolheu – esgotado de fadiga – e (agora que o perigo já passara) sem
palavras ante a lembrança do horror vivido. Os que me puxaram para bordo eram
velhos camaradas e companheiros diários – mas não me conheceram melhor do que
conheceriam um viajante do mundo dos espíritos. O meu cabelo, que tinha sido
negro como um corvo no dia anterior, estava tão branco como o senhor o vê
agora. Disseram também que a expressão de meu rosto havia mudado. Contei-lhes
minha história – não acreditaram nela. Conto-a agora ao senhor – e mal posso
esperar que o senhor ponha nela um crédito maior que os pescadores folgazões de
Lofoden.
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