SOMBRA... UMA PARÁBOLA - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe



SOMBRA... UMA PARÁBOLA
 Edgar Allan Pöe
Tradução: José Jaeger

E, ainda que eu caminhe através dos vales da Sombra...
Salmo de Davi

Vós, que me ledes, estais vivo; mas eu, que escrevo, há muito declinei em meu caminho para as regiões das sombras. Porque estranhas coisas ocorrerão e coisas secretas serão reveladas; e muitos séculos terão decorrido até que os homens leiam estas memórias. E, quando as virem, alguns não lhe darão crédito e outros irão duvidar; contudo, uns poucos encontrarão razões para meditar sobre os caracteres aqui gravados com férreo estilete.

O ano tinha sido de terror e de sensações muito mais intensas que o terror, para as quais não existe nome sobre a terra. Pois se sucederam muitos prodígios e muitos sinais e, em toda parte, sobre o mar e sobre a terra, estendiam-se as asas da Peste. Para aqueloutros, doutos na leitura das estrelas, não era estranho que os céus revelassem uma fisionomia de desgraças; mas, para mim, o grego Óinos, e para os meus companheiros, era evidente que havia chegado a alternação daquele ciclo de setecentos e noventa e quatro anos em que, à entrada de Áries, o planeta Júpiter cai em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico dos céus, se muito não me engano, era visível não apenas no orbe físico da Terra, mas, igualmente, nas almas, na imaginação e excogitações da humanidade.

Sentados em volta de algumas garrafas de vinho tinto de Quios, na sombria cidade de Ptolomais, formávamos nós, à noite, um grupo de sete pessoas. Não havia, em nossa sala, outra entrada senão a enorme porta de bronze, que havia sido fundida pelo artista Corino; era de rara compleição e estava trancada por dentro. No sombrio aposento, negras cortinas alijavam-nos da visão da Lua, das fúnebres estrelas e das ruas desertas. Mas o presságio e a lembrança do mal não podiam ser excluídos. Em torno de nós e dentro de nós coisas havia que não podem ser descritas coisas materiais e espirituais: uma atmosfera pesada, uma sensação de sufocamento, de ansiedade e, sobretudo, esse terrível estado de existência em que os nervos experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, ao passo em que as faculdades da mente estão inativas . Um peso mortal nos afligia. Caía sobre os nossos corpos, sobre os móveis e sobre os copos. E tudo era depressivo e tenebroso, salvo as chamas de sete lâmpadas de ferro que alumiavam a nossa orgia: alçando-se em altos e delgados espectros de luz, permaneciam elas ardendo, pálidas e imóveis. E no espelho que o seu reluzir formava sobre a mesa redonda de ébano, em torno da qual nos reuníamos, cada um contemplava a palidez de seu próprio semblante e reparava no inquieto brilho dos olhares de seus companheiros. Entretanto, ríamos. E estávamos alegres ao nosso próprio modo histérico. E cantávamos as canções de Anacreonte, que eram ensandecidas, e bebíamos muito, ainda que o vinho púrpura lembrasse-nos a cor do sangue. Porque havia outro companheiro ali na sala: o jovem Zoilo jazia morto, estendido e amortalhado, como se fosse o gênio e o demônio da cena. Mas... Ah! Ele não participava de nossa alegria, salvo o seu rosto, convulsionado pela peste; e seus olhos, nos quais a Morte apenas havia apagado a metade do fogo da pestilência, pareciam ter um certo interesse no nosso júbilo, o mesmo júbilo que os mortos sentem por aqueles que irão morrer. Mas ainda que eu, Óinos, sentisse que os olhos do defunto estavam fixos em mim, constrangia-me a não perceber a amargura de sua expressão, e, enquanto contemplava fixamente as profundezas do espelho de ébano, em voz alta e sonora cantava as canções dos filhos de Téos. Mas, pouco a pouco, minhas canções foram cessando e seus ecos, perdendo-se nas sombrias cortinas da sala, minguaram até se tornarem inaudíveis, e desvaneceram-se completamente. Mas eis que dentre aquelas cortinas, onde os ecos do canto morriam, penetrou uma sombra obscura e indefinida. Uma sombra como a da Lua quando se inclina no céu e assume a fisionomia de um homem; mas aquela não era a sombra de um homem, nem de Deus, nem de um deus da Grécia ou da Cadeia, ou mesmo do Egito. E a sombra postava-se sobre a entrada de bronze, por baixo do arco da porta, sem um movimento, sem dizer palavras, e ali, imóvel, deixou-se ficar. Se bem me recordo, os pés do amortalhado Zoilo voltavam-se para a porta na qual a sombra descansava. Mas nós, os sete ali reunidos, tendo visto a sombra, no momento em que ela avançava sobre os cortinados, não nos atrevemos a contemplá-la fixamente, senão baixamos os olhos e miramos as profundezas do espelho de ébano. Finalmente eu, Óinos, balbuciando em voz baixa, perguntei à sobra qual a sua morada e seu nome. E a sombra respondeu:

Eu sou a SOMBRA e a minha morada jaz nas proximidades das Catacumbas de Ptolomais, junto às lúgubres planícies de Helusão, que margeiam o imundo canal de Caronte.

Então, levantamo-nos os sete de nossas cadeiras, tomados de horror, trêmulos, pálidos, porque o tom de voz da sombra não era o de um único ser, mas o de uma multidão de seres; e, variando em suas modulações, de uma sílaba para outra, penetrava obscuramente em nossos ouvidos, com inflexões familiares, e bem lembradas, dos muitos milhares de amigos que já morreram.


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