A VOLTA DE IMREY - Conto Clássico de Terror - Rudyard Kipling
A VOLTA DE IMREY
Rudyard
Kipling
(1865
– 1936)
Tradução
de Alfredo Ferreira
(1865
– 1942)
The
doors were wide, the story saith,
Out
of the night came the patient wraith.
He
might not speak, and he could not stir
A
hair of the Baron's miniver.
Speechless
and strengthless, a shadow thin,
He
roved the castle to find his kin.
And
oh! 'twas a piteous sight to see
The
dumb ghost follow his enemy !
The Baron
Imray
levara a cabo o impossível. Sem avisar, sem motivo concebível, em plena
mocidade, no limiar da carreira, preferira desaparecer do mundo. Quer dizer, da
pequena estação indiana onde vivia.
Na
véspera, estava vivo, com saúde, feliz e em grande evidência entre as mesas de
bilhar de seu clube. Na manhã seguinte, desaparecera e nenhuma busca pôde
revelar onde estava. Sumira dos lugares habituais. Não aparecera no escritório
na hora costumeira e seu docar[1]
não fora visto nas vias públicas. Por isso e porque estava embaraçando, em
proporção microscópica, a administração do império indiano. Esse império parou um
momento microscópico para investigar o destino de Imray. Dragaram lagoa,
sondaram poço, enviaram telegrama em toda a extensão das ferrovias e ao porto
marítimo mais próximo, 2000km afastado dali, mas Imray não apareceu no fundo
das caçambas de dragagem, nem na extremidade das linhas telegráficas.
Desaparecera e ninguém mais o viu no lugar. Então o serviço do grande império
indiano seguiu adiante, porque não podia ficar atrasado, e Imray de um homem
passou a ser um mistério, uma dessas coisas sobre as quais as pessoas falam
durante um mês nas mesas dos clubes e depois esquecem totalmente. Suas
espingardas, cavalos e carruagens foram leiloados. O oficial superior escreveu
uma carta absurda à mãe dele, dizendo que Imray desaparecera de maneira
absoluta, e o bangalô onde ele morava permaneceu vazio.
Depois
de se terem passado três ou quatro meses de calor escaldante, meu amigo
Strickland, da polícia, fez acordo com o proprietário indiano para alugar o
bangalô. Isso foi antes de ficar noivo de senhorita Youghal (história já
contada noutra ocasião), e quando se dedicava a investigar a vida nativa. Sua
vida era bastante estranha, e os homens se queixavam de sua maneira e costume.
Havia sempre comida em casa, mas não havia hora certa para refeição. Comia em
pé — e andando de um lado a outro —qualquer coisa que encontrasse no bufê, e
isso não é bom para um ser humano. O equipamento doméstico se limitava a seis
rifles, três espingardas de caça, cinco selins e uma coleção de varas de pescar,
maiores e mais fortes que as de pescar salmão. Tudo isso ocupava a metade do
bangalô. A outra metade era reservada a Strickland e a Tietjens, uma enorme
cadela da raça rampur, que devorava diariamente a ração de dois homens. Ela se
fazia entender por Strickland com linguagem própria e sempre que perambulava
fora, e via coisas que poderiam destruir a paz de sua majestade a rainha
imperatriz, voltava a junto do dono, levando a informação. Strickland tomava
imediatamente providência, e o fim do trabalho significava transtorno, multa e prisão
a outras pessoas. Os nativos acreditavam que Tietjens era um espírito familiar
e a tratavam com a grande deferência nascida do ódio e do medo. Um quarto do
bangalô era reservado para seu uso exclusivo. Tinha um estrado para dormir, um
cobertor e uma selha d’água. Quando, à noite, alguém entrava no quarto de
Strickland, o seu costume era jogar o intruso ao chão e o segurar, latindo, até
alguém chegar com luz. Strickland lhe devia a vida. Estava na fronteira,
buscando um assassino local, que veio na madrugada cinzenta para o enviar muito
além das ilhas Andamã. Tietjens agarrara o homem quando ele se arrastava a dentro
da tenda de Strickland com um punhal entre os dentes. Depois de se provar o
propósito assassino aos olhos da lei, foi enforcado. Desde aquela data,
Tietjens usara uma coleira de prata maciça e um monograma bordado em seu
cobertor, que era de lã de caxemira, porque Tietjens era uma cadela mimada.
Por
nada seria capaz de se separar de Strickland. Uma vez, quando ele estava doente
com febre, dera muito a fazer aos médicos, porque não sabia como tratar o dono
e não queria permitir que alguém o fizesse. Macarnaght, do serviço médico
indiano, teve de bater na cabeça da cadela com a coronha do revólver antes de
ela compreender que devia dar lugar aos que pretendiam ministrar quinino.
Pouco
depois de Strickland alugar o bangalô de Imray, meu serviço me levou até aquele
porto e, naturalmente, encontrando os alojamentos do clube cheios, fui me
hospedar na casa de Strickland. Era um bangalô confortável, com oito cômodos e
cuidadosamente coberto de colmo alcatroado para evitar goteira. Abaixo do
alcatrão do telhado corria um forro de pano que parecia um teto de estuque bem
caiado. O proprietário o pintara de novo quando Strickland alugara o bangalô.
Salvo os que sabem como são construídos os bangalôs indianos, ninguém
suspeitaria que acima do tecido do forro havia o escuro vão de três abas de
telhado, onde as vigas e a parte inferior do colmo alcatroado abrigavam toda
espécie de rato, barata, formiga e outras coisas imundas.
Tietjens
me recebeu na varanda com um latido semelhante às badaladas do sino da catedral
de São Paulo, pondo as patas em meus ombros para mostrar que estava contente em
me ver. Strickland procurara improvisar uma espécie de refeição que chamou de
almoço e, imediatamente depois de a engolir, saíra a tratar dos negócios.
Fiquei sozinho com Tietjens e meus negócios. O calor sufocante do verão cedera
e se transformara no calor úmido da chuva. Não havia viração no ar aquecido,
mas a chuva caía grossa sobre a terra e erguia uma névoa azulada ao respingar.
Os bambus, abacateiros, sapotizeiros e mangueiras, no jardim, estavam imóveis,
enquanto a chuva quente escorria sobre os troncos e as rãs começavam a coaxar
entre a sebes de aloés.
Um
pouco antes do escurecer, quando a chuva estava mais forte, sentei-me na
varanda do fundo, escutando a chuva encachoeirar das biqueiras do telhado.
Coçava-me, porque estava cheio de brotoeja. Tietjens veio a mim e pousou a
cabeça em meu regaço, parecendo muito triste. Por isso, dei-lhe biscoito quando
o chá ficou pronto, e tomei chá na varanda do fundo por causa do ligeiro
frescor que se sentia ali. Os cômodos da casa estavam escuros às minhas costas.
Podia sentir o cheiro da coleção de arreio de Strickland e do óleo das
espingardas, e não tinha vontade de ir me sentar no meio daquelas coisas. Meu
criado se aproximou, na luz crepuscular, com a roupa de linho colada ao corpo
ensopado e disse que chegara um cavalheiro que desejava falar com alguém. A
contragosto, mas somente por causa da escuridão dos quartos, fui à sala de
visita vazia, dizendo ao criado para trazer-me uma luz. Com ou sem um visitante
esperando, acreditei ver um vulto perto da janela, mas, quando chegou a luz,
nada havia além da chuva grossa e do cheiro de terra molhada. Insinuei ao
criado que não fora muito esperto, e voltei à varanda para conversar com Tietjens,
que saíra à chuva, e a muito custo consegui fazê-la voltar para junto de mim,
mesmo oferecendo biscoito e torrão de açúcar. Strickland voltou ensopado até os
ossos, quase na hora do jantar. A primeira coisa que disse foi:
—
Alguém esteve aqui?
Expliquei,
desculpando-me, que meu criado me fizera ir até a sala de visita com rebate
falso ou que algum desocupado tentara visitar Strickland, mas depois, mudando
de ideia, se retirara sem deixar o nome. Strickland mandou servir o jantar sem
fazer comentário, e, visto que era um jantar de verdade, inclusive com toalha
branca posta, sentamo-nos à mesa.
Às
9h Strickland quis se deitar e eu também estava cansado. Tietjens, que estivera
deitada sob a mesa, se levantou e foi à varanda mais abrigada assim que o dono
seguiu para o quarto, que era junto do confortável aposento preparado para
Tietjens. Se uma esposa quisesse dormir fora com aquela chuva forte, não teria
importância, mas Tietjens era uma cadela, portanto, um animal melhor. Olhei
para Strickland, esperando vê-lo chamar a cadela com um assobio. Sorriu de
maneira estranha, como um homem sorriria depois de revelar uma tragédia
doméstica.
—
Ela faz isso desde que me mudei para cá. Deixemo-la aí.
A
cadela era de Strickland, por isso nada observei, mas sentia tudo o que
Strickland sofria por ser assim desprezado. Tietjens acampou no lado de fora da
janela de meu quarto e eu ouvia um trovão após o outro rolar sobre o colmo do
telhado e morrer longe. Os relâmpagos se espalhavam no céu como um ovo jogado
se espalha numa porta de celeiro, mas a luz era azul-claro e não amarela e,
olhando através de minhas cortinas de bambu entreabertas, eu podia ver a grande
cadela em pé, desperta, na varanda, com o pelo das costas eriçado e as patas
rígidas, tão esticadas como os cabos de aço de suspensão de uma ponte pênsil.
Nos intervalos muito curtos da trovoada, eu tentava dormir, mas parecia que
alguém precisava de mim urgentemente. Fosse quem fosse, tentava me chamar pelo
nome, mas sua voz não era mais que rouco sussurro. A trovoada acabou, e
Tietjens foi ao jardim e uivou ao luar nascente. Alguém tentou abrir a minha
porta, andou dum lado a outro na casa, e parou, respirando alto, nas varandas.
Exatamente quando eu ia adormecendo, pareceu-me ouvir um forte martelar e brados
sobre minha cabeça ou à porta.
Corri
ao quarto de Strickland e perguntei se estava doente e se me chamara. Estava
deitado na cama, meio vestido, com o cachimbo entre os dentes. Disse:
—
Imaginei que virias. Esteve caminhando na casa, há pouco?
Expliquei
que vagueara na sala de jantar, na sala de fumo e mais dois ou três cômodos.
Riu e me disse que voltasse à cama. Voltei e dormi até na manhã, mas, ao longo
de todos meus sonhos inquietos, tinha a consciência de que estava fazendo uma
injustiça a alguém não acendendo a seu desejo. O que eram esses desejos, não
poderia dizer, mas alguém, ondeante, sussurrante, tateante, oculto e vago, me
censurava por minha moleza e, meio acordado, eu ouvia o uivo de Tietjens no
jardim e o crepitar da chuva.
Vivi
naquela casa dois dias. Strickland ia ao escritório diariamente, deixando-me
sozinho, durante oito ou dez horas, com Tietjens como única companhia. Enquanto
a luz do dia durava, eu me sentia tranquilo e Tietjens também. Mas, no
crepúsculo, eu e ela íamos ao terraço do fundo e procurávamos mútua companhia.
Estávamos sozinhos na casa, que parecia entregue a um habitante com quem eu não
desejava interagir. Nunca o via, mas podia ver as cortinas das portas entre os
diversos cômodos se agitarem à sua passagem. Podia ouvir as cadeiras estalarem
e os bambus se distenderem como se um peso acabasse de sair de cima. E podia
sentir, quando ia buscar um livro na sala de jantar, que alguém estava
esperando, na sombra da varanda da frente, eu me retirar. Tietjens tornava o
crepúsculo mais excitante, olhando os quartos escuros com os pelos eriçados, e
seguindo com o olhar os movimentos de algo que eu não podia ver. Nunca entrava
nos quartos, mas os olhos se moviam atentamente. Isso era suficiente. Só quando
meu criado vinha espevitar as lâmpadas, e deixar tudo claro e habitável, ela
vinha ara junto de mim, e se sentava sobre os quartos traseiros, observando um
homem invisível que se movia atrás de meus ombros. Os cachorros são
companheiros alegres.
Expliquei
a Strickland, com a maior delicadeza possível, que arranjaria alojamento para
mim no clube. Apreciava muito sua hospitalidade, gostava de suas espingardas e
varas de pescar, mas não me sentia bem com a atmosfera da casa. Ele ouviu
calado até o fim e sorriu muito cansadamente, mas sem mofa, porque é um homem
que sabe compreender as coisas.
—
Fica. Descobre o que significa isso. Tudo o que me disseste eu já sabia desde
que aluguei o bangalô. Fica e espera. Tietjens já me abandonou. Queres fazer o
mesmo?
Eu
já o ajudara num pequeno caso relacionado cum ídolo pagão que me levara às
portas dum hospício, e não queria ajuda-lo mais em novas aventuras. Era um
homem que procurava as situações desagradáveis com a mesma facilidade com que
um homem normal vai a um jantar.
Portanto,
expliquei, o mais claramente possível, que gostava muito dele e que teria muito
prazer em vê-lo durante o dia, mas que não desejava dormir sob seu teto. Isso
era depois do jantar, quando Tietjens saíra para se deitar na varanda.
—
Por Deus! Não me admiro! — disse, com os olhos fitos no pano do forro — Olha
aquilo!
As
caudas de duas serpentes castanhas pendiam entre o forro e a cornija da parede.
Lançavam grandes sombras à luz das lâmpadas:
—
Se tens medo de víbora — disse ele —, é natural.
Tenho
ódio e medo das serpentes porque, fitando-se os olhos duma cobra, ver-se-á que
se sabe tudo e mais algo sobre o mistério da queda do homem, e que se sente toda
a satisfação que o Diabo sentiu quando Adão foi expulso do Paraíso. Além do
mais, a picada é, em geral, fatal, e as víboras costumam enrolar-se nas pernas
das calças das pessoas.
—
Deveria mandar fazer uma limpeza no colmo. Dá-me um caniço de pesca para
derrubá-las. Elas se esconderão entre as vigas do telhado e não posso suportar
a ideia de ficar com essas víboras lá em cima. Subirei ao forro. Caso eu as
derrube, fica de lado e quebra-lhes a espinha com a vareta de limpar
espingarda.
Eu
não tinha vontade de ajudar Strickland naquele serviço, mas peguei a vareta e
esperei na sala de jantar, enquanto Strickland trazia uma escada de jardineiro
da varanda e a encostava à parede do aposento. As caudas das víboras se
agitaram e desapareceram. Ouvíamos o ruído seco dos corpos compridos fugindo
sobre o pano frouxo do teto. Strickland pegou uma lâmpada, enquanto eu tentava
fazê-lo ver claramente o perigo de caçar víbora de telhado entre um pano de
forro e a cobertura de colmo, fora a possibilidade de danificar a propriedade
alheia rasgando o pano do forro.
—
Tolice! Com certeza estarão escondidas junto das paredes, sob o pano. Os
tijolos são frios demais para elas e o que lhes agrada é justamente o calor da
sala.
Pôs
a mão no canto do forro e o desprendeu da cornija. Cedeu com grande barulho de
pano rasgado e Strickland meteu a cabeça na abertura, espreitando dentro do vão
escuro das vigas do telhado. Apertei os dentes e levantei a vareta, porque não
tinha idéia do que viria do alto.
—
Hum! — Disse Strickland, cuja voz rolou e ecoou no telhado. — Há espaço para
uma série de cômodo aqui no alto e alguém os ocupa!
—
Víboras?
—
Não. É um búfalo. Dá-me dois pedaços mais grossos de uma vara de pescar que o
empurrarei. Está em cima da viga mestra do telhado.
Dei
a vareta.
—
Que ninho de mocho e serpente! Não admira que as víboras vivam aqui — disse,
subindo mais a dentro do forro. Podia ver o ombro manejando a vareta. — Sai
daí, sejas lá quem fores! Cuidado em baixo! Vai cair!
Vi
o forro de pano, mais ou menos a meio da sala, se esticar com o peso de objeto
volumoso, que o forçava a baixo, em direção à lâmpada acesa sobre a mesa. Puxei
rapidamente a lâmpada para um lugar mais seguro e recuei um pouco. Então o pano
se desprendeu das paredes, rasgou, abriu ao meio e deixou cair sobre a mesa
algo ao qual não ousei olhar, até que Strickland desceu a escada e veio para
junto de mim.
Não
disse grande coisa, porque era homem de poucas palavras, mas pegou a ponta
solta da toalha da mesa e a dobrou sobre o despojo caído. Disse, pousando a
lâmpada:
—
Parece que nosso amigo Imray voltou para casa. Oh! Também vieste. Não foi?
A
toalha se agitou de leve e uma pequena víbora escorregou ao chão, onde foi
cortada ao meio por uma pancada do caniço. Sentia-me mal demais para comentar
algo digno de menção.
Strickland
estava meditando e se serviu uma bebida. O que estava sob a toalha não deu mais
sinal de vida. Perguntei:
—
É Imray?
Levantou
a ponta da toalha um instante e olhou.
—
É Imray e tem a garganta cortada de orelha a orelha.
Então
dissemos, ao mesmo tempo, a nós mesmos:
—
Era por isso que andava vagueando na casa!
Tietjens,
no jardim, começou a latir furiosamente. Um momento depois abriu, com o
focinho, a porta da sala de jantar. Farejou e ficou imóvel. O pano rasgado do
forro estava pendurado quase até a altura da mesa, e havia pouco espaço para
nos afastarmos do despojo.
Tietjens
avançou e se sentou. Os dentes surgiram sob as fuças arreganhadas e as patas da
frente ficaram rígidas. Olhou o dono.
—
É um caso complicado, minha velha. Um homem não sobe ao forro de seu bangalô para
morrer e não conserta o forro depois. Pensemos no caso.
—
Pensemos, mas nalgum lugar fora daqui.
—
Excelente ideia. Apaga as lâmpadas. Vamos a meu quarto.
Não
apaguei as lâmpadas. Fui ao quarto de Strickland na frente e deixei que se
encarregasse daquele serviço. Depois me seguiu, acendemos os cachimbos e
pensamos. Strickland pensou. Eu fumava desesperadamente porque estava com medo.
—
Imray voltou — disse Strickland. — A questão agora é: quem matou Imray? Não
fales! Tenho uma ideia. Quando aluguei este bangalô, fiquei com muitos dos
criados de Imray, que era franco e inofensivo. Não era?
Concordei,
embora o despojo que estava sob a toalha não parecesse uma coisa nem outra.
—
Se eu chamar todos os criados, ele se unirão e mentirão como arianos. O que
sugeres?
—
Chamá-los um a um.
—
O primeiro irá correndo contar a novidade a todos os companheiros. Devemos
segrega-los. Achas que teu criado sabe algo sobre o caso?
—
Pode ser, mas é improvável. Só está aqui há dois ou três dias. Qual é tua ideia?
—
Não sei dizer. Como o homem escolheu o lado de cima do forro?
Ouvimos
uma tosse forte do lado de fora da porta do quarto de Strickland. Isso
significava que Bahadur Khan, seu camareiro, acordara e queria ajudar
Strickland a se deitar.
—
Então. Está uma noite muito quente. Não é?
Bahadur
Khan, um grande maometano com 1,95m de altura, usando turbante verde, disse que
estava uma noite muito quente, mas estava a cair muita chuva, a qual, por graça
de sua honra, traria alívio à terra. Strickland disse, descalçando as botas:
—
Assim será, se deus quiser. Tenho ideia, Bahadur Khan, de que trabalhas para
mim, sem merecer censura, há muito tempo, desde que entraste a meu serviço.
Quando foi isso?
—
O filho dos céus já esqueceu? Foi quando Imray saíbe seguiu secretamente à
Europa sem avisar. E até eu entrei ao honrado serviço do protetor dos pobres.
—
E Imray saíbe foi à Europa?
—
Assim se diz entre os que eram seus criados.
—
E aceitarás seu serviço quando voltar?
—
Seguramente, saíbe. Era um bom amo e tratava bem os dependentes.
—
Isso é verdade. Estou muito cansado, mas caçarei cabrito-montês amanhã. Dá-me o
pequeno rifle que costumo usar para cabrito montês. Está naquela caixa.
O
homem se curvou sobre a caixa e entregou os canos, a culatra e a coronha a
Strickland, que montou a arma, bocejando preguiçosamente. Depois estendeu a mão
à caixa de arma, pegou um cartucho grosso e o meteu na culatra da carabina 360.
—
E Imray saíbe foi à Europa secretamente! Isso é muito estranho, Bahadur Khan.
Não achas?
—
O que sei do costume dos homens brancos, filho dos céus?
—
Bem pouco, na verdade. Mas ficarás sabendo mais em breve. Eu soube que Imray
saíbe voltou da longa jornada e jaz na outra sala, esperando seu servo fiel.
—
Saíbe!
A
luz da lâmpada brilhou nos longos canos da carabina quando foi erguida à altura
do peito largo de Bahadur Khan. Strickland disse:
—
Verás! Leva uma lâmpada. O patrão está cansado e precisa de ti. Vai!
O
homem segurou uma lâmpada e entrou na sala de jantar, seguido por Strickland,
que quase o empurrava com a boca rifle. Olhou um momento o vão escuro do forro
acima do pano rasgado. Depois, a víbora
contorcida no chão. E, por último, com o palor de cinza no rosto, o despojo sob
a toalha da mesa. Strickland perguntou depois duma pausa:
—
Viste?
—
Vi. Sou barro nas mãos do homem branco. O que farão os outros?
—
Enforcar-te dentro dum mês. O que mais poderiam fazer?
—
Por matá-lo? Saíbe, considera. Vivendo entre nós, seus criados, pousou os olhos
em meu filho, que tinha quatro anos. E o
enfeitiçou. Em dez dias morreu de febre. Meu filho!
—
O que disse Imray saíbe?
—
Disse que era um menino bonito, e lhe deu uma palmadinha na cabeça. Por isso
meu filho morreu. E por isso matei Imray saíbe, no crepúsculo, quando voltara
do escritório e estava dormindo. Depois o arrastei à viga do telhado e recompus
tudo atrás. O filho dos céus tudo sabe. Sou um escravo do filho dos céus.
Strickland
olhou para mim sobre os canos da arma e falou no mesmo tom empolado:
—
És testemunha do que ele disse? Matou.
Bahadur
Khan parecia cinzento à luz da única lâmpada: a necessidade de se defender se apresentou
logo. Olhou para Tietjens, deitada calmamente em sua frente.
—
Fui apanhado, mas o ofensor foi aquele homem. Lançou mau-olhado sobre meu filho
e o matei e escondi. Só os que são servidos pelos demônios saberiam o que fiz.
—
Foste esperto, mas deverias tê-lo amarrado à viga com corda. Porém, agora és
quem ficará pendurado numa corda. Ordenança!
Um
policial sonolento acudiu ao chamado de Strickland, seguido doutro. Tietjens se
sentou, muito quieta.
—
Leva-o ao posto policial. Há um caso contra ele.
—
Então serei enforcado? — perguntou Bahadur Khan, sem fazer tentativa para fugir,
mantendo os olhos cravados no chão.
—
Se há luz solar e água corrente, sim!
Bahadur
Khan recuou um grande passo, estremeceu e ficou imóvel. Os dois policiais
aguardavam nova ordem.
—
Ide!
—
Nunca! Mas irei muito depressa. Já sou um homem morto.
Levantou
o pé, e ao dedo mindinho, estava aferrada a cabeça da víbora meio morta,
firmemente agarrada na agonia da morte.
—
Venho duma raça de senhores da terra —Bahadur Khan disse, oscilando. — Seria
uma desonra subir ao patíbulo. Portanto, escolho este caminho. Lembrai-vos de
que as camisas de saíbe estão em perfeita ordem e que há um sabonete novo na
saboneteira. Meu filho foi enfeitiçado e matei o bruxo. Por que seria
enforcado? Minha honra está salva, e morro!
Após
uma hora, morreu como morrem os que são mordidos pela pequena karait castanha.
Os policiais o levaram e, também, o despojo que jazia sob a toalha da mesa, aos
competentes destinos. Seria necessário para esclarecer o desaparecimento de
Imray.
Strickland
disse, muito calmo, ao se enfiar na cama:
—
Isto é o século XIX. Ouviste o que aquele homem disse?
—
Ouvi. Imray cometeu um erro.
—
Apenas por não conhecer a natureza oriental e a coincidência de uma pequena
febre palustre. Bahadur Khan estava com ele havia quatro anos.
Estremeci.
Meu próprio camareiro estava comigo exatamente há quatro anos. Quando fui ao
quarto encontrei meu homem, impassível como a efígie de cobre duma moeda,
pronto para descalçar minhas botas, perguntei:
—
O que aconteceu a Bahadur Khan?
—
Foi mordido por uma víbora e morreu. O resto sabes.
—
Quanto sabias a respeito do caso?
—
Tanto quanto se pode inferir de alguém que vem no crepúsculo tomar satisfação.
—Devagar,
saíbe. Deixa-me puxar essas botas.
Ia
justamente adormecendo, exausto, quando ouvi Strickland gritar no outro lado da
casa:
—
Tietjens voltou ao lugar!
E
voltara mesmo. A grande mastim estava majestosamente deitada em seu estrado e
em seu cobertor, enquanto, no aposento contíguo, o forro de pano rasgado
balançava, roçando a mesa.
Ilustração de
William Strang.
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