SILÊNCIO — UMA FÁBULA - Conto Clássico Fantástico - Edgar Allan Poe


SILÊNCIO   UMA FÁBULA
Edgar Allan Pöe
(1809 – 1849)
Tradução: S. de E.


“A crista das montanhas dormita; o vale, o rochedo e a caverna são mudos.”
Álcman[1]


— Escuta-me — disse-me o Demônio, colocando-me a mão sobre a cabeça —, a região de que eu falo é uma região sombria da Lília, nas margens do rio Zaire.

E lá não há repouso nem silêncio.

As águas do rio são amarelentas e doentias, não correm para o mar, mas movem-se eternamente, sob o sol incandescente, com um movimento tumultuoso e convulsivo.

D’ambos os lados deste rio de lodoso leito, desdobra-se, numa extensão de muitas milhas, um deserto de gigantescos nenúfares, que gemem uns para outros naquela solidão, e estendem para o céu seus compridos pescoços de espectros, e meneam um lado e dum outro suas cabeças sempiternas.

E sai dentre deles um murmúrio confuso semelhante ao duma torrente subterrânea.

Mas o seu império tem uma fronteira, e essa fronteira é uma grande floresta, sombria, horrível. Nelas, como vagas em volta das Hébridas[2], as árvores pequenas estão em contínua agitação. E, contudo, não há vento no céu.  E as frondosas árvores primitivas agitam-se perpetuamente dum lado para o outro, produzindo um fragor estrepitoso.  E das suas altas copas côa-se, gota a gota, um eterno orvalho. E a seus pés raras flores venenosas contorcem-se em sonos agitados. E sobre os seus cimos, com um retumbante som, as nuvens pardacentas precipitam-se sempre para o oeste, até rolarem em catarata por detrás da parede inflamada do horizonte.

Contudo, não há vento no céu. E nas margens do rio Zaire não há repouso nem silêncio.

Chega a noite e a chuva cai; enquanto cai é chuva, mas depois de cair é sangue.

E eu estava no pântano, entre os grandes nenúfares, e a chuva caía sobre a minha cabeça — e os nenúfares gemiam uns para os outros com a solenidade da sua desolação.

E repentinamente a lua apareceu através da ligeira urdidura da fúnebre neblina e tinha cor de carmesim.  E o olhar caiu sobre um enorme rochedo cinzento que se elevava na margem do rio e que a luz da lua alumiava.

E o rochedo era cinzento, e sinistro, e muito alto — e o rochedo era cinzento.

Sobre a face de pedra tinham-lhe gravado caracteres; e eu caminhei através do pântano de nenúfares, até chegar próximo da margem, a fim de ler os caracteres gravados na pedra.

Mas não pude decifrá-los.

Ia voltar para o pântano quando a lua brilhou com um vermelho vivo; eu voltei-me e olhei e novo para o rochedo e para os caracteres; e esses caracteres formavam a palavra Desolação.

E olhei para cima, e sobre a crista do rochedo estava um homem, e ocultei-me por entre os nenúfares para espiar as ações do homem. E o homem tinha uma estatura colossal e majestosa, e, desde os ombros até os pés, cobria-o uma toga da antiga Roma.  E as formas do corpo eram indistintas, mas as feições eram semelhantes às de uma divindade; apesar do escuro manto da noite, da neblina, e da lua, e do orvalho, brilhavam as feições do homem.  E a sua fronte era bela e pensativa, e o seu olhar era perturbado pelo desassossego; e nas rugas das faces li as lendas do enfado, da fadiga, do desgosto pela humanidade, e uma grande aspiração para a solidão.

E o homem sentou-se no rochedo, e apoiou a cabeça na mão, e passeou o olhar para a Desolação.  Olhou para os arbustos sempre a agitarem-se, e as grandes árvores primitivas; olhou mais alto, o céu enuviado, e a lua carmesim. E eu estava escondido entre os nenúfares e observava as ações do homem.  E o homem estremecia na solidão; entretanto, a noite avançava, e ele continuava sentado no rochedo.

E eu entranhei-me nas profundezas longínquas do pântano, e caminhei pela flexível floresta de nenúfares, e chamei os hipopótamos que viviam nas profundidades do pântano. E os hipopótamos ouviram o meu chamamento, e vieram com os rinocerontes até próximo do rochedo, e rugiram fortemente e horrivelmente sob a lua carmesim.

Eu continuava oculto no meu esconderijo, e espiava as ações do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto, a noite avançava e ele continuava sentado no rochedo.

Então amaldiçoei os elementos da fatalidade e do tumulto; e uma temerosa tempestade formava-se no céu, onde, contudo, não corria um só sopro de vento.

E o céu tornou-se lívido pela violência da tempestade, e a chuva fustigava a cabeça do homem, e o rio atormentado cintilava de espuma, e os nenúfares gemiam, e as floresta chocava-se com o vento, e o trovão ribombava, e o raio caía; e o rochedo vacilava nos seus firmamentos.  E eu continuava oculto no meu esconderijo, e espiava as ações do homem.   E o homem estremecia na solidão; entretanto, a noite avançava, e ele continuava sentado no rochedo.


Então irritei-me, e amaldiçoei a fatalidade do “silêncio”, e o rio e os nenúfares, e o vento e a floresta, e o céu e o trovão, e os gemidos dos nenúfares.  E feri-os a minha maldição, e emudeceram. E a lua deixou de fazer custosamente o seu caminho do céu, e o trovão cessou, e o raio não brilhou mais, e as nuvens conservaram-se imóveis, e as águas reentraram no seu leito e neles se conservaram  — e os nenúfares não gemeram mais; e de tudo isto não se elevou mais o menor ruído, nem a sombra dum  som em todo o vasto deserto sem limites. E olhei os caracteres do rochedo, e tinham mudado, e formavam agora a palavra Silêncio.

E o meu olhar fixou-se no rosto do homem, e o seu rosto empalidecera de terror.  E precipitadamente levou a mão à cabeça, e levantou-se e apurou o ouvido.  Mas não se ouvia o menor murmúrio nesse vasto deserto sem limites, e os caracteres gravados no rochedo diziam: “Silêncio”.  E o homem estremeceu, e voltou-se, e fugiu para longe, para longe, apressadamente, e eu nunca mais o vi.


*



— Ora, há esplêndidos contos nos livros dos filósofos — nos melancólicos livros dos filósofos, que são encadernados a ferro. Há nesses livros, disse eu, esplêndidas histórias do Céu, e da Terra, e do poderoso Mar, e dos Gênios que reinam no mar, na terra, e no céu sublime. Havia também muita ciência nas palavras pronunciadas pelas Sibilas[3]; e santas, santíssimas coisas foram ouvidas outrora pelas sombrias folhas que se moviam em volta de Dodona[4]; mas tão verdade quanto estar vivo Alá, considero esta fábula que me contou o Demônio quando se sentou a meu lado na sombra do túmulo, como a mais espantosa de todas!

E quando o Demônio acabou a sua história, voltou-se na profundeza do túmulo e começou a rir.

E eu não pude rir com o Demônio e ele amaldiçoou-me porque eu não podia rir.  E o lince que vive no túmulo para toda a eternidade saiu e deitou-se ao pé do demônio e fixou-o com persistência no olhar.


Texto publicado originalmente na Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, em 10 de abril de 1890.







[1] Poeta espartano do séc. VII a.C.

[2] Arquipélago situado na costa ocidental da Escócia.

[3] Na mitologia grega, grupo de mulheres dotadas de dons proféticos, que agiam sob a inspiração de Apolo.

[4] Cidade da Grécia antiga, cujas ruínas se encontram próximas à cidade de Tomaros.


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