A EXECUÇÃO DE CARLOS I DA INGLATERRA - Narrativa Clássica de Horror - François Guizot
A EXECUÇÃO DE CARLOS I DA INGLATERRA
François Guizot
(1787 – 1875)
Tradução de Augusto Frederico Collin
(1823 - ?)
Depois de quatro horas de profundo sono, Carlos I da
Inglaterra saiu do leito.
– Tenho grande negócio a concluir –
disse ele a Herbert. – É preciso que me levante imediatamente.
E foi para a penteadeira.
Herbert, perturbado, penteava-o com
menor cuidado que o costumeiro.
– Rogo-vos – diz-lhe o rei –, que
tomeis o mesmo trabalho como de ordinário. Ainda que minha cabeça não deva
permanecer por muito sobre os meus ombros, quero que me prepareis hoje como se
eu fosse um noivo.
Ao vestir-se, pediu mais uma camisa.
– A estação está tão fria – disse ele –
que eu poderia tremer. Algumas pessoas atribuiriam o tremor ao medo, e eu
não quero dar lugar a tal suposição.
Apenas raiou o dia, chegou o bispo e
principiou os seus exercícios religiosos.
Quando lia o capítulo XXVII do
Evangelho Segundo São Mateus – a narração da paixão de Cristo –, disse-lhe o
rei:
– Milorde, escolhestes esse capítulo
como o mais aplicável à minha situação?
– Rogo a Vossa Majestade que veja –
respondeu o bispo – que é o evangelho do dia, segundo o calendário.
O rei pareceu profundamente tocado e
continuou as suas orações com dobrado fervor.
Pelas dez horas, bateram de manso à
porta do quarto. Herbert ficou imóvel. Uma segunda pancada se fez ouvir um
pouco mais forte, se bem que ainda fraca.
– Ide ver quem é – disse o rei.
Era o coronel Hacker.
– Fazei-o entrar – disse ele.
– Senhor – balbuciou o coronel em voz
baixa e meio trêmula –, é chegado o momento de ir para White Hall. Vossa
Majestade terá ainda mais de uma hora para descansar.
– Eu parto já – respondeu Carlos. –
Deixei-me.
Hacker saiu.
O rei concentrou-se ainda alguns
minutos; depois, tomando o bispo pela mão, disse:
– Vinde. Partamos. Herbert, abri a
porta! Hacker advertiu-me pela segunda vez. – E desceu ao parque
para chegar a White Hall.
Quando Hacker batera à porta de volta,
Juxon e Herberto caíram de joelhos.
– Levantai-vos, meu velho amigo –
dissera o rei ao bispo, estendendo-lhe a mão.
Quando Carlos fez abrir a porta,
disse ao coronel:
– Vamos. Já vos sigo.
Atravessou a sala de banquetes entre
duas alas de tropa. Uma chusma de homens e mulheres aí se haviam
precipitado com perigo de vida, imóveis, por detrás da guarda, orando pelo rei,
quando este passava. Mas os soldados, silenciosos, não os maltratavam.
À extremidade da sala, uma abertura,
praticada na parede antecedente, deixava ver, ao pé do cadafalso armado de
negro, dois homens de pé junto ao cutelo, ambos vestidos de marinheiro e
mascarados.
Chegou o rei, com a cabeça levantada,
lançando para todas as partes o olhar, procurando o povo para lhe falar;
porém, unicamente a tropa cobria a praça; ninguém podia se aproximar.
Voltou-se para Juxon e Tomlinson:
– Não posso ser ouvido senão por vós –
disse-lhes. – Pois será a vós a quem dirigirei algumas palavras.
E lhes dirigiu um pequeno discurso, que
havia preparado, grave e tranquilo, quase frio, unicamente com o fim de
sustentar que ele tinha tido razão; que o desprezo aos direitos do soberano era
a verdadeira causa da desgraça do povo; que o povo não devia ter parte alguma
no governo; que somente com esta condição o reino recobraria a paz e as suas
liberdades.
Enquanto falava, alguém tocou no
cutelo. Voltou-se ele precipitadamente, dizendo:
– Não gasteis o cutelo, que me faria
mal.
Terminado o seu discurso, uma pessoa
aproximava-se:
– Tomai sentido do cutelo. Cuidai
dele! – repetiu, com um tom de horror.
Reinava o mais profundo silêncio.
O rei pôs na cabeça um boné de seda e dirigiu-se ao carrasco:
– Meus cabelos incomodam-vos?
– Rogo a Vossa Majestade que os arranje
debaixo do boné – respondeu o homem, inclinando-se.
E o rei arranjou-os, ajudado pelo
bispo.
– Tenho por mim – disse ele ao bispo,
tomando aquele trabalho – uma boa causa e um Deus clemente.
– Sim, senhor – respondeu o bispo. –
Não há senão um passo a franquear. É cheio de perturbação e de agonia, porém de
pouca duração. Pensai em que ele vos faz transpor grande distância, e vos
transporta para o céu.
– Passo de um reino corruptível para
outro incorruptível – disse o rei –, onde não terei de recear espécie alguma de
perturbação.
E, voltando-se para o carrasco,
indagou:
– Meus cabelos estão bem?
Tirou o manto e o cordão da ordem
de São Jorge, que entregou ao bispo, dizendo-lhe:
– Lembrai-vos.
Tirou a veste e tornou a pôr o manto.
E, observando o cepo, disse, dirigindo-se ao carrasco:
– Colocai-o de maneira que fique bem
firme.
– Está firme, senhor.
– Farei uma breve oração e, quando eu
estender as mãos, então...
Reconcentrou-se dizendo a si mesmo
algumas palavras em voz baixa, levantou os olhos para o céu, ajoelhou-se,
pousou a cabeça sobre o cepo. O carrasco tocou em seus cabelos, para
arranjá-los debaixo do boné. O rei pensou que o ia ferir.
– Esperai o sinal – disse ele.
– Eu esperarei, senhor, conforme for do
gosto de Vossa Majestade.
Daí a um instante, o rei estendeu as
mãos. O carrasco dez descer o cutelo e a cabeça caiu ao primeiro golpe.
– Eis aqui a cabeça de um traidor –
diz aquele, mostrando-a ao povo.
Um longo e surdo gemido elevou-se em
torno de White Hall.
Muitas pessoas precipitaram-se junto do
cadafalso para embeber o lenço no sangue do rei. Dois corpos de cavalaria,
avançando em diversas direções, dispersaram pouco a pouco a multidão.
Ficando solitário o cadafalso, tiraram
dele o corpo, que estava já encerrado no féretro.
Cromwell quis vê-lo, considerou-o
atentamente e, erguendo por suas próprias mãos a cabeça, como para assegurar-se
de que estava bem separada do tronco, disse:
– Era um corpo bem constituído e que
prometia uma longa vida...
Tradução Augusto Frederico Colin.
Conto originalmente publicado no Jornal de Instrução e Recreio da
Associação Literária Maranhense, 1845. Atualizamos a ortografia e
fizemos algumas adaptações textuais.
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