O OLMEIRO DE SÃO GRACIANO - Conto Clássico de Terror - Eugénie Foa
O OLMEIRO DE SÃO GRACIANO
Eugénie
Foa
(1796
– 1852)
I
Era
um domingo. A tarde estava bela. As jovens camponesas riam e dançavam na praça
de S. Graciano com aquela franqueza e satisfação tão próprias da gente do
campo. No meu passeio ordinário da tarde, dirigi-me para aquele lugar e, enquanto
as pessoas da minha sociedade se dispersavam por aqui e por ali, vendo umas as
danças dos camponeses, e saltando outras pelos prados vizinhos, eu parei com
respeito e comoção diante de uma velha árvore mutilada e coberta de cicatrizes
como um velho soldado de Austerlitz.
O
regedor de paróquia, tendo-me avistado, dirigiu-se a mim, e começou a fazer-me
seus cumprimentos em um fastidioso discurso que prometia ser muito comprido.
—Este
olmeiro é bem idoso — disse-lhe para interromper a enfadonha arenga do bom
homem e ligar conversa sobre a velha árvore e os mil fatos históricos que esta
me fazia recordar.
—Velhíssimo,
senhora. Mais velho que o velho castelo de Catinat, que ali estais vendo.
Existe desde o tempo dos barões de S. Graciano, a mais antiga família de que eu
me lembro. Vede as grandes concavidades do seu tronco. A cortiça cai-lhe aos
pedaços. Tem sido necessário substituí-la por folhas de chumbo, e só à força de
muitos cuidados é que ainda esta arvore se conserva em pé.
—Era
à sua sombra que Catinat administrava a justiça?
O
regedor sorriu-se com um ar misterioso.
—
Que um homem faça justiça, nada há nisso de admirável. Mas que direis vós,
senhora, se souberdes que antigamente esta árvore a fez também? E, contudo,
nada há mais admirável e terrível!
—
Como?
—Debaixo
desta arvore cometeu-se um grande crime; debaixo desta arvore foi ele vingado.
Oh! Isto é uma história muito celebre e muito verdadeira.
—
E vós a sabeis?
—Sim, senhora.
—E quereis ter a bondade de contá-la a mim?
—
Oh, com muito gosto! — disse-me
ele, hesitando um pouco, corando e revolvendo insensivelmente nas mãos as abas
já um pouco usadas de seu chapéu.
—
Mas — continuou pouco depois, com mais
algum desembaraço — perdoar-me-eis, senhora, se for eu um mau historiador, pois
que eu sei poucas frases. Referir-vos-ei o que sei, isto é, o que me contou
minha avó, que o sabia da sua, a qual também o soubera de uma velha, das mais
velhas que então havia. E se vós amais as frases enfeitadas, podereis
introduzi-las onde vos parecer, quando repetirdes esta história à vossa
sociedade.
II
“Eu
começo, pois. Sabei, senhora, que há muitos séculos, esta praça não existia
ainda, nem também o velho castelo de Catinat: aqui havia um grande bosque, de
que só resta esta arvore, e a alguma distância dela, e para a nossa direita,
havia uma pequena capela, da qual se descia por uma escada para o carneiro onde
estavam as sepulturas dos condes e barões de S. Graciano.
Esta
capela foi destruída, assim como o carneiro e as sepulturas, pois o tempo deu
cabo de tudo, e de tudo que ali havia nada resta senão a bainha de ferro da
espada do último barão de S. Graciano. Esta bainha está vazia e coberta de
ferrugem; mas, se a quereis ver, senhora, eu posso satisfazer vosso desejo,
porque a tenho em meu poder: enquanto à espada, essa desapareceu um dia de uma
maneira milagrosa... Mas esta espada tem relação com a minha história, e eu vos
foliarei delia em lugar competente.
No
lugar do palácio novamente edificado existia um castelo muito antigo; suas
torres eram altíssimas, e o musgo e a hera cresciam ao longo de suas velhas
muralhas. À vista do profundo silêncio que reinava no interior do edifício, nas
pontes e baluartes que os soldados já não animavam com sua presença, e nos pátios
onde a erva crescia, poder-se-ia acreditar que este castelo estava desabitado.
Contudo, nele residia uma jovem e bela mulher!
Era
a viúva do último barão de S. Graciano. Havia dois anos que seu marido tinha
sido assassinado ao pé desta arvore, e no mesmo lugar em que vós estais assentes,
senhora (por um sentimento indizível eu me levantei apressadamente, e recuei
cheia de horror); e, apesar das mais rigorosas indagações, ainda se não tinha
descoberto o seu assassino.
Sabei agora, senhora, que na
mais alta torre do castelo havia uma grande câmara armada de negro, com móveis
todos pretos e um leito branco no centro. Uma única janela alumiava esta
câmara, e no seu vão, que era largo e profundo, como todos os daquele tempo,
tinha-se colocado uma grande cadeira gótica, um bastidor e um tamborete, em forma
de X.
Um
dia que, se bem me lembro, era a 10 de setembro de 1371, duas mulheres, colocadas
no vão desta janela, trabalhavam ao bastidor; os últimos raios do sol, que se
precipitava no seu ocaso, davam nos vidros pintados da janela e espalhavam uma
luz fraca e, indecisa.
Uma
destas mulheres, cujo vestido preto fazia sobressair a admirável alvura da sua
pele, e através de cuja touca de escumilha preta brilhavam uns louros e
formosos cabelos, era a baronesa de S. Graciano. A outra era uma jovem senhora,
alta, esbelta, com a pele levemente tostada, olhos pardos e cabelos castanhos.
Seu vestuário era branco como o das noviças de Santa Briça.
O convento de Santa Briça foi destruído, mas a
vila existe ainda, e dista daqui um quarto de légua. Esta jovem senhora, irmã
do barão, tinha sido destinada por sua família ao estado religioso; e, como o
seu noviciado devia terminar em breve, tinha vindo passar os últimos dias dele
na companhia de sua cunhada.
Enquanto
trabalhavam, estas duas senhoras conversavam, e conversa, como era natural,
versava ainda sobre o barão assassinado. Repentinamente, a agulha caiu das mãos
da baronesa, e ela começou a derramar lagrimas com saudades de seu esposo.
Vendo isto, a jovem noviça deixou o seu trabalho, e, ajoelhando diante de sua
cunhada, a abraçou; e, levantando para ela seu rosto encantador, lhe disse com
movida:
—
Sempre, sempre a chorar, querida Norwinda?
Norwinda cessou de chorar para olhar para a jovem
noviça ajoelhada junto a si.
—
Meu Deus! meu Deus! — exclamou. — Nunca me feriu tanto a tua semelhança com meu
esposo como hoje! Oh! Conserva-te ao meu lado. Esta é a testa do meu Eginhard,
são estes os seus olhos, assim como o seu doce olhar. Fala-me, fala-me,
Yolanda, porque a tua voz é a dele, e a minha dor enganada diminuirá
ouvindo-te.
—
Meu pobre irmão! — respondeu Yolanda, cujos olhos pretos se animavam de cólera.
—Se ao menos se pudesse conhecer o seu assassino, se sua morte fosse vingada! Norwinda, aqui, a teus pés, eu juro de não
professar, de não cumprir as últimas vontades de meu pai, de não me entregar a Deus,
senão quando ele tiver castigado este crime.
Acabando
estas palavras, a jovem noviça notou que sua cunhada desfalecia. Sustentou-a
por um momento em seus braços, procurando reanimá-la com suas carícias; mas,
vendo-a desfalecer cada vez mais, teve medo, e tratou de chamar as suas
criadas. Nenhuma veio, e Yolanda inquietava-se. Chamou novamente e, não lhe
respondendo ninguém, abandonou por um instante a Norwinda, e correu ao seu
oratório a buscar um elixir que ali tinha deixado.
Aos
passos leves da jovem senhora, que se arrastava, sucederam outros fortes e
apressados; o reposteiro que cobria a porta levantou-se apressadamente, e o
velho Raynoldo, o mais antigo criado dos barões de S. Graciano, apareceu. Suas
feições estavam alteradas, e com voz apenas inteligível, disse:
—
Perdoai, minha nobre senhora, mas o conde de Ormessan...
—Ormessan
! — repetiu Norwinda; e a mais viva
agitação substituiu a serenidade da dor.
—
Ormessan!. Pela vossa vida, Raynoldo, fazei que ele não entre em minha casa!
—Mas ele aqui está já, senhora — respondeu uma
voz forte e rouca.
Norwinda ficou gelada de susto. Um guerreiro
tinha seguido de perto os passos de Raynoldo. Sua estatura era alta e nobre; uma
couraça de aço polido cobria seus membros atléticos, e, tendo levantado a
viseira de seu capacete, deixava ver um rosto moreno e feições carregadas.
—Sai
—disse ele ao velho criado.
E
este obedeceu, como impelido pela força do olhar que tinha acompanhado estas
palavras.
—
Norwinda! — disse então o guerreiro adoçando a sua voz.
A
baronesa tinha recobrado a sua dignidade. Levantou-se e, com altivez nobre e uma
justa cólera em seu rosto, disse:
—Com
que direito vindes à minha casa, senhor? Sai, eu vo-lo ordeno.
—Quero
falar-vos, senhora.
—Que poderá ter a dizer o conde de Ormessan à viúva
do barão de S. Graciano?
—Vem
pedir-lhe a ventura que sua inconstância lhe roubou uma vez.
—Sua
inconstância!
E
os grandes olhos azuis da baronesa se fixaram no conde, com desprezo e
indignação.
—Esse tempo não vai mui distante, senhora, e não
se pôde ter varrido da vossa memória. Meu amor tinha-vos interessado, ao menos
não recusáveis minhas atenções. Estáveis indecisa, mas não desdenhosa, quando
Eginhard de S. Graciano apareceu na corte. Ele vos agradou, e vós lhe
concedestes essa mão que eu solicitava havia muito tempo. Vosso desprezo cobriu-me
de vergonha; vossa união foi uma afronta para mim, uma afronta que só o sangue
podia fazer esquecer! Eginhard pagou com a vida a sua ventura.
—Homem
bárbaro, afasta-te! O horror que me inspiras faz-me acreditar que tenho diante
de meus olhos o assassino de meu esposo!
—
Não, senhora, não. Morreu a mãos que não eram minhas. Mas — ajuntou ele,
interrompendo-se subitamente —,a minha justificação só serviria para me humilhar;
a ingrata se felicitaria do meu abatimento; ela se riria. É melhor não falar
nada. Norwinda, vós estais livre, eu também; aceitai-me por esposo.
—Nunca.
—Eu
o quero.
—Afastai-vos.
—Eu
o quero, já vo-lo disse.
—Afastai-vos,
repito! Vossa presença me mata.
—Ah,
senhora, dissimulai um pouco o horror que vos inspiro. Sabei que estais em meu
poder, e ao menos lembrai-vos que peço quando posso mandar.
—Mandar! — repetiu Norwinda admirada.
—Vede,
senhora.
E
lhe apontou para uma janela por onde ela viu grande multidão de lanças que brilhavam
ao sol e cercavam o parque de S. Graciano, e entre as quais flutuava a bandeira
dos condes de Ormessan. Aterrada, a baronesa caiu sobre a sua cadeira, e ocultou
entre suas mãos a palidez do seu rosto.
O
conde, aproveitando-se do abatimento da baronesa, continuou com fogo e paixão:
—Norwinda,
eu te amo apaixonadamente, não me repulses. Consente em pertencer-me, em ser
minha em ter o meu nome! Responde-me, Norwinda, eu o quero. Ao menos levanta os
olhos, vê que não é como senhor que te fale, mas sim como amante... Mas vós me
odiais tanto, que nem vos dignais responder-me!... Está bem! Então escutai-me:
calai-vos, já que o falar é um esforço tão grande para vós, mas obedecereis. Já
amanhã, ao romper do dia, o vosso capelão terá ordem para abençoar a nossa
união. Amanhã, ao amanhecer, o altar estará preparado, eu ali vos conduzirei e,
quando não, até ali sereis arrastada. Sim, tu serás minha por vontade ou por
força, entendes-me, Norwinda?
Um silencio cortado de soluços foi toda a
resposta da viúva.
—Norwinda!
— gritou o conde pegando na mão da baronesa.
A
desgraçada lançou um grito de horror, levantou-se, e, tentando fugir, exclamou:
—Assassino
de Eginhard, não me toques com tuas mãos ensanguentadas!
Furioso,
o conde, se apodera delia, aperta-a contra o peito, e diz-lhe ao ouvido:
—Não
grites, Norwinda, não grites, porque teus gritos seriam um sinal de revolta e
de carnagem para os teus criados. Não grites, eu te peço.
A
infeliz calou-se. Ela sentiu subitamente os braços de ferro que cingiam sua
cintura tremerem, alargarem-se pouco a pouco, e depois abrirem-se. Ela estava
livre.
—Os mortos saem dos túmulos! — disse o conde com os olhos fixos, com terror,
no reposteiro da porta meio alevantado. Naquela abertura, viam-se dois grandes
olhos pretos, lançando sobre o conde vistas inflamadas. Imediatamente, o
reposteiro levantou-se totalmente, e um véu modesto e um vestido branco se manifestaram.
Yolanda apareceu. Sua figura era animada por uma nobre cólera.
—Baronesa
de S. Graciano — disse ela—, donde vem o terror que se lê em vossos olhos? Ter-vos-á
insultado este homem? Terá ele esquecido o respeito que se deve a uma nobre
senhora? Será necessário punir um insolente? Falai, minha irmã, vossos vassalos
estão prontos. Se eles não forem bastantes, vossas mulheres se lhe unirão, e eu
serei a primeira.
O conde tinha recuperado a sua presença de
espirito.
—Verdadeiramente, bela menina — disse ele
inclinando-se com um ar irônico —, que não é necessário chamar nem criados nem
vassalos, porque diante de um campeão tão corajoso, força é ceder. Contudo
segui, eu vo-lo peço, o conselho que vos vou dar. As mulheres foram feitas para
obedecer; quando elas hesitam, forçam-se; sabei isto, encantadora menina, e repeti-o
à vossa cunhada.
Depois
, olhando alternativamente para uma e para outra, ajuntou:
—Ao
amanhecer, anjo e demônio.
E saiu.
—Que
é isto? — perguntou Yolanda admirada — Que
quer isto dizer?
—Vamos
rezar sobre o túmulo de meu esposo — foi toda a resposta de Norwinda.
III
Numa
capela sombria e gótica, havia por detrás do altar uma escada tortuosa que
conduzia ao carneiro, no qual estava acesa uma lamparina de ferro suspensa da abóbada. Este carneiro
era espaçoso, e no meio dele se elevava um túmulo sobre o qual estava uma estátua,
e esta estatua representava Eginhard de
S. Graciano. Estava revestida da armadura completa do barão. Amolgada em muitos
lugares, carcomida pelo sangue que em partes tinha coalhado, ela atestava os esforços
que seu dono tinha feito defendendo-se e as numerosas feridas que antes de
morrer havia recebido Depois, examinando-a com mais atenção via-se que a espada
estava metade fora da bainha, mostrando assim que o cavalheiro, atacado de
improviso, só tivera tempo de a empunhar, e que, ferido mortalmente, as forças
lhe tinham faltado para a desembainhar de todo.
Aos
pés desta estatua estava ajoelhada uma mulher vestida de preto, e copiosas lagrimas
lhe corriam pelas faces ainda viçosas, mas pálidas pela dor. Não longe delia sobressaía
em pé, branca na escuridão, bela como o anjo da inocência, uma jovem senhora
que, com ar admirado e cheio de sentimento, contemplava em silencio esta
habitação, onde tinha entrado pela primeira vez.
—Vem
para junto de mim, minha irmã — disse a baronesa. —Vem juntar a tua à minha
voz, e orar por meu esposo. Irmã de Eginhard, daquele que eu amarei até ao último
instante da minha vida, Yolanda, eu te vejo com prazer. Tu és a sua perfeita
imagem. Se tu falas, eu me calo para ouvir-te; porque a tua voz é a voz dele, e
até o teu olhar me causa uma doce ilusão. Oh! meu Deus! esta semelhança me
afaga, e ao mesmo tempo me rasga o coração! Aqui — ajuntou a desgraçada viúva,
lançando seus olhos úmidos e cheios de dor sobre o objeto junto do qual estava
ajoelhada —, aqui está a minha vida, a minha ventura, o meu único amor. Aqui
está o meu Eginhard, noutro tempo tão ardente, tão cheio de vivacidade, mas
hoje frio, frio como esta pedra. Ele, tão belo — que horror! —, assassinado...
maltratado... desfigurado!
E
o olhar da infeliz viúva se tornava feroz.
—Escuta-me,
Yolanda, atende ao que te vou contar. Uma tarde eu esperava meu esposo, e,
entretanto, trabalhava e pensava na ventura de o tornar a ver. Ele estava
ausente desde a manhã. A noite tornava-se escura e carregada, e meu esposo não
chegava. Todavia, ainda isso não me dava cuidado... O relógio do castelo deu
horas ; eu as contei julgando não ser tão tarde; a décima hora vibrou aos meus
ouvidos, como um funesto pressentimento; e, sem saber porque, eu senti
apertar-se-me o coração, e tive medo de estar só... Chamei as minhas criadas; elas
vieram. Eu sabia que meu esposo ainda não tinha vindo, e, contudo, perguntei
por ele, e sua resposta me causou admiração, como se eu a não esperasse.
”—
Vamos encontrá-lo —eu disse.
“E
minhas criadas olharam umas para as outras. Fazia uma terrível tempestade, o
furacão sentia-se em todos os quartos e galerias do castelo, e eu não o via.
Dirigi-me para a porta, e meus criados foram obrigados a seguir-me. Acenderam-se
os archotes, e, apesar do vento e da chuva, eu saí... Que horrível noite!...
Marchei ao acaso, sendo obrigada a parar por causa de uma sarça arrancada, ou
dostroncos quebrados das arvores que o vento arrojava à estrada. Chamava, e
minha voz perdia-se por entre o estrondo da trovoada. O frio gelava meus
membros e minha fronte; meu peito estava ardendo; a chuva molhava meus vestidos
colando-os ao corpo, e eu continuava a andar. Corria, gritava, chorava, caía,
levantava-me.... meu Deus! que sofrimentos!... Mas isto não era tudo; escuta-me
até ao fim. Ignoro o tempo que vaguei pelo bosque, mas julgo que foi muito. Os
nossos archotes haviam-se apagado como vento e chuva. Mas, tendo-me um
relâmpago mostrado ao longe o olmeiro favorito do meu esposo, o olmeiro mil
vezes testemunha de nossos juramentos de amor, ocorreu-me a ideia de que talvez
Eginhard estivesse metido debaixo de sua ramagem para se abrigar da tempestade.
Dirigi-me para ali, e comecei a chamar em altas vozes por Eginhard, estendendo
os braços no meio da escuridão, como para procurar os seus. Nisto embaraçaram-se
meus pés nas raízes da arvore; caí, e na queda minhas mãos encontrarão no chão uma
espada.
“—Eginhard!
Eginhard! — torneia gritar, animada por este indício. Neste momento, abriu-se a
nuvem, e um longo relâmpago manifestou a meus olhos Eginhard pálido e surdo à
minha voz e aos meus gemidos. Tomei-o apressadamente em meus braços... Mas, oh,
meu Deus! O que senti eu!... Sangue, sangue por toda a parte, no seu semblante,
no seu corpo, em minhas mãos, nos meus vestidos... Não me recordo de mais coisa
alguma.”
Depois,
esquecendo-se que Yolanda estava presente, e que seu esposo a não podia ouvir,
ela o chamou:
—Eginhard! Levanta-te, vem em meu
auxilio. Outro me quer, quer a tua esposa; e que outro, grande Deus! O teu
assassino, talvez! Meu querido esposo, vem buscar-me, eu o quero. Leva-me para
a tua fria morada, e que eu fique aí contigo. Meu senhor, meu único senhor,
ouve a minha voz: por piedade não sofras que outro que não seja Eginhard aperte
esta mão que te pertenceu. Não sofras que ele procure sobre o meu peito uma
palpitação deste coração que é todo teu. Nnão sofras que ele procure em meus
lábios o sopro de uma vida que te foi consagrada. Eginhard, eu sou o teu bem, a
tua propriedade, defende-me, leva-me para o teu túmulo. Vem vingar-te, e vingar
a tua esposa.
De
repente a baronesa calou-se e estremeceu. Figurou-se lhe que a armadura, como
se fosse agitada por um objeto invisível, fizera ressoar um som agudo e
lastimoso, e que uma voz bem conhecida gritara do fundo do túmulo:
—
Norwinda, tu serás vingada!
O
seu sangue gelou-se e ela caiu sem sentidos.
IV
Ormessan
havia-se apoderado do castelo sem muito custo, pois que pessoa alguma o tinha
defendido. Quando deixou a baronesa, mandou chamar o capelão, e ordenou-lhe que
preparasse tudo na capela para ali se celebrar, ao amanhecer, o seu casamento
com Norwinda. Depois, foi colocar as sentinelas nos baluartes que estavam
desertos, e, quando anoiteceu, o velho Raynoldo o conduziu a uma câmara para
descansar, e aí o deixou só.
Havia
já muito tempo que Ormessan estava deitado, porém não tinha podido conciliar o sono:
uma ideia aterradora pesava sobre sua cabeça e sobre seu coração. Debalde, ele
procurava esquecer uma recordação que continuamente o perseguia. Quanto mais
fazia para não pensar nela, tanto mais nela pensava. Enfadado ,pôs-se a
examinar o quarto em que se achava. Era uma câmara vasta e sombria, somente alumiada
por uma alampada amortecida. Cobriam as paredes panos de rás em que estavam
representados muitos guerreiros armados, aos quais a luz vacilante da lamparina
dava uma aparência fantástica. Um deles sobretudo assemelhava-se ao barão:
tinha suas feições nobres e graciosas, sua figura elegante; e seu traje estava
tão bem imitado, que, por um momento, o conde, oprimido pelos remorsos de sua
consciência, acreditou ver este guerreiro animar-se, separar-se do tapete, e
avançar para o seu leito. Ele fechou os olhos, tornou a abri-los: tudo estava
sossegado e silencioso.
Neste
momento o relógio deu uma hora da madrugada. E Ormessan, que bem a seu pesar
tinha tido sempre os olhos fitos sobre aquele guerreiro, perfeita imagem do
barão de S. Graciano, julgou sonhar quando viu mover-se o penacho branco que
adornava o seu capacete, e depois desprender-se realmente o guerreiro do
tapete, e avançar para o meio da câmara.
Ormessan
quis chamar gente, mas não pôde. Sua voz estava sufocada; Parecia que lhe apertavam
a garganta com tenazes de ferro. Então, ele fechou os olhos, decidido a não
tornar a abri-los. Mas uma voz, uma voz que ele bem conhecia, porque todas as
noites a ouvia em seus sonhos, o chamou três vezes:
—Ormessan!
Ormessan! Ormessan!
—Quem
me chama? — respondeu ele, afetando uma coragem que não tinha.
E,
abrindo os olhos, viu o fantasma diante do seu leito. A lamparina lançou então um
forte clarão, e Ormessan não pôde duvidar do que via. Era Eginhard, eram suas
feições, seu talhe, seu penacho branco. Oh, sobretudo, seu olhar, esse olhar de
desprezo que lhe havia lançado antes de morrer, e que depois o perseguia como um
remorso vingador.
—Piedade!
Piedade! — murmurou ele.
Mas
o fantasma estendeu o braço para o leito, e fez-lhe sinal para que se
levantasse. Como impelido por uma força sobrenatural, por um sentimento ao qual
lhe era impossível resistir, o conde se levantou. O fantasma fez-lhe sinal para
que se armasse, e ele começou a armar-se. Mas suas mãos tremulas atacaram mal a
cota de malha. Ele não pôde conseguir o abotoar sua couraça, nem afivelar seu
cinturão. Seu braço enfraquecia sob seu escudo, e o punho de sua espada parecia
escapar-lhe das mãos.
Assim,
o conde meio armado, e com as faculdades quase aniquiladas, obedeceu ao sinal
que o fantasma lhe fez para o seguir, marchando adiante dele, e abrindo uma
porta oculta praticada no tabique por baixo da tapeçaria.
V
O
dia começava a romper e Norwinda, que não tinha querido deitar-se, estava ainda
a orar no oratório contíguo ao seu quarto. Suas criadas a cercavam, e nenhuma
ousava interrompê-la, quando um pajem se apresentou à porta. A baronesa julgou
que a vinham procurar da parte do conde de Ormessan. E, voltando-se para o
enviado, declarou-lhe logo, sem lhe dar tempo de falar, que só a conduziriam
morta à capela.
O
pajem inclinou-se, e respondeu que não conhecia o conde de Ormessan, e que
vinha do convento de Santa Briça participar à baronesa que sua cunhada , a jovem
Yolanda, tinha ali chegado sem incômodo algum, e que no dia seguinte
professaria.
—Nesse
caso, todos me abandonam — disse com amargura a desgraçada Norwinda.
Mas
logo um rumor surdo se espalhou entre os soldados do conde de Ormessan. O
conde, a quem na véspera à noite tinham visto retirar-se para o seu quarto, e a
cuja porta tinham velado sentinelas toda a noite, não havia saído dali. E
quando, segundo as suas ordens, lá entraram ao romper do dia, não o tinham
encontrado e ele havia desaparecido.
—Ide
procurá-lo debaixo do olmeiro — disse o velho Raynoldo.
Os
soldados correram apressadamente a este sitio, e distinguiram, ao longe, e
debaixo daquela árvore, um homem estendido no chão. Aproximaram-se: era o conde
de Ormessan. Os músculos do seu rosto estavam contraídos, e seus olhos
espantados como se fixassem um objeto aterrador. Uma espada lhe atravessava o
corpo.
Seus
soldados o levantaram. Ele não deu sinal algum de vida. Quiseram-lhe arrancar a
espada que lhe atravessava o corpo e não puderam. Chamaram-se médicos dos mais
hábeis dos contornos. Vieram de S. Graciano, de Montmorency , de Andili e de
Santa Briça, e nunca nenhum deles pôde conseguir arrancar a espada. Foi
necessário enterrar o corpo com ela.
Mas
ao menos o seu matador quis dar-se a conhecer: um louco rastro de sangue
indicava os seus passos. Seguiram-no, ele conduzia à capela, atravessava esta,
continuava pela escada que ia para o carneiro, e terminava junto ao túmulo do
barão de S. Graciano, aos pés da sua mesma estátua. À vista disto, os soldados
do conde pararam como se aterrados por um santo temor, e não duvidaram da
vingança celeste.
A
armadura do barão de S. Graciano, que cobria a sua estátua , tinha recobrado o
seu brilhante polido. O sangue, que ainda na véspera estava coalhado em muitos
lugares e formava grandes manchas de ferrugem, hoje corria vermelho e líquido,
e como se o corpo do barão o estivesse a derramar. E, para cúmulo de surpresa, a espada tinha desaparecido da bainha.”
— Se quiserdes, senhora, podereis ver esta
bainha.
*
Ora
, eis-aqui, concluída, a história do Olmeiro de S Graciano. Eu a narrei como me
contaram. Dela, ajuíze cada um como lhe parecer.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “Museo
Universal”, edição de 18 de junho de 1842.
Comentários
Postar um comentário