O SONHO DE TALANO - Conto Clássico de Terror - Giovanni Boccaccio
O SONHO DE TALANO
Giovanni
Boccaccio
(1313-1375)
Tradução
de Paulo Soriano
Não
sei se vós, senhoras, conhecestes Talano de Molese, um homem muito digno. Ele
se casou com uma jovem chamada Margherita, a mais bela entre todas, mas, acima
de tudo, tão caprichosa, incômoda e irascível que jamais fazia algo que
agradasse a quem quer que seja, e ninguém conseguia fazer alguma coisa que lhe
agradasse. Não tendo outra opção, Talano suportava este estado de coisas com
grande dificuldade, e sofria com isto.
Ora,
certa noite, estava Talano com Margherita em uma propriedade rural de sua
pertença. Tendo adormecido, teve a impressão de ver a sua mulher seguir por um
belíssimo bosque que possuíam não muito longe de sua casa. E, enquanto a via a
andar, julgou que, de um certo ponto do bosque, surgia um lobo grande e feroz,
que avançava para a garganta de Margherita e a arrojava ao chão. Ela, gritando
por socorro, tentava desvencilhar-se do lobo. E quando, finalmente, ela conseguiu
escapar da goela da fera, Talano percebeu que a mulher tinha o rosto e a
garganta dilacerados.
Assim que acordou,
Talano disse à mulher:
—
Mulher, embora a tua índole irascível não permita que eu passe um único dia em paz
contigo, ficaria muitíssimo sentido se algum mal te acontecesse. Por isto, se
dás algum crédito a meus conselhos, digo-te que não saias hoje de casa.
Tendo
ela perguntado o motivo daquela advertência, ele contou à esposa detalhadamente
o sonho que tivera.
—
Quem nos quer mal, sonha más coisas conosco. Tu finges que te compadeces de
mim, mas sonhas com o que gostarias que me acontecesse. Não há dúvida de que,
hoje e sempre, estarei prevenida para que não me aconteça o que sonhaste, nem
qualquer outro mal que me possa suceder.
Disse então Talano:
—
Eu estava certo de que tu assim me responderias, porque esta é a gratidão com a
qual se compensa quem afaga gente geniosa.
Mas, creias no que quiser, o que eu te digo é para o teu bem. Assim, eu te aconselho, novamente, a que
permaneças em casa hoje, ou, ao menos, a que te guardes de ir ao nosso bosque.
A mulher disse:
— Está bem.
—
Vistes como ele é malicioso, acreditando que me incutiu o medo de ir hoje ao
bosque? Tenho a certeza de que marcou, lá, um encontro com alguma sirigaita e não
quer que eu o veja lá. Oh, ele acha que sou cega, e parva eu seria se não o
conhecesse e ainda acreditasse nele! Mas,
com certeza, ele não conseguirá. Nem que eu tenha que passar o dia todo no
bosque, hei de ver que tipo de negócio ele estará a ajustar hoje.
Assim
que disse isto, saiu o marido por um lado da casa e ela, furtiva, pelo outro,
e, sem perda de tempo, seguiu para o bosque. E lá, na parte mais densa da
vegetação, escondeu-se, prestando atenção e espreitando de um lado para o outro,
para ver se aparecia alguém. E assim permanecia, sem preocupação alguma com os lobos,
quando, de uma moita espessa, perto de onde estava, saiu um lobo enorme e
terrível. Quando ela o viu, não pôde, sequer, dizer “Senhor, ajuda-me!”, pois o
lobo já se lhe lançara à garganta e, agarrando-a com força, pusera-se a
arrastá-la como se ela fosse um cordeirinho.
Ela
não conseguia gritar — tão constrita que estava a sua garganta —, nem se
defender de qualquer maneira. O lobo, assim, a arrastava, e sem dúvida a teria
estrangulado se a mulher não se deparasse com pastores que, gritando, obrigaram
a fera a saltá-la. Ela, pobre coitada, reconhecida pelos pastores, foi levada
para casa. Com grande esforço, foi tratada pelos médicos, mas toda a sua
garganta e boa parte do rosto ficaram mutilados de tal maneira que ela, antes
bela, tornou-se para sempre horrenda, desfigurada. Por isto, envergonhando-se
de aparecer onde pudesse ser vista, muitas vezes miseravelmente lamentou-se da
sua índole geniosa, e chorou, também, por não ter dado fé à veracidade do sonho
do marido, algo que lhe não teria custado nada.
Imagem: Sandro Botticelli
(1445 – 1510).
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