OS CÃES DO DEMÔNIO - Narrativa Clássica de Terror - Antonio de Torquemada
OS
CÃES DO DEMÔNIO
Antonio de
Torquemada
(c. 1507 – 1569)
Um
cavaleiro, sendo muito rico e ilustre, travava amores com uma monja. Esta, para
poder ver-se com ele, disse-lhe que fizesse uma chave conforme as que tinham as
portas da igreja, e que ela bem faria de maneira que por um torno, que havia para
o serviço da sacristia e outras coisas, pudesse sair ao lugar onde ambos
poderiam cumprir os seus ilícitos e abomináveis desejos.
O
cavaleiro, muito contente com o que estava ajustado, mandou fazer as chaves,
sendo uma para uma porta que estava no grande portal da igreja e outra para a
porta da mesma igreja. E porque o monastério estava algo distante da vila, ele partiu
no meio de uma noite, que se fazia muito escura, em um cavalo, sem levar
nenhuma companhia, para que seu encontro fosse secreto.
Deixando
amarrado o cavalo num certo lugar conveniente, seguiu ao monastério e, abrindo
a primeira porta, viu que a da igreja estava aberta, e que dentro dela havia
uma mui grande claridade e resplendor de achas e velas acesas, e que soavam
vozes como de pessoas que estavam cantando e fazendo o ofício de um defunto.
Ele
se espantou e se aproximou para ver o que era. Olhando para todos os lados, viu
a igreja cheia de frades e clérigos, que eram os que cantavam aquelas exéquias.
No meio deles, havia um túmulo muito alto, coberto de luto, e ao redor deste
estava uma mui grande quantidade de cera que ardia. Mesmo assim, os frades e clérigos,
e outras muitas pessoas que com eles estavam, tinham nas mãos as suas velas acessas.
O que mais espantou o cavaleiro foi notar que não conhecia ninguém. Depois de
passar um bom momento mirando, aproximou-se de um dos clérigos e perguntou-lhe
quem era aquele defunto por quem se faziam aquelas honras. O clérigo lhe
respondeu que havia morrido um cavaleiro que se chamava..... (nomeou o mesmo
nome que ele tinha) e que estavam fazendo o seu enterro.
O
cavaleiro sorriu, respondendo-lhe:
—
Este cavaleiro é vivo. Estás, assim, enganado.
O
clérigo tornou a dizer:
—
Mais enganado está o senhor, porque é certo que ele está morto, e aqui está ele
para ser sepultado.
Assim
dizendo, retomou o seu cântico.
Muito
confuso com o que lhe havia sido dito, ele se chegou a outro clérigo, ao qual fez
a mesma pergunta, e este lhe respondeu o mesmo que o outro dissera, afirmando-o
com tanta segurança que fez o cavaleiro espantar-se. E, sem esperar mais, o cavaleiro
saiu da igreja e, cavalgando, tomou o caminho para a casa. Enquanto voltava, dois mastins mui grandes e
mui negros puseram-se a acompanhá-lo, um de cada lado da montaria, e, por mais
que fizesse, e os ameaçasse com a espada, os cães não quiseram debandar, até
que o cavaleiro chegou à porta de sua casa, apeou e entrou.
E,
saindo da casa os seus criados e serviçais, que o esperavam, maravilharam-se
de vê-lo chegar tão demudado, com a cor tão fugida, e entenderam que lhe acontecera
alguma coisa. E o inquiriram, persuadindo-o, com grande instância, a que lhes
dissesse o ocorrido.
O
cavaleiro seguiu contando-lhes tudo minuciosamente, até entrar em sua câmara,
onde, terminando de dizer tudo o que lhe havia passado, entraram os dois
mastins negros que, avançando sobre ele, lhe fizeram em pedaços e lhe tiraram
a vida, sem que pudesse ser socorrido. E assim tornaram-se verdadeiras as
exéquias que se lhe faziam em vida.
O
cavaleiro pagou pelo que merecia o seu pecado, e, assim, permite Deus que sejam castigados todos os que intentam
violar os monastérios, agindo em tão grande ofensa aos seus serviços. Eu não poderei
julgar pelo que foi narrado, senão concluir que Deus soltou a mão a dois
demônios, que eram estes dois mastins, dando lugar a que tão cruelmente
castigassem uma maldade tão grande e merecida; ou, também, aqueles poderiam ser
mastins verdadeiros que, guiados por demônios, viessem a fazer aquela obra,
despedaçando o cavaleiro com a permissão da majestade divina.
Versão em
português: Paulo Soriano.
Narrativa
constante do Jardín de Flores
Curiosas, 1575.
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