O SORTILÉGIO DAS RUNAS - Conto Clássico de Terror - M.R. James
O
SORTILÉGIO DAS RUNAS
M.
R. James
(1862
– 1936)
Tradução
de Alfredo Ferreira
(1865
– 1942)
Prezado
senhor:
Fui
incumbido pelo conselho administrativo da Associação X de devolver o manuscrito
de tua conferência sobre a verdade da alquimia, que tiveste a gentileza de se
propor a ler em nossa próxima reunião, e ao mesmo tempo me cumpre informar que
nosso conselho não vê maneira de incluir teu trabalho em nosso programa.
Me
subscrevo atenciosamente, secretário. 18 de abril de...
Secretário
*
Prezado
senhor:
Sinto
informar que meu afazer não me permite conceder uma entrevista para tratar do
assunto de tua conferência, nem nossos estatutos permitem que V. Sa. discuta
esse assunto com uma comissão de membro de nosso conselho, como sugeres.
Permitas assegurar que o manuscrito que foi enviado mereceu nossa melhor
consideração e só foi recusado depois de submetido ao julgamento de autoridade
muito competente. Nenhuma questão pessoal, julgo desnecessário acrescentar,
pôde influenciar a decisão do conselho.
Acredite-me
(ut supra).
*
20
de abril de...
—
O secretário da Associação X vem respeitosamente informar a senhor Karswell que
é impossível revelar o nome de alguma das pessoas a quem o manuscrito de senhor
Karswell foi apresentado para exame e deseja ainda mencionar que não assume o
compromisso de responder a outras cartas sobre o assunto.
*
—
E quem é esse senhor Karswell? — perguntou a esposa do secretário. Entrara no
escritório dele e, talvez indiscretamente, pegara a última destas três cartas
que a datilógrafa acabara de trazer.
—
Ora, querida. O Sr. Karswell é um homem
muito zangado. Mas não sei grande coisa, a não ser que é pessoa de posse, que
seu endereço é abadia de Lufford, de Warwickshire, e que é aparentemente um
alquimista que deseja falar a nós sobre isso. Eis tudo, exceto que não desejo
me encontrar com ele nestas duas semanas mais próximas.
—
E o que fizeste para que se zangasse?
—
Nada de mais, querida. Enviou um manuscrito de uma conferência que desejava ler
na próxima reunião, e o mandamos a Edward Dunning, talvez o único homem na Inglaterra
que sabe algo sobre o assunto. Dunning disse que era uma coisa sem nexo, de
maneira que a recusamos. Por causa disso, Karswell escreveu a mim uma porção de
carta. Na última pedia-me para informar o nome do homem a quem submetemos suas
baboseiras. Viste minha resposta. Mas não fales a alguém sobre isso, pelo amor
de Deus!
—
É claro que não! Já me viste fazer semelhante coisa? Espero, no entanto, que
não consiga saber quem é o pobre senhor Dunning.
—
O pobre senhor Dunning? Não sei por que dizes isso. É um homem muito feliz. Tem
uma porção de potro e uma linda casa própria.
—
Queria somente dizer que seria uma pena que esse homem soubesse o nome e
pudesse causar aborrecimento.
—
Ah, sim! Acho que, nesse caso, ele seria o pobre senhor Dunning.
O
secretário e a esposa almoçariam fora, e os amigos a cuja casa estavam ligados
eram pessoas de Warwickshire. Por isso, a senhora secretária já resolvera que
os interrogaria discretamente a respeito do senhor Karswell. Mas nem lhe foi
preciso se dar ao trabalho de encaminhar a conversa àquele tema, porque a
própria dona da casa disse ao marido, antes de decorridos muitos minutos:
—
Vi o abade de Lufford nesta manhã.
Ele
deu um pequeno assobio.
—
O vistes? O que traria à cidade?
—
Sabe Deus! Saía do portal do museu Britânico quando eu ia passando de carro.
Não
era antinatural que a senhora secretária perguntasse se estavam falando de um
abade de verdade.
—
Ó, não, querida. Apenas um vizinho lá da terra, que comprou a abadia de Lufford
há alguns anos. Seu verdadeiro nome é Karswell.
—
É teu amigo? — perguntou o senhor secretário com uma piscadela disfarçada à
esposa.
A
pergunta soltou uma torrente de informação. Na realidade, nada de bom se podia
dizer sobre senhor Karswell. Ninguém sabia no que empregava o tempo. Os criados
eram uma gente horrível. Inventara uma nova religião para uso próprio e ninguém
poderia dizer que horrendos ritos ele praticava. Ofendia-se muito facilmente e
nunca perdoava. Tinha uma casa assustadora (assim pretendia a dama, contra
ligeira objeção do marido). Nunca praticava uma boa ação e toda influência que
exercia era malévola.
—
Faz justiça ao pobre homem, querida. Estás esquecendo a festa que ele ofereceu
às crianças da escola.
—
Já me esqueci. E estimo que a tenhas mencionado, porque dá uma ideia do que é o
homem. Agora, Florence, escuta isto: no primeiro inverno que passou em Lufford,
esse nosso delicioso vizinho escreveu ao clérigo de sua paróquia, que não é o
nosso, mas conhecemos muito bem, e se ofereceu para mostrar aos meninos da
escola algumas sequências de lanterna mágica. Dizia que tinha algumas de novo
gênero que julgava que lhes interessaria. O padre ficou bastante surpreso, porque
senhor Karswell se mostrara propenso a maltratar as crianças, queixando-se de que o xingavam ou coisa que o
valha, mas aceitou. Marcaram uma noite e nosso amigo foi em pessoa ver se tudo
corria bem. Depois disse que nunca estimara tanto uma coisa como que os filhos
não tivessem podido comparecer. O fato é que estavam numa festa infantil em
nossa casa. Porque o tal senhor Karswell fizera aquilo evidentemente com o
propósito de enlouquecer de medo aquelas pobres crianças rústicas, e creio que
se o deixassem continuar, o conseguiria. Começou com algumas coisas
relativamente brandas. Chapeuzinho Vermelho era uma delas, e mesmo nessa, disse
senhor Farrer, o lobo era tão assustador que algumas crianças mais novas
tiveram de ser retiradas. E disse que senhor Karswell começou a história
produzindo um ruído semelhante ao uivo dum lobo a distância, que era a coisa
mais aterrorizante que já ouvira. Todos os quadros que exibia, disse senhor
Farrer, eram muito claros. Eram realistas e não podia imaginar onde os obtivera
ou como os preparava. O espetáculo continuou e as histórias se tornavam cada
vez mais apavorantes, deixando as crianças mergulhadas no mais completo
silêncio. Enfim, exibiu uma série que representava um garoto atravessando seu
próprio parque, Lufford, quero dizer, na noite. Todas as crianças que estavam
na sala podiam reconhecer o local apresentado por fotografias que viram. E
aquele pobre rapazinho era perseguido, e enfim pego, e até despedaçado ou
desfeito de qualquer maneira, por uma horrenda criatura coxa, que se via a
princípio deslizando entre as árvores e que gradualmente se tornava cada vez
mais nítida. Senhor Farrer diz que aquilo lhe produzira um dos piores pesadelos
dos quais se lembrava, e o que teria parecido às crianças nem é bom pensar.
Naturalmente, aquilo era demais, e falara ao senhor Karswell muito asperamente,
na verdade lhe fazendo ver que a coisa não podia continuar. Tudo o que
respondeu, foi: Oh! Achas que é tempo de dar por terminado nosso pequeno
espetáculo e mandar a meninada à cama? Muito bem! E então, imagina, mudou a
outro quadro que mostrava um montão de víbora, centopeia e repugnantes
criaturas aladas, e de alguma maneira parecia que aqueles monstros estavam
pulando da tela e avançando contra a assistência. E aquilo era acompanhado por
uma espécie de som rastejante, seco, que quase fez enlouquecer as crianças, as
quais, naturalmente, debandaram. Muitas se machucaram ao fugir da sala, e não
creio que alguma pregara olhos naquela noite. Houve terrível reboliço na
aldeia. Naturalmente, as mães lançavam grande parte da culpa sobre o pobre
senhor Farrer, e acredito que se tivessem podido forçar os portões os pais
quebrariam todos os vidros das janelas da abadia. E, agora, eis o que é senhor
Karswell: é esse o abade de Lufford, meu caro, e podes imaginar como apetecemos
sua amizade.
—
Sim, acho que o homem tem todas as características dum perfeito criminoso — disse
o anfitrião. — Lamentaria quem entrasse na sua lista negra.
—
Será esse o mesmo homem ou estarei confundido com outra pessoa? — Perguntou o
secretário (que durante algum tempo estivera com a cara franzida como alguém
que tenta se lembrar dalguma coisa). — Não foi ele o camarada que publicou uma “História
da Feitiçaria” há algum tempo, dez anos ou mais?
—
Foi. Lembras das críticas ao livro?
—
Certamente que me lembro. E o que é interessante, conheci o autor de uma das
mais incisivas. E tu também. Deves te lembrar de John Harrington. Estava na
universidade então.
—
Oh, lembro-me muito bem, embora não me pareça que o vira nem ouvido falar de si
desde que deixei a universidade até o dia em que li a notícia do inquérito.
—
Inquérito? — perguntou uma das senhoras — O que aconteceu?
—
Ora, o que aconteceu foi que caiu de árvore e quebrou o pescoço. Mas o enigma
era o que o induziria a subir ali. Foi um caso misterioso, podes crer. Vê só
aquele homem, que não era atleta nem coisa parecida, e que até então não
demonstrara sinal de excentricidade, voltando a casa tarde da noite numa
estrada rural, ninguém perto, bem conhecido e estimado no lugar, e de repente
começou a correr como louco, perdeu o chapéu e a bengala, e finalmente trepou
numa árvore difícil de subir, que crescia na margem da valeta. Um ramo podre
cedeu e o homem caiu e quebrou o pescoço. E ali foi encontrado na manhã
seguinte, com a mais espantosa expressão de medo no rosto. Era bem evidente,
naturalmente, que fora perseguido por algo, e o povo falou de cães selvagens ou
feras fugidas de algum circo. Mas nada se conseguiu apurar nesse sentido. Isso
foi em 1889 e creio que seu irmão, Henry, de quem também me lembro quando
estava em Cambridge, mas provavelmente não te lembras, até hoje tenta descobrir
uma pista ou explicação. Naturalmente, insiste que houve dolo no caso. Mas não
sei. É difícil compreender como possa haver.
Depois
de algum tempo, a conversa recaiu na “História da Feitiçaria”.
—
Chegaste a examinar o livro? — perguntou o dono da casa.
—
Sim — respondeu o secretário — Cheguei a ler.
—
E era assim tão ruim quanto se pretendia?
—
Oh, em matéria de estilo e redação era um desastre. Merecia toda a crítica que
teve. Além disso era um livro perverso. O homem acreditava em cada palavra do
que dizia, e me engano muito ou experimentara a maior parte das receitas.
—
Só me lembro da crítica de Harrington. E devo dizer que se eu fosse o autor,
ela teria arrefecido minha ambição literária para sempre. Nunca mais ergueria a
cabeça.
—
Não teve esse efeito no caso presente. Mas vamos. São 3:30h. Tenho de sair.
A
caminho de casa, a esposa do secretário disse:
—
Espero que aquele homem horrível nunca descubra que senhor Dunning teve algo a
ver com a rejeição à conferência.
—
Não creio que haja muita probabilidade disso — disse o secretário. — Dunning e
nenhum de nós não o mencionará porque é um assunto confidencial. Karswell não
saberá o nome porque Dunning até agora não publicou sobre a matéria. O único
perigo de Karswell descobrir é se perguntou ao pessoal do museu Britânico, onde
tinha o hábito de consultar manuscrito sobre alquimia. Não posso pedir não mencionar
Dunning. Não achas? Isto os faria começar logo a mexericar. Esperemos que isso
não lhe aconteça.
No
entanto, senhor Karswell era homem astuto.
Tudo
isso vai à guisa de prólogo. Uma tarde, bastante depois na mesma semana, senhor
Edward Dunning voltava do museu Britânico, onde se ocupara com pesquisa, à
confortável casa no subúrbio onde morava só, e que era cuidada por duas
excelentes mulheres que havia muito estavam com ele. Nada há a acrescentar, para
o descrever, ao que se disse antes. Vamos segui-lo enquanto se retira pacatamente até a casa.
Um
trem o levou a uma ou duas milhas de distância de sua residência, e um bonde o
conduziu mais um trecho. A linha terminava num ponto a cerca de 300m de sua
porta. Estava cansado de ler quando entrou no carro. De fato, a luz não era
suficiente para permitir mais que estudar os anúncios nas vidraças que ficavam
na frente quando se sentou. Como não é de estranhar, os anúncios daquela linha
de bonde eram objeto de sua frequente contemplação, e, com a possível exceção
do brilhante e convincente diálogo entre senhor Lamplough e um eminente KC, sobre
salina pirética, nenhum merecia especial atenção. Enganei-me. Havia um no canto
do carro mais afastado dele que não lhe parecia familiar. Era em letras azuis
sobre fundo amarelo, e tudo o que podia distinguir era o nome, John Harrington,
e algo que parecia uma data. Não podia ter interesse saber o resto, mas assim
mesmo, quando o carro se esvaziou, teve curiosidade bastante para mudar de
lugar até poder o ler bem. Se sentiu até certo ponto recompensado pelo esforço.
O anúncio não era insólito. Estava assim redigido: Em memória de João
Harrington, FSA, de Laurels, Ashbrooke. Morto em 18 de setembro de 1889. Foram-lhe concedidos três meses.
O
carro parou. Senhor Dunning, ainda contemplando as letras azuis sobre fundo
amarelo, foi chamado à realidade por uma palavra do condutor avisando do fim da
linha.
— Perdão. Estava olhando aquele anúncio. É
muito esquisito. Não é?
O
condutor leu devagar.
—
Palavra que nunca o vira antes. Não é remédio. Não é? Parece que alguém quis
fazer uma gracinha. — Pegou um trapo e o esfregou, não sem saliva, nos dois
lados do vidro — Não é coisa que se possa apagar; parece que foi impresso no
vidro, quero dizer, que está regular. Não achas?
O
senhor Dunning o examinou, esfregou com a luva, e concordou.
—
Quem se encarrega destes anúncios e dá licença para eles serem afixados?
Gostaria que se informasse disso. Tomarei nota das palavras.
Então
se ouviu um chamado do motorneiro:
—
Acorda, Jorge. Está na hora.
—
Está bem. Há uma novidade aqui. Vem ver este vidro.
—
O que há com o vidro? — perguntou o motorneiro, se aproximando. — Ora essa!
Quem é esse Harrington? Que negócio é esse?
—
Eu estava justamente perguntando quem é o responsável pela afixação de anúncio
neste bonde, e dizendo que seria bom indagar a respeito deste.
—
É tudo feito no escritório da companhia. É senhor Timms, acho, quem toma conta
disso. Quando recolhermos nesta noite, falarei a esse respeito, e talvez já
possa dizer alguma coisa amanhã, se calhar de viajar neste carro.
Isso
foi tudo o que aconteceu naquela tarde. O senhor Dunning ainda se deu ao
trabalho de procurar onde era Ashbrooke e verificou que ficava no Warwickshire.
No
dia seguinte foi à cidade novamente. O bonde, que era o mesmo, estava cheio
demais na manhã para permitir dar uma palavra ao condutor. Só pôde se
certificar de que o curioso anúncio fora retirado. O fim do dia trouxe novo
elemento de mistério ao caso. Perdera o bonde, ou então preferira ir a pé a
casa, mas a uma hora já bastante avançada, quando estava trabalhando no
escritório, uma das criadas disse que dois homens da companhia de bonde faziam
muito empenho em falar-lhe. Aquilo era uma consequência do anúncio, que tinha esquecido
quase completamente. Mandou entrar os homens. Eram o condutor e o motorneiro do
bonde. Depois de mandar servir refresco, perguntou o que senhor Timms dissera a
respeito do anúncio.
Disse
o condutor:
—
Senhor, foi por isso que tomamos a liberdade de vir te incomodar. Senhor Timms,
William aqui que diga, deu em paus e pedras quando lhe falamos. Que não havia
anúncio como aquele e que não fora encomendado, pago nem afixado. Nada. Que o
deixássemos em paz, e se queríamos fazê-lo de tolo, roubando o tempo. Eu disse:
“Então, peço o favor de vir ver, senhor Timms. É claro que se não estiver lá,
podes me chamar os nomes que quiseres”. Ele disse: “Está certo, vamos até lá”.
E foi mesmo. Agora, quero só que me diga, senhor, se aquele excomungado
anúncio, ou seja o que for, com o nome Harrington, não estava ali bem à vista,
letras azuis no vidro amarelo, e como eu disse na ocasião, e o senhor concordou
comigo, parecia impresso regularmente no vidro, porque, se está lembrado, eu o
esfreguei com um trapo.
—
Certamente que me lembro, e muito bem. E então?
—
Muito bem diz o senhor, mas não acho. O Sr. Timms entrou no carro com uma luz —
não, disse ele a Guilherme para segurar a luz fora. Ele perguntou: “E agora? Onde está o famoso
anúncio do qual já se falou tanto?”. Eu disse: Ei-lo aqui! E pousei a mão nele.
O
condutor fez uma pausa. Disse o senhor Dunning:
—
Então desapareceu, suponho. Quebrado?
—
Quebrado? Nada disso! Não havia, pode crer, sinal das letras azuis que estavam vidro. Mas não
adianta ficar falando. Nunca vi algo assim. William aqui que... Mas de que
adianta insistir?
—
E o que disse o Sr. Timms?
—
Ora! Fez o que eu lhe dissera. Chamou-me de tudo o que lhe veio à cabeça, e não
posso me queixar por isso. Mas o que pensamos, eu e William, foi que, como o
Sr. tomou nota da história... daquelas palavras...
—
Tomei. E tenho aqui a nota. Querem que eu vá falar com senhor Timms
pessoalmente e mostrar? Foi para isso que se lembraram de vir?
—
Ora aí tem. Eu não te disse? — exclamou Guilherme. — Estamos lidando com um
cavalheiro. Foi o que eu te disse. E agora, George, achas que perdemos nosso
tempo vindo nesta noite?
—
Está bem, William. Não é preciso dar a entender que tiveste de me arrastar até
aqui. Vim de boa vontade. Mesmo assim, senhor, não deveríamos ter vindo roubar
teu tempo. Mas se acontecer passar no escritório
da companhia na manhã e quiser dizer a senhor Timms o que viu pessoalmente,
ficaríamos muito gratos pelo incômodo. Bem vê, não é lá por causa dos nomes que
nos chamaram, mas se lhes meter na cabeça que andamos vendo coisa que não
existe, e uma coisa puxa a outra, quem sabe qual pode ser o resultado? Acho que
me compreende.
E
com outras explicações do acontecido, Geroge, conduzido por William, deixou o
aposento.
A
incredulidade de senhor Timms, que conhecia de vista senhor Dunning,
desapareceu no dia seguinte, quando lhe disse e mostrou o que sabia, e toda
nota desabonadora que pudesse ser feita sobre a conduta de William e George não
continuaram a figurar nos livros da companhia. Mas não houve explicação ao
caso.
O
interesse de senhor Dunning no assunto se manteve vivo por causa de um
incidente na tarde seguinte. Caminhava de seu clube à estação ferroviária,
quando observou na frente um homem com as mãos cheias de folheto, desses que as
grandes casas mandam distribuir, por agentes, aos transeuntes.
Aquele
agente não escolhera uma rua movimentada para agir. De fato, senhor Dunning não
o viu entregar folheto até chegar ao local. Então um dos reclames lhe foi
metido nas mãos quando passava. A mão que o entregou tocou na sua e ele sentiu
uma espécie de pequeno choque ao toque. Pareceu extraordinariamente áspera e
quente. De passagem, olhou o entregador mas a impressão que teve foi tão vaga
que, por mais que tentasse recordar a fisionomia mais tarde, não conseguiu.
Andava depressa, e sem se deter lançou um olhar ao papel. Era azul. O nome de
Harrington em grandes maiúsculas lhe chamou a atenção. Parou, assombrado, e pôs
os óculos. No mesmo instante, o folheto lhe foi arrancado da mão por um homem
que passava apressado em sentido contrário e que desapareceu como por encanto.
Voltou correndo alguns passos, mas não viu o transeunte nem o distribuidor de
folheto.
Foi
com humor bastante pensativo que senhor Dunning entrou, no dia seguinte, na
sala de manuscritos escolhidos do museu Britânico, e encheu a requisição para
Harley 3586 e alguns outros volumes. Depois de alguns minutos os volumes lhe
foram entregues, e estava pousando sobre a carteira o primeiro que desejava
consultar, quando pareceu ouvir alguém sussurrar seu nome atrás.
Voltou-se apressadamente, e, em o fazendo, jogou
no chão, com o braço, a pasta de papel. Não viu pessoa que conhecesse, exceto o
encarregado da sala, que o cumprimentou com a cabeça e tratou de apanhar os
papéis espalhados. Julgou tê-los todos e começaria a trabalhar, quando um
cavalheiro robusto, que estava na mesa atrás, e ia justamente se levantar para
sair, arrepanhando os pertences, tocou seu ombro dizendo: “Queres examinar
isto? Penso que te pertence”. E lhe estendeu um caderninho que estava faltando.
“É meu. Muito obrigado”. Um momento depois o homem saiu da sala. Após terminar
o trabalho naquela tarde, senhor Dunning teve uma ligeira palestra com o
encarregado de serviço e aproveitou para perguntar quem era aquele cavalheiro
robusto.
—
É um homem chamado Karswell. Na semana passada perguntou a mim quem eram as
grandes autoridades em alquimia e eu, naturalmente, disse que eras o único no
país. Verei se posso encontra-lo ainda. Ele gostaria de te conhecer. Tenho
certeza.
—
Pelo amor de Deus! Nem penses nisso! — disse senhor Dunning. — Tenho particular
interesse em evita-lo.
—
Muito bem, então — disse o encarregado. — ele não vem aqui frequentemente. Sou
capaz de apostar que não irá te encontar.
Mais
de uma vez, ao ir a casa, nesse dia, senhor Dunning
se confessou que não estava considerando com a habitual boa disposição a
perspectiva de uma noite solitária. Pareceu-lhe que algo mal definido e
impalpável se interpusera entre ele e seus semelhantes Tinha vontade de se
sentar bem encostado aos companheiros no trem e no bonde, mas quis a sorte que
tanto o trem quanto o bonde estivessem notavelmente vazios. O condutor George
estava pensativo, e parecia absorto em cálculo sobre o número de passageiro. Ao
chegar a casa, Dunning encontrou doutor Watson, seu médico, à porta.
—
Tive de desorganizar teus arranjos domésticos. Sinto dizer, Dunning. Ambas as
criadas estão hors combat. A verdade é que tivemos de enviá-las ao
hospital.
—
Santo Deus! O que elas têm?
—
Parece intoxicação alimentar. Não foste atacado, é evidente, pois não estarias
em pé. Acho que ficarão boas.
—
Ora, ora! Tens ideia de como adoeceram?
—
Disseram que compraram marisco de um peixeiro e os comeram no jantar. É
curioso. Andei indagando e nenhum peixeiro apareceu nas outras casas desta rua.
Não pude mandar avisar-te. Ficarão uns dias de molho. Vem jantar comigo nesta
noite e combinaremos como será o resto. Às 8h. Não te preocupes.
A
noitada solitária estava assim evitada, mas à custa de um pouco da aflição e aborrecimento,
é verdade. Dunning passou umas horas bastante agradáveis com o médico, que era
um vizinho bastante recente, e voltou â sua residência solitária cerca das 11:30h.
A noite que passou não é das que se pode
recordar com satisfação. Deitou-se e apagou a luz. Estava imaginando se a
mulher chegaria bastante cedo para lhe dar a água quente na manhã seguinte,
quando ouviu o ruído inconfundível da porta do escritório se abrindo. Nenhum
passo se seguiu no corredor, mas o som teria causa dolosa, porque tinha a
certeza de que fechara a porta na tarde, depois de guardar os papéis na
escrivaninha. Foi mais a vergonha do que coragem o que o induziu a sair ao
corredor e se curvar sobre o corrimão da escada, metido no roupão, para
escutar. Não havia luz visível. O ruído não se repetiu. Somente uma baforada de
ar morno, quente mesmo, lhe envolveu, um
instante, as canelas. Voltou e resolveu se fechar, a chave, no quarto. No
entanto, houve ainda mais coisas desagradáveis. Fosse porque a companhia
suburbana achasse que não era necessário luz nas primeiras horas da madrugada e
interrompesse a corrente, ou porque houvesse defeito no medidor, o fato é que,
de qualquer maneira, a luz elétrica faltava. O lógico era procurar um fósforo e
consultar o relógio. Podia bem verificar quantas horas de desconforto o
esperavam. Assim, meteu a mão no canto bem conhecido sob o travesseiro. Somente
não avançou tanto quanto de costume. O objeto que encontrou era, de acordo com
a descrição, uma boca, com dente e pelo em volta, e, segundo declarou, não era
a boca de ser humano. Não me parece necessário imaginar o que fez ou disse, mas
se achou num quarto contíguo, com a porta trancada a chave e o ouvido colado à
fechadura, antes de se sentir plenamente consciente de novo. E ali passou o
resto daquela noite memorável, esperando a cada momento ouvir mexer na porta,
mas nada aconteceu.
A
volta ao quarto, na manhã, foi precedida de muita precaução e susto. Felizmente,
a porta ficara aberta e as cortinas levantadas, pois as criadas foram retiradas
da casa antes da hora de as correr. Para encurtar a história: não havia sinal
de estranho dentro. O relógio, também, estava no lugar costumeiro. Nada estava
desarrumado, somente a porta do guarda-roupa se abrira, conforme costumava
acontecer. Enfim, um toque de campainha à porta traseira anunciou a chegada da
diarista, que fora encomendada na noite anterior, e, depois de lhe dar entrada
senhor Dunning, se sentiu com ânimo para fazer busca no resto da casa, que foi
igualmente infrutífera.
O
dia assim começado se arrastou tristemente. Não se atreveu a ir ao museu.
Apesar do que o encarregado dissera, Karswell podia aparecer lá, e Dunning
sentia que não lhe seria possível enfrentar um desconhecido provavelmente
hostil. Sua própria casa lhe parecia odiosa. Não lhe agradava a ideia de
incomodar de novo o doutor. Gastou algum tempo numa curta visita ao hospital e
se sentiu ligeiramente animado com as boas notícias sobre as duas criadas.
Cerca da hora do almoço se dirigiu ao clube, sentindo de novo um lampejo de
satisfação ao avistar o secretário da associação. Durante o almoço Dunning
contou ao amigo sua aflição mais material, mas não teve coragem de falar sobre
as que diziam mais diretamente sobre o espírito. O secretário disse:
—
Meu caro amigo, que contratempo! Olha aqui: estamos sós em casa. Vem ficar
conosco. É isso mesmo! Nada de desculpa. Manda tuas coisas nesta tarde.
Dunning
foi incapaz de resistir. Na realidade, já estava começando a se sentir muito
preocupado, conforme o tempo se passava, sobre o que o esperaria durante a
noite. Se sentia quase contente quando correu a casa para arrumar uma maleta.
Os
amigos, quando tiveram tempo de o observar bem, ficaram espantados com o
aspecto abatido, e fizeram o possível para o animar. Não tão sem resultado. Mas
quando os dois homens estavam fumando sozinhos, mais tarde, Dunning ficou de
novo sombrio. Subitamente disse:
—Gayton,
acho que aquele alquimista sabe que fui eu quem fez com que sua conferência
fosse rejeitada.
Gayton
assobiou.
—
O que te levou a pensar assim?
Dunning lhe contou a conversa que tivera com o
encarregado do museu, e Gayton não pôde deixar de concordar que a suposição
parecia acertada.
—Não
que eu me importe muito, somente seria um aborrecimento se nos encontrarmos. É
um sujeito mal-humorado, ao que me consta.
A
conversa esmoreceu de novo. Gayton estava cada vez mais impressionado com a
depressão que notava na fisionomia e na atitude de Dunning, e finalmente,
embora fazendo um esforço considerável, perguntou, a queima-roupa, se havia
algo sério que o preocupasse. Dunning teve uma exclamação de alívio. Estava
ansioso para tirar isso da cabeça.
—Sabes
algo sobre um homem chamado John Harrington?
Gayton ficou desnorteado e no momento pôde
apenas perguntar o motivo.
A
história toda das aventuras de Dunning veio, então. Ele discorreu sobre o que
acontecera no bonde, na casa e na rua, a perturbação de espírito que se abatera
e ainda persistia. E terminou com a pergunta com a qual começara.
Gayton
não sabia responder. Contar a história da morte de Harrington talvez seria
correto. Somente Dunning estava em estado de excitação nervosa, a história era
bastante tétrica, e não podia deixar de pensar se há traço de ligação entre os
dois casos, na pessoa de Karswell.
Era
uma coisa difícil de admitir para um cientista, mas podia ser mascarada pela
frase “sugestão hipnótica”. Enfim, resolveu que a resposta naquela noite deveria ser guardada. Conversaria
com a esposa sobre a situação. Assim, disse que conhecera John Harrington em
Cambrigde e que ele morrera de repente em 1889, acrescentando alguns detalhes
sobre o homem e sobre suas obras publicadas. Conversou de fato sobre o assunto
com senhora Gayton, e, como previra, ela chegou imediatamente à conclusão que
antecipara. Foi ela quem lhe lembrou o irmão sobrevivente, Henry Harrington, e,
também, sugeriu que ele seria encontrado por intermédio dos amigos que
visitaram no dia anterior. Gayton sugeriu que poderia ser uma pista errada.
—Isso
se pode verificar por intermédio dos Bennett, que o conhecem — replicou a Sra.
Gayton. E tratou de procurar os Bennett
no dia seguinte.
Não
é necessário contar com mais minúcia como Henry Harrington e Dunning foram
postos em contato mútuo.
A
próxima cena que merece contada é a conversa entre ambos. Dunning contara a
Harrington a estranha maneira pela qual o nome do morto chegara a seu
conhecimento, e falara também um pouco de suas subsequentes aventuras. Depois,
perguntara se Herrington estava disposto, em troca, a recordar alguma
circunstância associada à morte do irmão. É possível imaginar a surpresa de
Harrington ao ouvir o que Dunning lhe contou, mas a resposta foi rápida:
—
John — disse ele — ficara inegavelmente em estado muito curioso, de vez em
quando, nas semanas que antecederam a catástrofe. Houve várias coisas. A
principal era a impressão que tinha de que ser seguido. Não há dúvida que era
um homem impressionável, mas nunca tivera imaginação antes. Não abandonar a ideia
de que houve algo premeditado, e o que
me constaste sobre ti me lembra muito meu irmão. Podes achar algum traço
de ligação?
—
Há um que toma vagamente forma em meu espírito. Disseram-me que seu irmão
criticara muito severamente um livro pouco antes de morrer, e justamente há
pouco tive a infelicidade de atravessar o caminho do homem que escreveu esse
livro, e como ficou muito ressentido.
—
Não me digas que esse homem se chama Karswell!
—
Por que não? É exatamente esse o nome.
Henry
Harrington se recostou na cadeira.
—
Isto basta. Agora tenho de me explicar melhor. Por algumas coisas que disse,
tenho certeza que meu irmão John estava começando a acreditar, a contragosto,
que Karswell estava no fundo de todo seu aborrecimento. Quero dizer algo que me
parece ter relação com o caso. Meu irmão era um grande músico e costumava
assistir a concertos na cidade. Três meses antes de sua morte, voltou de um
desses concertos e me deu o programa para eu ver. Um desses programas
analíticos. Sempre os guardava. Disse: “Quase fiquei sem este. Acho que devo o
ter deixado cair. Seja como for, estava procurando sob minha cadeira e nos
bolsos, quando meu vizinho me ofereceu o seu. Disse que podia me dar porque não
mais o utilizaria, e saiu logo em seguida. Não sei quem era. Um homem
corpulento, bem escanhoado. Teria pena de ficar sem o programa. É claro que
poderia comprar outro, mas este nada custou”. Em seguida, me disse que se
sentira muito enervado, tanto a caminho do hotel quanto durante a noite. Estou
ligando umas coisas. Algum tempo depois, ele estava arrumando os programas,
pondo-os em ordem, para mandar encadernar. E foi justamente encartado naquele —
que ele mal olhara — que ele encontrou, logo entre as primeiras folhas, uma
tira de papel, com uns caracteres muito curiosos escritos em azul e vermelho,
desenhados com muito cuidado, e que pareciam letras rúnicas mais que qualquer outra
coisa. Disse: “Ora! Isto deve pertencer ao gorducho de meu vizinho. Parece
coisa que vale a pena devolver. Deve ser uma cópia de alguma inscrição. É
evidente que alguém teve trabalho com isto. Como poderei encontrar o endereço?”.
Conversamos sobre o caso durante um momento e concordamos que não valia a pena
pôr um anúncio em jornal. E que o melhor era meu irmão procurar o homem no
próximo concerto, ao qual iria em breve. O papel estava em cima da folha do
programa e estávamos junto à lareira. Era uma noite fria e ventosa de inverno.
Suponho que a porta se abriu, embora eu não notasse, e uma rajada quente passou
de repente entre nós, levantou o papel e o atirou ao fogo. Era um papel fino,
que ardeu e subiu em cinza na chaminé em menos de um segundo. Eu disse: “Já não
poderás devolvê-lo”. Ele nada disse durante um minuto. Depois falou
bruscamente: “Não posso. Mas não sei por que ficarás repetindo isso”. Observei
que não o dissera mais de uma vez. “Não mais de quatro, queres dizer”, foi tudo
o que ele disse. Lembro-se de tudo isso muito claramente, nem sei bem por quê,
e agora vamos ao ponto que interessa. Não sei se chegaste a examinar aquele
livro de Karswell, que meu infortunado irmão criticou. Não é provável que o tenhas feito, mas eu o examinei, tanto
antes quanto depois da morte dele. Da primeira vez, zombamos juntos. Não tinha
estilo literário, infinitivos a torto e a direita, e tudo o que dá calafrio a
um homem de Oxford. Depois, nada havia que o homem não embrulhasse, misturando
mitos clássicos com histórias da Legenda Dourada e transcrições de
costumes selvagens de hoje, tudo muito correto, sem dúvida, para quem sabe
lidar com aquilo, mas não sabia. Parecia colocar a Legenda Dourada e o Ramo
Dourado no mesmo nível, e acreditar em ambos. Uma triste demonstração, em suma.
Pois bem, depois daquela desgraça, peguei o livro de novo. Não era melhor do
que antes, mas a impressão que deixou dessa vez em meu espírito foi diferente.
Eu suspeitava, como já disse, que Karswell tinha má vontade contra meu irmão, e
que era, de certa maneira, responsável pelo que acontecera. E agora o livro me
parecia ser, na realidade, uma obra
muito sinistra. Chamou-me particularmente a atenção um capítulo no qual ele
falava de lançar o sortilégio das runas sobre pessoas, fosse com o fito de
conquistar a afeição ou de as afastar do caminho, talvez mais especialmente
essa última finalidade: falava de tudo isso de maneira que, na realidade, me
parecia indicar verdadeiro conhecimento da matéria. Não tenho tempo de entrar
em detalhes, mas a conclusão é que estou certo, por informações obtidas, de que
o homem atencioso do concerto era Karswell e suspeito, mais que suspeito, que o
papel em apreço era de importância. E acredito que se meu irmão pudesse devolvê-lo
ainda estaria vivo. Assim sendo, me ocorre perguntar se tens objeção a opor ao
que acabei de dizer.
À
guisa de resposta, Dunning tinha o episódio da sala dos manuscritos do museu
Britânico para contar.
—
Então ele te entregou realmente alguns papéis. Já os examinaste? Não? Porque
devemos, se permitires, examinar imediatamente, e com muita atenção.
Foram
à casa ainda desocupada. Desocupada porque as duas criadas ainda não estavam em
condição de voltar ao trabalho. A pasta de papel estava se empoeirando sobre a
escrivaninha. Dentro dela estavam os pequenos blocos de papel que usava para
tomar nota. E, de um, quando o levantou, caiu e saiu voando na sala, com
insólita rapidez, uma tira de papel de seda. A janela estava aberta, mas
Harrington a bateu justamente a tempo de evitar a saída do papel, que agarrou e
disse:
—
Bem me parecia que deve ser coisa idêntica à que foi dada a meu irmão. Tens de
prestar atenção, Dunning. Isto pode significar algo sério para ti.
Se seguiu longa conferência.
O papel foi minuciosamente examinado. Conforme Harrington dissera, os
caracteres gravados nele pareciam mais rúnicos que qualquer outra coisa, mas
eram indecifráveis para dois homens, e ambos hesitaram em copiá-lo, com medo,
conforme confessaram, de perpetuarem um mau desígnio que escondessem. Assim
ficou impossível (se me permite me antecipar um pouco) descobrir o que rezava
aquela curiosa mensagem ou recado. Tanto Dunning quanto Harrington estavam
firmemente convencidos de que tinha o efeito de colocar o dono sob as mais
desagradáveis influências. Ambos concordaram que devia ser devolvido à
procedência donde viera, e ainda, que a única maneira segura e certa de o fazer
seria pessoalmente. Nesse caso, era necessário imaginar algo porque Karswell
conhecia Dunning de vista. Devia, ao menos, alterar a fisionomia raspando a
barba. Mas o golpe não seria vibrado antes que eles pudessem agir? Harrington
pensou que podiam calcular a data. Sabia a data do concerto em que a má sorte
fora lançada contra o irmão: 18 de junho. A morte se dera em 18 de setembro.
Dunning lhe lembrou que a inscrição no vidro do bonde aludia a um prazo de três
meses. Acrescentou. Com m riso contrafeito:
—
Talvez a minha também seja uma letra para vencimento a três meses de prazo.
Acho que posso verificar isso por meu diário. Posso sim. O caso do Museu foi em
23 de abril. Isso nos leva a 23 de julho. Agora, bem vês, se torna de extrema
importância, para mim, ouvir tudo o que me possa contar a respeito do andamento
da perturbação de teu irmão, se te for possível falar sobre isso.
— É claro! A sensação de
ser perseguido sempre que estava sozinho era a coisa mais desagradável para ele.
Depois de algum tempo, passei a dormir em seu quarto e ele se sentiu melhor com
isso. Assim mesmo, falava muito durante o sono. A que respeito? Será necessário
nos determos nesse pormenor, ao menos antes que tudo esteja acertado? Não me
parece. Mas posso dizer o seguinte: recebeu duas encomendas, via correio,
durante aquelas semanas, ambas com o carimbo de Londres e endereçadas com
caligrafia comercial. Uma era uma gravura de Berwick, arrancada dum livro, na
qual se vê uma estrada ao luar e um homem caminhando nela, seguido por uma
horrenda figura fantástica. Sob ela estavam transcritos os versos do conto do
velho marinheiro, aos quais suponho que a gravura se refere, com deferência a
alguém que, tendo olhado a trás:
“Anda,
Mas
não vira a cabeça
Porque
sabe que um demônio assustador
Está
logo atrás de seus passos”.
—
A outra foi um calendário, desses que as casas comerciais frequentemente
mandam. Meu irmão não lhe prestou atenção, mas o examinei depois de sua morte e
descobri que de, 18 de setembro em diante, todo o resto fora arrancado. Talvez
cause admiração ter ele saído sozinho na noite em que foi morto, mas o fato é
que, durante os últimos dez dias de sua vida, ele se vira completamente livre
daquela sensação de estar sendo seguido ou vigiado.
O
fim da entrevista foi aquele. Harrington, que conhecia um vizinho de Karswell,
pensou ter ali um meio de lhe observar os movimentos. A parte de Dunning seria
estar pronto para se atravessar no caminho de Karswell a qualquer momento,
guardando o papel em lugar seguro e a mão.
Separaram-se.
As semanas seguintes foram uma rude prova para os nervos de Dunning: a
intangível barreira que parecera se erguer em volta, no dia em que recebera o
papel, se transformara gradualmente em chocante escuridão que lhe cortava os
meios de reação aos quais se poderia supor que recorresse. Ninguém aparecia para
sugeri-los e parecia privado de toda iniciativa. Esperou, com indescritível
ansiedade, enquanto maio, junho, e os primeiros dias de julho transcorriam, um
aviso de Harrington. Mas, durante todo esse tempo, Karswell não arredara pé de
Lufford.
Enfim,
quando faltava menos de uma semana da data que acabara considerando a
derradeira de sua permanência neste mundo, chegou um telegrama:
“Embarque
na estação de Vitória, no trem noturno de terça-feira a Dover. Não falte. Irei procurá-lo
nesta noite. Harrington”.
Chegou
conforme avisara e combinaram um plano. O trem saía da estação de Vitória às 9h
e a última parada antes de Dover era Croydon West. Harrington tomaria o mesmo
vagão que Karswell em Vitória, e esperaria Dunning em Croydon, chamando-o por
um nome previamente combinado, se houvesse necessidade. Dunning, tão disfarçado
quanto possível, não devia usar marca ou etiqueta na bagagem de mão, e devia a
todo custo portar o papel.
Não
tento descrever a agitação de Dunning enquanto esperava na plataforma da
estação de Croydon. A sensação de perigo durante os últimos dias só fizera
aumentar, devido ao fato de que a pesada nuvem que o envolvia se tornara
sensivelmente mais leve. Sabia que aquele alívio era mau presságio, e se
Karswell lhe escapasse agora, toda esperança estaria perdida. E havia muita
possibilidade disso acontecer. O próprio boato da viagem podia ser um
estratagema. Os vinte minutos durante os quais andou dum lado a outro na
plataforma, e perseguiu todos os porteiros com perguntas sobre o trem noturno,
foram dos mais amargos Contudo, o trem chegou e Harrington estava a uma das
janelas. Era importante, naturalmente, que não houvesse reconhecimento de parte
a parte. Por isso Dunning entrou na extremidade mais afastada do corredor do
vagão, e só gradualmente se encaminhou ao local onde estavam Harrington e
Karswell. Ficou satisfeito, de maneira geral, em verificar que o trem estava
longe de vir cheio.
Karswell
estava de sobreaviso, mas não deu sinal de o reconhecer. Dunning tomou o lugar colado
ao que ficava diante, e tentou, inutilmente a princípio, depois com crescente
domínio de suas faculdades, avaliar a possibilidade de fazer a cobiçada
transferência do papel. Em frente a Karswell, e ao lado de Dunning, estava um
montão de agasalho de Karswell, em cima do banco. Não adiantaria introduzir o
papel no meio deles, não estaria salvo, ou ao menos não se sentiria tranquilo,
se não arranjasse um meio de lhe entregar em mão e ele o aceitar. Havia uma
bolsa de mão aberta, com papel dentro. Poderia ele arranjar maneira de a
esconder, de maneira que talvez Karswell saísse do vagão sem ela, e depois
fingir que a achava e entregá-la? Esse era o plano que se apresentava mais
viável. Se pudesse ao menos se entender com Harrington! Mas isso não podia ser.
Os minutos passavam. Mais duma vez Karswell se levantou e foi ao corredor. Na
segunda vez, Dunning esteve a ponto de tentar fazer a bolsa de mão cair do
assento onde estava pousada, mas percebeu o olhar de Harrington e leu nele um
aviso. Karswell, do corredor, estava observando, provavelmente para ver se os
dois homens davam sinal de se conhecerem. Voltou, mas estava evidentemente
inquieto. Quando se levantou na terceira vez, uma esperança surgiu, porque algo
escorregou do lugar onde estivera sentado e caiu quase sem ruído no assoalho do
carro. Karswell saiu do compartimento e dessa vez se afastou no corredor.
Dunning apanhou o objeto que caíra e viu que a solução estava em suas mãos sob
a forma dum estojo cook com bilhete dentro. Esses estojos têm um bolso
na capa, e em menos de 1 minuto o papel do qual tanto temos ouvido falar estava
dentro do bolso daquele. Para que a operação fosse feita com mais segurança,
Harrington ficou em pé na porta do compartimento, vigiando. A coisa estava
feita, e feita a tempo, porque o trem começava justamente a reduzir a marcha para
parar em Dover.
Um
momento depois Karswell voltou ao compartimento. Quando entrou, Dunning,
conseguindo, sem saber bem como, dominar o tremor de voz, lhe estendeu o estojo
de bilhete, dizendo: Queres examinar isto? Penso que te pertence. Depois de
examinar rapidamente o bilhete que estava dentro, Karswell deu a resposta
desejada:
—É
meu, sim. Muito obrigado, cavalheiro. E guardou o estojo no bolso interno do
casaco.
Mesmo
nos poucos momentos que restavam —momentos de tensa ansiedade, porque nenhum
dos dois sabia o que aconteceria se o papel fosse encontrado prematuramente —,
ambos notaram que o vagão pareceu escurecer em volta e ficar mais quente; que
Karswell se mostrava inquieto e oprimido; que ele puxou a junto de si o rolo de
agasalho e depois o empurrou para trás como se o repelisse, e que, então, se
endireitou no assento e olhou ansiosamente aos dois. Eles, com pungente
ansiedade, se ocuparam a reunir os pertences, mas ambos pensavam que Karswell
estava a ponto de lhe falar quando o trem parou em Cidade de Dover. Era natural
que no curto espaço entre a cidade e o cais ambos fossem ao corredor.
Saltaram
no cais, mas o trem vinha tão vazio que foram forçados a demorar na plataforma
até que Karswell passasse à frente, com seu carregador a caminho do navio, e só
então puderam trocar sem perigo um aperto de mão e uma palavra de
congratulação. O efeito sobre Dunning quase o fez desmaiar. Harrington o fez se
encostar à parede, enquanto avançava algumas jardas em direção à prancha do
navio, à qual Karswell ia chegando. O homem que estava na ponta da prancha
examinou o bilhete, e, carregado com os agasalhos, Karswell entrou a bordo. De
repente o oficial o chamou:
—
Queiras desculpar, senhor. O outro cavalheiro mostrou o bilhete?
—
Que diabo queres dizer com o outro cavalheiro? — respondeu a voz rude de
Karswell, da coberta.
O
homem se curvou e o olhou.
—
O diabo? Bom, não sei, certamente...
Harrington
o ouviu dizer consigo e depois alto:
—
Foi engano, senhor. Deve ser por causa dos agasalhos! Queiras desculpar!
E
em seguida, a um subordinado que estava junto:
—
Era um cachorro que levava, ou o que seria? Engraçado. Seria capaz de jurar que
não estava sozinho. Bem, seja lá o que for, isso é lá com eles a bordo. Lá vai
ele. Daqui a uma semana teremos os fregueses das férias.
Dentro
de cinco minutos mais, nada restava além das luzes no navio que se afastava, a
fileira de lampiões de Dover, a brisa noturna e a Lua.
Durante
muito tempo, os dois ficaram sentados em seu quarto do hotel Lord Warden. A
despeito de se terem visto livres daquilo que lhes causava maior ansiedade, sentiam-se
oprimidos pela dúvida, e não pouco. Estariam justificados em mandar assim um
homem à morte, como acreditavam ter feito? Não deveriam ao menos avisá-lo?
Harrington disse:
—
Não! Se é o assassino que penso, fizemos nada mais que justiça. Contudo, se te
parece melhor... Mas como e onde poderás avisá-lo?
—
O seu destino é apenas Abbeville — disse Dunning. — Vi nos bilhetes. Se
telegrafássemos aos hotéis de lá, via guia Joanne?
—
Examina o estojo de bilhete, Dunning. Eu me sentiria mais tranquilo. Hoje é 21.
Ele terá um dia. Mas receio que ele tenha caído na escuridão.
E assim deixaram os telegramas para serem
passados na gerência do hotel.
Não
se sabe bem se chegaram ao destino, ou se, caso chegaram, foram compreendidos.
Tudo o que se sabe é que, na tarde do dia 23, um viajante inglês, examinando a
frontaria da igreja de São Volfrão, em Abbeville, a qual estava então sofrendo
grande reparo, foi atingido na cabeça e morto instantaneamente por uma pedra
caída dos andaimes erguidos em volta da torre do noroeste. Isto num momento em que
não havia, como claramente provado, trabalhador no andaime naquele momento. E
os papéis do viajante o identificavam como sendo senhor Karswell.
Só
queremos acrescentar um pormenor. No leilão de espólio de Karswell, uma coleção
de gravura de Berwick, vendidas no estado, foi adquirida por Harrington. A
página com a gravura do viajante e do demônio estava, como esperava, mutilada.
Também, depois de prudente intervalo, Harrington repetiu a Dunning algumas
coisas que ouvira o irmão dizer em sonho. Mas não foi muito longe antes que
Dunning o mandasse se calar.
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