SOB AS ESTRELAS - Conto Trágico - Júlia Lopes de Almeida
SOB
AS ESTRELAS
Júlia
Lopes de Almeida
(1862
– 1934)
A Olavo Bilac
O
padre Júlio voltava do Seminário, de coroa aberta e de batina, pronto para
servir a Deus na sua vila mineira, alcandorada sobre precipícios de verdura e
rochedos abruptos. Alto, branco e esguio, figura mística de quem sonha e
perscruta mistérios, ele derramava o olhar pelas penedias da encosta,
tachonadas de flores de quaresma, sem ânimo de perguntar pela sua amada de
outrora, o seu único amor, aquela pobre Ianinha, tão ardente e apaixonada, que
o enlaçava nos seus braços flexíveis como hastes de hera, queimando-o com o
fulgor dos seus olhos negros de mineira inculta e imaginosa.
Juntavam-se
de noite nos campos, ela fugida do casebre da avó cabocla, ele da casa do tio
padre. Amavam-se sob as estrelas.
Ianinha
sabia contos do sertão, histórias de feiticeiras e lobisomens, que lhe contava
risonha, achando graça nos seus terrores. Ele beijava-lhe a garganta túmida,
pedindo-lhe que se calasse.
Tinham
começado a mocidade juntos, ela era mais moça, mas muito mais precoce; ele
adorava-a de joelhos, já um pouco voltado para o culto divino. De repente
interrompeu-se o idílio: o tio padre exigiu que o sobrinho fosse para o seminário.
Das fugas noturnas só eram sabedoras as estrelas. Júlio, tímido, obedecendo à
vontade do velho e impelido mesmo pelo seu espírito religioso, despediu-se da
amante com resignação. Ela é que teve transportes de louca, que se colou a ele
como uma cobra a um tronco, dizendo-lhe que o amava, que lhe dera a sua virgindade,
a sua alma, que a vida era aquilo, a liberdade, o beijo, o amor!
A
tentação foi vencida, Júlio deixou-a sozinha, soluçando alto, na noite escura e
silenciosa.
Agora,
olhando para aquelas penedias, para aqueles vales enormes, pensava que antes a
Ianinha tivesse morrido... e era essa a sua esperança! Queria ser puro, queria
ser santo. Voltara-se para o Céu com fé arrojada; detestava o mundo e a carne.
Vinha emundar a alma naquele mesmo desterro que enchera de beijos e abraços
pecaminosos. Nos seus êxtases a figura de laninha atravessava-lhe por vezes a
mente, como uma tentação diabólica e terrível, mostrando-lhe a alvura dos
dentes, a negrura das madeixas revoltas, a rijeza dos seios morenos...
Excomungava-a, amaldiçoava-a, enchia-se de cilícios, e caía chorando, contrito,
esmagado pelo remorso, numa alucinação dolorosa, sem achar meio de se purificar
daquele passado que o assombrava.
Antes
a Ianinha houvesse morrido... Para saber isso, e com medo de o perguntar, Júlio
foi ao cemitério, que era um canteiro, de pequeno. Ajoelhou-se em frente de
cada sepultura.
De
quem era esta? De quem era aquela? Perguntava. O coveiro sabia os nomes de
todos os enterrados. Morria-se tão pouco, ali!
Uma
era da tia Zefina, outra do Simeão, outra... Eram todos velhos, muito velhinhos
já. A Ianinha, então, vivia ainda!
Júlio
corou, com vergonha daquele pensamento cruel. O nome da moça queimar-lhe-ia os
lábios, se o dissesse, e, estava certo, toda a gente tomaria conta do seu
segredo. Não, não perguntaria por ela. E, abstrato, ajoelhou-se junto de uma
sepultura coberta de flores selvagens.
—
Esta é de uma criança, explicou o coveiro; não deveria estar enterrada em
sagrado, mas enfim...
O
padre ergueu o rosto longo e pálido, numa interrogação muda.
—
É do filho de uma cabocla, Ianinha. A peste não o batizou. De mais a mais
ninguém sabe quem era o pai. O povo afirma que era o diabo. Dizem que a voz do
povo é a voz de Deus... Quem sabe?
Júlio
baixou os olhos para a terra, cruzando as mãos com força sobre o coração. O seu
rosto, alvo e macilento, nada dizia, mas a batina estremecia ao arquejar do
busto curvado. Sabia bem... Do fundo daquela terra subia alguma coisa que o
chamava, que o solicitava e lhe dizia: “és meu!”
Aquelas
flores selvagens não eram uma inscrição, um nome que lhe acusava a paternidade?
O
dia caía gloriosamente. Franjas de ouro e mantos de púrpura arrastavam-se pelo
horizonte em nuvens grossas, embebidas de luz. Pelas penedias escarpadas as
bromélias erguiam os penachos cor de fogo; piteiras enormes eriçavam os
despenhadeiros, e, lá embaixo, o rio passava numa curva, caudalosamente,
refletindo o céu rubro, vermelho ele próprio como uma onda de sangue.
Toda
a terra parecia vitoriosa, erguendo as suas montanhas colossais, a sua
vegetação estupenda, o seu cheiro de força, de amor e de fertilidade.
Júlio
teve ímpetos de escavar a terra, arrancar de lá o corpo daquele desconhecido,
filho do seu amor e da sua carne, de chorar sobre os seus ossos despidos, de
colar-lhe na caveirinha branca os seus lábios profanos, de lhe dizer que havia
ternura no seu coração que debalde procurava tornar seco e estéril, que amava
nele a sua virilidade; a sua juventude, e aquela pobre Ianinha...
Nisto
levantou-se, frio e assustado. Como podia ele, religioso, padre, pensar na
tentação da carne, naquela criatura que estilara peçonha e dor por toda a sua
vida, aquela cúmplice do demônio, que assaltava sem temor os ninhos das
corujas, mostrando ao luar o negror das madeixas e a alvura dos dentes no riso
selvagem?
Antes
fosse ela a morta...
Demais,
não a enterrara ele para todo o sempre na lembrança?
Nessa
noite Júlio não dormiu. Voltava sem as ler as folhas do Breviário. Lá fora o
vento soprava em roncos e uivos e a lua sumia-se em nuvens fumacentas. Se
erguia o olhar, via sorrir-lhe o doce Jesus, do regaço materno, na parede em
frente.
Uma
criança, uma flor de carne e de sonho; que divina coisa!
E
ele tivera um filho, e não o vira nunca, e não o amara, e não o repousara sobre
o seu coração frágil, morada do pecado e da vergonha, e não lhe beijara os pés
acetinados, nem a boquinha já roxa pela morte!
Na
solidão do seu quarto rezava pelo filho, aquela alma pagã criada pelo seu
beijo, porque, sabia-o bem, a Ianinha não tivera outro amante; era ele o seu
dono, o senhor absoluto e muito amado, o deus supremo daquela selvagem, filha
da terra e amiga da terra, para quem a natureza era a única bíblia a que abria
a sua alma simples.
E
ele voltava querendo achá-la morta!
Encostado
à mesa, junto ao leito vazio, o padre compunha em mente as feições do filho,
dava-lhe vulto, sentia nele o melhor da sua alma, o mais elevado dos seus
ideais...
Súbito,
um toque de sino vibrou rebelde e agudo na noite silenciosa, o padre ergueu-se,
lívido. Que seria aquilo? Eram duas horas, o vento abrandara. Houve um rumor de
asas algodoadas fugindo espavoridas do campanário. A vila dormia
tranquilamente. Mas veio outra badalada do sino, tangida com nervo e raiva,
atravessar o espaço negro como um grito de dor.
Àquele
toque sucederam outros e outros, desordenados, como se o pobre sino da aldeia
tivesse enlouquecido ou abrigasse no seu velho bojo todas as bruxas e duendes
dos campos.
O
padre, assustado, amparou-se ao crucifixo, ergueu-o e caminhou resoluto para a
porta, que abriu de par em par.
O
campanário ficava à esquerda, dominando o vale enorme, todo cheio de sombra.
Júlio seguiu para ali, com a cruz erguida e os lábios murmurando preces.
Pareceu-lhe distinguir um vulto branco agitando-se na treva como um fantasma.
Elevou bem alto o Cristo, e a poucos passos a sua voz forte retumbou num
esconjuro formidável que abalou a terra.
O
sino emudeceu; mas o vulto branco lá estava, desenhando uma curva pálida na
escuridade. O padre chegou-se para o campanário, audaciosamente, sentindo-se
bem apoiado no crucifixo e na sua fé religiosa.
A
poucos passos estacou: a lua rompera o crepe das nuvens e iluminava Ianinha
seminua, com a cabeça deitada para trás, o cabelo pendente, os olhos perdidos
na abóbada estrelada. Ela ali estava, segura à corda do sino, aquele velho sino
de aldeia, tão meigo, tão acostumado a só falar de paz às montanhas solitárias.
Ianinha
quedou-se imóvel, sentindo Júlio perto, mas com medo de olhar-lhe para a
batina. Depois falou, num queixume, murmurando as palavras. Disse que tivera
dele um filho, lindo como os amores, que lá estava no cemitério muito
sossegadinho. Júlio estremeceu; os braços estenderam-se-lhe para prendê-la, os
lábios moveram-se-lhe para beijá-la; mas conteve-se, hirto, de cruz alçada,
livrando-se da tentação...
Ianinha
chorou: aquele tempo antigo fora tão bom! O campo aí estava, aberto a todos os
seres, fértil, com os hinos das aves e o perfume das plantas. A vida rebentava
à toa em cada canto. Em troncos velhos viçavam lianas e parasitas; em corolas
de flores aninhavam-se milhares de insetos; e os ninhos estavam povoados, e as
tocas rescendiam a paz amorosa, e toda a terra desabrochava à espera de que
eles fossem também, como noutros tempos, amar-se sob as estrelas.
Pecar?
Não era pecado! Que seria o mundo, sem a perpetuação do amor!
Ianinha
arrancava aquilo da sua imaginação caudalosa, lamentando-se por não ter nascido
sob outra forma, por não ter a vida libérrima da ave, do inseto ou da flor! E
estava formosa, formosa como nunca. Mas o padre sentia o peso do crucifixo nas
mãos geladas. Certamente que no fundo da sua alma alguma luta havia que lhe
cerrava os beiços e lhe iluminava a fronte larga e lívida. Mas a palavra de
amor não lhe saía da garganta.
Voltou
para dentro, de cruz erguida, com as faces banhadas de lágrimas. Consumou o
sacrifício: entregava-se a Deus.
Lá
fora o sino voltou a badalar na noite negra, desordenada, furiosamente, como se
o próprio diabo o tangesse! Depois tudo emudeceu. As aves voltaram para o
campanário; uma barra de luz indecisa abriu-se frouxamente no horizonte, e, só,
no meio da noite, o cadáver da Ianinha, enforcado na corda do sino, olhava de
face para o vale enormíssimo todo cheio de aromas e de treva.
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