AS RELÍQUIAS DE BREITENBURG - Conto Clássico Fantástico - Charles Dickens
AS
RELÍQUIAS DE BREITENBURG
Charles
Dickens
(1812
– 1870)
Quando
minha mãe era uma garotinha de oito ou nove anos e vivia na Suíça, o conde R. de
Holstein mudou-se, por causa de sua saúde, para a cidade de Vevey, onde alugou
uma casa com a intenção de ali permanecer por dois ou três anos. Em seguida,
travou conhecimento com meus avós maternos, e esse relacionamento resultou em amizade.
Eles se reuniam constantemente e mantinham uma crescente afinidade entre si.
Conhecendo as intenções do conde quanto à sua permanência na Suíça, a minha avó
ficou muito surpresa quando, numa certa manhã, recebeu um breve bilhete do
conde, informando que se via obrigado a retornar com urgência à Alemanha, nesse
mesmo dia, para tratar de assuntos inesperados. Na carta, ele acrescentava que sentia
muito por ter de partir, embora as circunstâncias o compelissem fazê-lo.
Terminava a missiva despedindo-se dos amigos e esperando que tivesse a ocasião
de encontrá-los novamente. O conde deixou Vevey naquela tarde e nada mais se
ouviu sobre ele ou sobre seus misteriosos assuntos.
Alguns
anos depois de sua partida, minha avó e um de seus filhos foram passar uma
temporada em Hamburgo. A notícia chegou ao conde R. que, desejoso de revê-los,
convidou os amigos a seu castelo em Breitenburg, onde estes permaneceram alguns
dias. Aquela era uma linda e selvagem região; o castelo — uma enorme e
imponente construção — era uma relíquia dos tempos feudais e, como a maioria
dos lugares assim tão antigos, dizia-se que era mal-assombrado.
Desconhecendo
a história em que esses rumores se baseavam, minha mãe incitou o conde a
contá-la.
Depois
de hesitar e objetar, o conde finalmente consentiu.
—
Há um cômodo nesta casa — começou — em que ninguém jamais conseguiu dormir.
Ouvem-se constantemente ruídos cuja origem é desconhecida e que soam como o incessante
arrastar de mobílias. Esvaziei o quarto, retirei o piso antigo e instalei um
novo, mas os ruídos não desapareceram. No final, desesperado, mandei murá-lo. Esta é a história daquele cômodo:
“Há
alguns séculos, vivia naquele castelo uma condessa cuja caridade para com os
pobres e cuja gentileza para com todos eram incomparáveis. Era conhecida em
todos os lugares como ‘a Boa Condessa R.’ e todos lhe devotavam um grande
apreço. O quarto em questão era a sua alcova. Uma noite, ela foi acordada por
uma voz a seu lado. Abrindo os olhos, viu, à branda luz de sua lamparina, um
homenzinho minúsculo, com cerca um pé de altura, ao lado de sua cama. Ela ficou
completamente surpresa e o homúnculo lhe disse:
—
Boa condessa de R., venho pedir-lhe que seja a madrinha do meu filho. A senhora
aceita?
Ela
assentiu. E ele disse que voltaria para buscá-la depois de alguns dias para
realizar o batismo. Com essas palavras, o homenzinho evaporou do quarto.
Na
manhã seguinte, refletindo sobre o incidente daquela noite, a condessa concluiu
que tudo fora produto de um sonho estranho e não pensou mais naquilo. No
entanto, depois de quinze dias, quando já havia se esquecido completamente do
sonho, foi novamente acordada pelo mesmo pequeno indivíduo. Dizia ele que viera
reivindicar cumprimento da promessa. Ela se levantou, se vestiu e seguiu seu
minúsculo guia escada abaixo, através do castelo.
No
centro do pátio de armas havia — e ainda há — um poço de parapeito quadrado,
muito profundo e que se estende muito abaixo do edifício, não se sabe para
onde. Tendo alcançado o poço, o homenzinho vendou a condessa e, pedindo que nada
temesse, ordenou-lhe que o seguisse. E desceram por paragens desconhecidas. A
condessa sentiu algum desconforto com essa nova e estranha situação, mas decidiu
que, apesar de qualquer risco que pudesse correr, uma promessa era uma
promessa, e, por isso, isso levaria aquela aventura até o fim.
Chegaram,
assim, ao fundo do poço. O guia retirou a venda de seus olhos e a condessa se
viu num recinto repleto de pessoas tão diminutas quanto o homenzinho. O batismo
teve lugar e a condessa foi a madrinha. Terminada a cerimônia, quando a dama
estava a ponto de despedir-se, a mãe da criança tirou um punhado de farpas de
madeira de um canto e as enfiou no avental da visitante.
—
A senhora foi muito gentil em perfilhar a minha criança, boa condessa de R. — disse
ela — e a sua generosidade não ficará sem recompensa. Quando acordar amanhã, as
farpas que lhe dei vão se transformar em metal. Com ele, a senhora deve fundir
imediatamente dois peixes e trinta silberlingen (uma moeda alemã).
Quando estiveram prontos, cuide esmeradamente desses objetos, pois, enquanto
eles permanecerem em sua família, tudo será prosperidade; mas, se algum deles
se perder algum dia, os seus familiares padecerão misérias incalculáveis.
A
condessa agradeceu e lhes desejou tudo de bom. O homenzinho, então, tendo
vendado novamente a condessa, conduziu-a sã e salva para fora do poço, e,
deixando-a no pátio, retirou-lhe a venda. Nunca mais a condessa voltou a vê-lo.
No
dia seguinte, ao despertar, a condessa sentia-se confusa. Parecia-lhe que tudo
o que havia passado na noite anterior fazia parte de algum sonho
extraordinário. Enquanto fazia a toalete, rememorou todos os incidentes muito
claramente, e quebrava a cabeça em busca de uma explicação para aquilo. Achava-se
imersa nestas atribulações quando passou a mão sobre o avental e surpreendeu-se
ao notar que o tinha amarrado à cintura. Quando o desatou, encontrou, entre as
dobras, um monte de farpas de metal. Como chegaram até ali? O sonho fora mesmo
real? Acaso não sonhara com o homenzinho e o batizado? Durante o café da manhã,
decidiu contar a história aos demais membros da família. Todos estavam de
acordo em que, qualquer que fosse o significado daquele presente, não deveriam
desprezá-lo. Portanto, concluíram que deviam fabricar os peixes e as moedas, e
que estes deveriam ser cuidadosamente guardados entre as relíquias da família.
O
tempo passou e tudo começou a prosperar na casa dos R. O rei da Dinamarca os
cumulou de honrarias e privilégios e lhes adjudicou a administração da Alta
Tesouraria de sua Fazenda. E, durante os anos seguintes, tudo lhes transcorreu
maravilhosamente bem.
De
repente, para a consternação da família, um dos peixes desapareceu. Fizeram-se
árduos e denodados esforços para descobrir o seu paradeiro, mas em vão. E,
justamente a partir daquele momento, tudo começou a ir de mal a pior para a casa
de Holstein.
O conde, que ainda era vivo, tinha dois filhos homens. Enquanto caçavam juntos,
um matou o outro. Não se sabe se tal se deu acidentalmente ou não, mas, sendo
ambos jovens bastante conhecidos por se meterem em contínuas disputas, a dúvida
começou a pairar sobre o incidente. Aquele foi o começo de uma época cheia de
desgraças. Quando o fato chegou ao conhecimento do rei, o soberano ponderou que
era necessário despojar o conde do cargo que ostentava. Outros infortúnios se
sucederam. A família caiu em descrédito. Suas terras foram vendidas ou
expropriadas pela Coroa, até que lhes restou apenas o velho castelo de Breitenburg
e os parcos domínios que o circundavam. Esta decadência se prolongou durante
duas ou três gerações. E, para coroar tantos infortúnios, à família nunca
faltou algum membro acometido pela loucura”.
—
E agora — prosseguiu o conde — vem a parte mais estranha desta história. Eu
nunca acreditei muito nas virtudes destas pequenas relíquias misteriosas e permaneceria
sem acreditar se não fosse a ocorrência de algumas circunstâncias
extraordinárias. Recordam-se de minha estada na Suíça e o seu repentino desfecho?
Pois bem, aconteceu que, pouco antes de deixar Holstein, eu recebi uma curiosa
carta. Seu remetente, um cavalheiro norueguês, contava-me que se achava muito
doente, mas não queria despedir-se deste mundo sem antes me ver e falar comigo.
Pensei que o homem delirava, pois jamais ouvira falar dele. Considerei que não
era possível que tivéssemos algum assunto a tratar. Portanto, desdenhei da
carta e não voltei a pensar nela durante algum tempo.
“De
toda sorte, o remetente não parecia se dar por satisfeito e logo voltou a me
escrever. Meu secretário, responsável pela minha correspondência nos períodos
de minha ausência, lhe fez saber que eu me encontrava na Suíça por motivos de
saúde, e que se tinha algo a comunicar-me, seria melhor que o fizesse por
escrito, porquanto não seria possível que eu empreendesse uma viagem à Noruega.
Isto
tampouco satisfez o cavalheiro, que insistiu com uma terceira carta, na qual me
implorava que fosse vê-lo. Declarava, também, que aquilo que tinha a me dizer
era de capital importância para ambas as partes. Meu secretário se sentiu tão
impressionado com o incisivo tom da carta que tratou de reencaminhar-me a
missiva, juntamente com seu conselho de não desprezar aquela súplica. Esta foi
a causa de minha repentina partida de Vevey. Nunca me alegrarei o suficiente de
ter desistido de minha obstinação.
Seguiu-se
uma longa e penosa viagem pelas terras nórdicas. Em mais de uma ocasião,
senti-me vivamente tentado pela possibilidade de abandonar a jornada, mas algum
estranho impulso me impeliu ao meu destino. Vi-me obrigado a atravessar boa
parte da Noruega; com frequência, passei dias inteiros cavalgando
solitariamente, cruzando páramos selvagens, pântanos inundados de urzes,
atravessando penhascos, montanhas e antros desolados, e contemplando, sempre à
minha esquerda, a costa rochosa, fendida pelo vento e açoitada pelas ondas.
Finalmente,
depois de inúmeras fadigas e dificuldades, cheguei à vila que a carta
mencionava, na costa norte da Noruega. O castelo do cavalheiro — uma grande
torre circular — estava edificado sobre uma pequena ilha afastada da costa e se
comunicava com o continente por uma estreita passarela. Ali cheguei a altas
horas da noite e devo admitir que me sobrevieram alguns temores quando cruzei a
ponte sob a luz indecisa de um farolete, enquanto ouvia o embate das águas
sombrias sob os meus pés. Um homem abriu-me a grade e voltou a fechá-la assim
entrei. Tomaram o meu cavalo e me conduziram aos aposentos do cavalheiro. Tratava-se
de um habitáculo circular, escassamente mobiliado, quase no cume da torre. Ali,
sobre uma cama, jazia um velho senhor, que parecia mesmo à beira da morte. Quando
entrei, tratou de erguer o corpo e, então, me lançou um olhar de alívio e
gratidão. Aquele gesto me compensou por todas as penúrias pelas quais eu havia
passado.
—
Jamais poderei agradecê-lo o suficiente, Conde R., por atender ao meu chamado —
disse ele. — Se me achasse em condições de viajar, eu o teria visitado. Mas não
me era possível. O certo é que eu não poderia deixar este mundo sem falar-lhe
pessoalmente. Eu serei breve, conquanto o que eu hei de lhe dizer seja de vital
importância. O senhor reconhece isto?
E
tirou debaixo de seu travesseiro o peixe há muito extraviado. Eu, evidentemente,
o reconheci de pronto. Ele continuou:
—
Não sei há quanto tempo este objeto está em minha casa e nunca tive qualquer
noção de sua procedência. Todavia, recentemente, soube a quem pertencia
legitimamente. Ele não chegou aqui nos meus tempos, nem tampouco nos de meu
pai, e quem o trouxe é um mistério. Quando caí doente e minha recuperação se
anunciava impossível, escutei, certa noite, uma voz que me dizia que não
deveria morrer sem antes restituir a relíquia ao Conde de R., de Breitenburg.
Eu não conhecia o senhor, nem tampouco havia ouvido falar de sua família.
Assim, a princípio, fiz pouco caso daquela voz. Entretanto, a voz continuou a
inquietar-me todas as noites, até que, desesperado, resolvi escrever-lhe.
Então, a voz parou de me importunar. Quando chegou a sua resposta, voltei a
ouvir a advertência de que não deveria morrer até que o senhor viesse. Por fim,
soube que viria, e não tenho palavras para agradecer-lhe tanta amabilidade.
Estou certo de que não poderia morrer em paz sem antes falar-lhe.
O
ancião morreu naquela mesma noite. Compareci aos seus funerais e voltei para
casa com o meu tesouro recém-recuperado, que foi cuidadosamente devolvido ao
seu lugar. Neste mesmo ano, meu irmão mais velho, a quem vocês conhecem por
haver estado, durante anos, internado num manicômio, faleceu, e eu passei a ser
o proprietário deste castelo. No ano passado, o rei da Dinamarca restitui-me o
cargo que pertencera a meus antepassados. Neste, fui nomeado administrador de
seu filho mais velho, e o rei me devolveu boa parte das propriedades
confiscadas à minha família. O Sol, pois, parece brilhar novamente sobre a casa
de Breitenburg. Há pouco tempo, enviei uma das moedas a Paris e outra a Viena, a
fim de que fossem analisadas para que se soubesse de que metal são compostas,
mas ninguém foi capaz de me dar uma resposta satisfatória quanto a este assunto”.
Desta
maneira, o Conde de R. concluiu a sua narrativa. Depois, levou a sua impaciente
interlocutora ao lugar onde eram guardados aqueles objetos preciosos e os
mostrou à velha dama.
Conto originariamente
publicado na revista “All The Year Round”, edição de 14 de setembro de 1861.
Versão em português:
Paulo Soriano.
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