PARA QUE NÃO HAJA CONFUSÃO! - Conto Clássico Fúnebre - Villiers de L'Isle Adam
PARA
QUE NÃO HAJA CONFUSÃO!
Villiers
de L'Isle Adam
Tradução
de Paulo Soriano
Ao
Sr. Henri de Bornier
“Lançando
não se sabe onde seus globos tenebrosos.”
C. Baudelaire
Numa
manhã cinzenta de novembro, eu descia, apressado, pelas docas. Uma garoa
fria umedecia a atmosfera. Os sombrios transeuntes, sob a réstia de guarda-chuvas
deformados, cruzavam-se.
O
amarelado Sena transportava seus navios mercantes como escaravelhos
desordenados. Nos conveses, o vento fazia voar abruptamente os chapéus, que
seus donos disputavam no espaço com atitudes e contorções cuja contemplação é
sempre tão dolorosa a um artista.
Minhas
ideias estavam pálidas e nebulosas; a preocupação com uma reunião de negócios,
aceita no dia anterior, assombrava minha imaginação. O tempo urgia: decidi
abrigar-me sob um dossel de um portão de onde eu poderia, convenientemente,
chamar um cabriolé.
Naquele
instante vi, bem ao meu lado, a entrada de um edifício quadrangular, de aspecto
burguês.
Surgira
da névoa como um espectro de pedra e, apesar da rigidez de sua arquitetura,
apesar da névoa sombria e fantástica que o envolvia, tive de reconhecer
imediatamente que tinha um certo ar de hospitalidade cordial que me tranquilizou
o espírito.
—
Claro — disse a mim mesmo — que os habitantes desta mansão são pessoas
sedentárias! Este limiar o convida: a porta não está aberta?
Então
da maneira mais educada do mundo, parecendo satisfeito, de chapéu na mão — até
mesmo um madrigal eu concebia para a dona da casa —, entrei e me vi, no mesmo
patamar, ante uma espécie de sala com um telhado de vidro, por onde entrava a
lívida luz do dia.
Nas
colunas havia roupas, cachecóis e chapéus.
Havia
mesas de mármore dispostas por toda parte.
Vários
indivíduos, com as pernas estendidas, a cabeças erguidas, os olhos fixos e um
ar positivo, pareciam meditar.
Eram
olhares vazios de ideias, rostos da cor do tempo.
Havia
carteiras abertas, papéis espalhados ao lado de cada um deles.
E
então percebi que a dona do lugar, com cuja gentileza eu contava, era a Morte.
Observei
meus anfitriões.
Certamente,
para escapar das preocupações da existência avassaladora, a maioria dos que
ocupavam a sala haviam assassinado seus corpos, esperando, assim, alcançar um
pouco mais de bem-estar.
Enquanto
ouvia o som das torneiras de cobre, fixadas na parede, e usadas para regar diariamente[1]
desses restos mortais. Ouvi o barulho de um cabriolé. Ele parou em frente ao
estabelecimento. Presumi que os homens de negócios me esperavam. Eu
me virei para aproveitar essa boa sorte.
A
carruagem, na verdade, acabado de despejar, na soleira do prédio, alguns
alegres colegiais que precisavam contemplar a morte para acreditar nela.
Fiz
um gesto para o cabriolé vazio e disse ao cocheiro:
—
Para a Passage de l’Opéra!
Alguns
momentos depois, nos bulevares, o tempo parecia ainda mais nublado, sem
horizonte. Os arbustos e a vegetação esquelética davam a impressão de
apontar, vagamente, com as pontas de seus galhos negros, para os pedestres e os
policiais ainda sonolentos.
O
carro corria.
Os
transeuntes, através do vidro, davam-me a impressão de água corrente.
Quando
cheguei ao meu destino, pulei na calçada e me lancei à rua cheia de pessoas
preocupadas.
No
final, percebi, bem à minha frente, a porta de um café — agora consumido por um
famoso incêndio (pois a vida é um sonho) —, que ficava no fundo de uma espécie
de galpão, sob uma abóbada quadrada, de aparência sombria. As gotas de
chuva, caindo na janela superior, obscureceram ainda mais o pálido brilho do
sol.
—
É ali que os homens de negócios me esperam — pensei — com um copo na mão, olhos
brilhantes e a zombar do Destino!
Então,
virei a maçaneta e me vi, no mesmo patamar, numa sala em que a luz do dia
penetrava, lívida, através da vidraça.
Nas
colunas havia roupas, cachecóis e chapéus.
Havia
mesas de mármore dispostas por toda parte.
Vários
indivíduos, com as pernas estendidas, a cabeças erguidas, os olhos fixos e um
ar positivo, pareciam meditar.
E
os seus rostos eram da cor do tempo; seus olhares, vazios de pensamento.
Havia
carteiras abertas, papéis espalhados ao lado de cada um deles.
Observei
aqueles homens.
Certamente,
para fugir das obsessões da consciência insuportável, a maioria dos que
ocupavam a sala há muito havia assassinado as próprias “almas”, esperando,
assim, um pouco mais de bem-estar.
Enquanto
ouvia o barulho das torneiras de cobre[2],
fixadas na parede, e destinadas a regar diariamente esses restos mortais, a
memória do carro rolando revisitou-me.
—
Certamente — disse a mim mesmo —, é provável que o cocheiro tenha sido afetado,
ao longo do tempo, por algum tipo de estupor, por me ter trazido de volta, depois
de tantas voltas, ao nosso ponto de partida! Admito, porém (para que não haja
confusão), que A SEGUNDA VISÃO É MAIS SINISTRA QUE A PRIMEIRA! ...
Então
fechei a porta de vidro em silêncio e voltei para casa — decidido, em desafio
ao exemplo, acontecesse o que viesse a me acontecer — a nunca mais fazer
negócios.
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