O ADVOGADO E O FANTASMA - Conto Clássico Fantástico - Charles Dickens
O
ADVOGADO E O FANTASMA
Charles
Dickens
(1812
– 1870)
Tradução
de Paulo Soriano
Conheci
um homem — deixe-me ver — há cerca de quarenta anos, que alugou um antigo,
úmido e deteriorado conjunto de salas de escritório, que estava fechado e vazio
há muitos e muitos anos, em um dos prédios mais antigos da cidade. Havia todos
os tipos de histórias sobre aquele lugar e, certamente, nenhuma delas era muito
jovial. No entanto, aquele homem era pobre e as salas eram baratas: motivo suficiente
para locá-las, mesmo que fossem dez vezes piores do que realmente eram.
Acontece
que esse homem se viu forçado a ficar com alguns móveis velhos que ali haviam
sido deixados. Entre eles, havia um enorme e pesado armário que servia para arquivar
papéis. Tinha grandes portas de vidro com cortinas verdes no interior. Um traste
deveras inútil para ele, já que não tinha outros papéis para arquivar. Quanto
às roupas, ele não as tinha além das que usava e não precisava de um lugar onde
guardá-las. Bem, ele já havia trasladado toda a sua mobília — que nem chegara a
ocupar uma carroça — e distribuiu os móveis pela sala para fazer com que as quatro
cadeiras parecessem uma dúzia.
Naquela
noite, o homem estava sentado em frente à lareira, bebendo o primeiro copo de dois
galões de uísque que comprara a crédito — imaginado se algum dia pagaria por
eles e, se fosse o caso, quantos anos levaria para fazê-lo —, quando os seus
olhos encontraram as vidraças do armário de madeira.
—Ah
— disse ele —, se eu não tivesse sido forçado a aceitar esse traste horrível,
incluído na avaliação feita pelo velho corretor, poderia ter comprado algo de
útil com o dinheiro! Vou lhe contar o que faria a você, meu traste velho —
disse ele, em voz alta, para o armário, pois não tinha com quem conversar. — Se
não me fosse tão trabalhoso reduzir em pedaços a sua velha carcaça, eu o usaria,
sem pestanejar, para alimentar o fogo.
Ele
mal havia proferido estas palavras quando um som, semelhante a um débil gemido,
pareceu sair do interior do armário. Aquilo o assustou a princípio, mas, depois
de um momento de reflexão, pensou que deveria ter sido algum jovem da sala ao
lado retornando do jantar. Colocou os pés sobre a grade da lareira e pegou o
atiçador para avivar o fogo.
Naquele
momento, o som se repetiu. Ao mesmo tempo, uma das portas de vidro do armário
se abriu lentamente, revelando uma figura pálida e emaciada em roupas sujas e esfarrapadas,
de pé, dentro do armário.
Era
uma figura alta de esguia. Seu rosto expressava preocupação e ansiedade, mas
havia na tonalidade de sua pele, na sua aparência magra e sobrenatural, algo que
não se assemelhava a nada neste mundo.
—
Quem é você? — perguntou o novo inquilino, ficando muito pálido e brandindo o
atiçador, enquanto olhava diretamente para o rosto da figura. — Quem é você?
—
Não me lance esse atiçador — respondeu o espectro. — Mesmo que o arremessasse com
uma apurada pontaria, o atiçador passaria por mim, sem encontrar resistência, e
se cavaria na madeira atrás de mim. Eu sou um espírito.
—
Diga-me: o que faz aqui? — disse, com voz trêmula, o inquilino.
—
Nesta sala — respondeu a aparição —, minha ruína foi tramada e, em razão deste ardil,
eu e os meus filhos fomos atirados à mendicância. Neste armário, os papéis de
uma demanda interminável foram se acumulando ao longo dos anos. Nesta sala,
quando eu já havia morrido de tristeza e desesperança, duas harpias astuciosas dividiram
a riqueza pela qual eu litiguei durante uma existência miserável, e da qual, por
fim, não sobrou um único centavo para os meus descendentes. Dediquei-me a
aterrorizar, imediatamente, é claro, os responsáveis pela minha ruína, e desde
aquele dia tenho rondado à noite — único período durante o qual posso retornar à
Terra —, revisitando os cenários de minha prolongada miséria. Estes aposentos são
meus: vá embora e me deixe em paz!
—
Se você insiste em aparecer por aqui — disse o inquilino, que havia conseguido
se recompor durante o prosaico discurso do fantasma—, renunciarei, com o maior
prazer, a estas instalações. Antes, porém, gostaria de lhe fazer-lhe uma pergunta,
se me permite.
—
Faça-a, então — disse, severamente, a aparição.
—
Bem — disse o inquilino —, não faço esta observação ao senhor particularmente —
a se ter que ela é igualmente aplicável à maioria dos fantasmas de que já ouvi
falar —, mas me parece tanto incoerente que, tendo a possibilidade de visitar
os mais belos lugares da Terra — pois suponho que o espaço nada signifique para
você —, o senhor insista em voltar exatamente
aos mesmos lugares onde experimentou os maiores infortúnios.
—
Nossa! Isto é verdade! Nunca havia pensado nisto antes — respondeu o fantasma.
—
Como vê — prosseguiu o inquilino —, esta é uma sala muito desconfortável. Pelo
aspecto desse armário, ousaria dizer que ele não está inteiramente livre de
insetos; e, na verdade, acho que, se o senhor a tanto se propusesse, poderia
encontrar aposentos muito mais confortáveis do que este. E isto sem falar do clima
de Londres, que é extremamente desagradável...
—
Tem toda a razão, senhor — respondeu o espectro, educadamente. — Isto nunca me
havia ocorrido antes. Tentarei mudar de ambiente imediatamente.
E,
de fato, ele começou a esvanecer-se, ainda enquanto falava. Já então, as suas
pernas haviam desaparecido completamente.
—
E, senhor — disse o inquilino, chamando-o —, teria a bondade de sugerir, gentilmente,
às outras senhoras e senhores, que agora se ocupam em assombrar velhas mansões,
que se sentiriam muito mais confortáveis em outro lugar? O senhor prestaria
um grande benefício à nossa sociedade.
—
Farei isto — respondeu o fantasma. — Devemos ser gente bastante enfadonha, de
fato. Não consigo imaginar como pudemos ter sido tão estúpidos!
Com
essas palavras, o espírito sumiu e, surpreendentemente, nunca mais voltou a
aparecer.
Excerto de The
Pickwick Papers (1836-1837).
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