A DAMA PÁLIDA - Conto Clássico de Terror - Alexandre Dumas


A DAMA PÁLIDA

Alexandre Dumas

Tradução de Jossi Borges

 

 

Sou polonesa, nascida em Sandomir, vale dizer, em um país onde as lendas se tornam artigos de fé, onde acreditam nas tradições de família como e — por acaso — mais que no Evangelho. Não há castelo entre nós que não tenha seu espectro, nenhuma cabana que não tenha seu gênio familiar. Na casa do rico como na do pobre, no castelo como na cabana, reconhece-se o princípio amigo e o princípio inimigo.

Às vezes estes dois princípios entram em luta e se combatem. Então se escutam ruídos tão misteriosos nos corredores, rugidos tão horrendos nas antigas torres, sacudidas  tão formidáveis nas muralhas, que os habitantes fogem da cabana como do castelo, e aldeãos e nobres correm à igreja em procura da cruz bendita ou das santas relíquias, únicos resguardos contra os demônios que nos atormentam. Mas outros dois princípios mais terríveis ainda, mais furiosos e implacáveis, encontrem-se ali enfrentados: a tirania e a liberdade.

O ano 1825 viu empenhar-se entre a Rússia e Polônia uma dessas lutas que esgotam todo o sangue de um povo, como frequentemente se esgota o sangue de uma família inteira. Meu pai e meus dois irmãos, rebelados contra o novo czar, tinham ido se alinhar sob a bandeira da independência polonesa, prostrada sempre, sempre renascida.

Um dia soube que meu irmão mais novo tinha sido morto; outro dia me anunciaram que meu irmão maior estava mortalmente ferido; e por fim, depois de uma jornada angustiosa, durante a qual eu tinha escutado aterrorizada o trovejar sempre mais próximo do canhão, vi chegar meu pai com uma centena de soldados a cavalo, resíduo de três mil homens que ele comandava.

Tinha vindo encerrar-se em nosso castelo com a intenção de sepultar-se sob suas ruínas. Enquanto não temia nada por ele, tremia por mim. E em efeito, para ele era o único risco a morte, porque estava muito seguro de não cair vivo em mãos do inimigo; mas me ameaçava a escravidão, a desonra, a vergonha.

Meu pai escolheu dez homens entre os cem que ficavam, chamou o intendente, fez-lhe entrega de quanto dinheiro e objetos preciosos possuíamos. E, recordando que na ocasião da segunda divisão da Polônia, minha mãe, quase menina ainda, tinha encontrado um asilo inacessível no monastério de Sabastru, situado em meio dos Montes

Cárpatos, ordenou-lhe me conduzir para aquele monastério que abriria à filha, como fizera à mãe, suas hospitaleiras portas.

A despeito do grande amor que meu pai alimentava por mim, nossas saudações não foram longas. Segundo todas as probabilidades, os russos deviam chegar no dia seguinte à vista do castelo, por isso não havia tempo a perder. Pus depressa um vestido de amazona, com o que estava acostumada a acompanhar meus irmãos na caça. Trouxeram-me selado o melhor cavalo do estábulo; meu pai me pôs nos bolsos do casaco suas próprias pistolas, obra das fábricas de Tula, abraçou-me e deu a ordem de partida.

Durante aquela noite e o dia seguinte percorremos vinte léguas, costeando um desses rios sem nome que desembocam no Vístula. Esta primeira dupla etapa nos havia subtraído ao perigo de cair em mãos dos russos. O sol se dirigia ao tramonto, quando vimos brilhar as nevados topos dos Cárpatos.

Por volta da noite do dia seguinte chegamos a seu pé: ao fim, na manhã do terceiro dia, começamos a avançar por uma de suas gargantas.

Nossos Cárpatos não se parecem com os férteis Montes do ocidente de vocês. Tudo quanto a natureza tem de extraordinário e grandioso se apresenta ali em toda sua majestade. Suas tempestuosas cúpulas se perdem nas nuvens cobertas de eternas neves; seus imensos bosques de abetos se inclinam sobre o espelho de lagos que por sua vastidão assemelham-se a mares; e daqueles lagos, jamais barco algum sulcou suas ondas, jamais redes de pescadores turvaram seu cristal profundo como o azul do céu; apenas, de tempo em tempo, ressoa ali a voz humana, fazendo escutar um canto moldavo ao que respondem os gritos dos animais selvagens e cantos e gritos vão desvelar algum solitário eco, atônito de que um ruído qualquer lhe tenha revelado sua própria existência.

Por milhas e milhas se viaja ali sob a sombria abóbada dos bosques entrecruzados das inesperadas maravilhas que a solidão descobre a cada instante, e que fazem passar nosso ânimo do estupor à admiração. Aí sempre há perigo, e o perigo se compõe de mil riscos diversos; mas não se tem tempo para atemorizar-se, tão sublime são aqueles riscos. Aqui há alguma cascata a que deu origem imprevistamente a liquefação dos gelos e que, saltando de rocha em rocha, invade de repente o estreito atalho que se percorre, esboçado pelo passo das feras em fuga e do caçador que as persegue; ali há árvores minadas pelo tempo, que se desprendem do chão e caem com horrível estrépito semelhante ao de um terremoto. Em outra parte, enfim, são os furacões que nos envolvem de nuvens, em meio das quais se vê cintilar, estender-se e contorcer-se o relâmpago, como serpente inflamada. Logo, depois de ter superado aquelas partes agrestes, aqueles bosques primitivos, depois de lhes encontrar em meio de gigantescas montanhas e bosques intermináveis, vemo-nos ante imensos páramos, como mares que têm também suas ondas e suas tempestades, áridas e gibosas estepes, onde a vista se perde em um horizonte sem limite. Então não é terror o que experimentamos, a não ser uma triste e profunda melancolia, da qual nada terá que possa nos distrair, porque o aspecto da região, por longe que se alargue nosso olhar, é sempre o mesmo.

Ascendamos ou descendemos cem vezes iguais barrancos, procurando em vão um caminho esboçado: ao nos achar tão perdidos naquele isolamento, em meio de desertos, acreditam-nos sozinhos na natureza, e nossa melancolia se converte em desolação. Parece-nos inútil caminhar mais adiante, porque não vemos uma meta para nossos passos; não encontramos uma aldeia, um castelo, nenhuma cabana, nada de vestígios de humana morada. Só de quando em quando, como uma tristeza maior naquela região melancólica, um pequeno lago, sem arbustos, dormindo no fundo de uma ravina, quase outro mar Morto, fecha-nos o caminho com suas verdes águas, sobre as quais se levantam ao nos aproximarmos algumas aves aquáticas de gritos prolongados e discordantes.

Rodeamos esse lago, transpomos a colina que está diante de nós, descemos a outro vale, superamos outra colina, e assim sucessivamente, até que tenhamos chegado aos começos da cadeia dos Montes que vão sempre diminuindo mais. Mas se ao concluir essa cadeia nos voltamos por volta do meio-dia, a região recupera um caráter majestoso, nos apresenta uma natureza mais grandiosa e descobriremos outra cadeia de montanhas mais altas, de forma mais pitoresca, de mais rica vegetação, toda coberta de espessos bosques, toda sulcada de arroios: com a sombra e com a água renasce também a vida naquela comarca; escuta-se já o tangido do sino de uma ermida, e sobre o flanco daquela montanha se vê serpentear uma caravana. Por fim, aos últimos raios do sol poente se percebem de longe, como bando de pássaros brancos, apoiando-as umas nas outras, as casas de uma aldeia, que parecem se agrupar em certo modo para defender-se de um assalto noturno; pois com a vida tornou o perigo: aqui não se lutará com ursos e lobos, como naquelas altas montanhas, mas com hordas de bandidos moldavos.

Enquanto isso nos aproximávamos de nossa meta. Dez dias de caminho tinham transcorrido sem nenhum incidente. Já distinguíamos a cúpula do monte Pion, que se eleva sobre toda aquela família de gigantes, e sobre cuja vertente meridional está situado o convento Sabastru ao qual eu me transladava.

Três dias mais, e nos achávamos ao término de nossa viagem. Eram os últimos dias de julho. Tínhamos tido uma jornada muito cálida, e por volta das quatro respirávamos com ansioso deleite as primeiras brisas do entardecer. Tínhamos deixado atrás, há pouco, as torres arruinadas do Niantzo. Baixávamos a uma planície que começávamos a ver através de uma fenda da montanha.

Do lugar onde estávamos, já podíamos seguir com a vista o curso do Bistriz, de ribeiras esmaltadas de verdes vinhedos e de altas campânulas de flores brancas.

Beirávamos um abismo em cujo fundo corria o rio, que naquele lugar tinha apenas forma de corrente, e nossas cavalgaduras tinham escasso espaço para caminhar duas de frente. Precedia-nos um guia, que, inclinado de flanco sobre a garupa de seu cavalo, cantava uma canção ignorante, cujas palavras seguia com singular atenção.

O cantor era também ao mesmo tempo o poeta. Precisaria ser um daqueles montanheses para poder nos expressar a melancolia de sua canção com sua selvagem tristeza, com toda sua profunda simplicidade. As palavras da canção eram pouco mais ou menos as seguintes:

 

"Vejam ali esse cadáver no pântano de Stavila,

onde correu tanto sangue de guerreiros!

Não é um filho da Iliria, não;

é um feroz bandido, que depois de ter enganado a gentil María,

roubou, exterminou, acendeu.

"Rápida como o relâmpago uma bala veio atravessar o coração do bandido;

um yatagán lhe truncou o pescoço. Mas, oh mistério, depois de três dias, seu sangue, morno ainda, rega a terra sob o pinheiro tétrico

e solitário e enegrece o pálido Ovigan.

"Seus olhos turcos brilham sempre;

fujamos, fujamos: ai de quem passa pelo pântano dele: é um vampiro!

O feroz lobo se afasta do impuro cadáver,

e o fúnebre abutre foge ao monte de calva fronte."

 

De repente se ouviu a detonação de uma arma de fogo e o assobiar de uma bala. A canção ficou interrompida, e o guia, ferido de morte, precipitou-se ao abismo, enquanto seu cavalo se detinha tremendo e baixando a inteligente testa para o fundo do precipício, onde desapareceu seu dono. Ao mesmo tempo, levantou-se pelos ares um grito estridente, e sobre os flancos da montanha vimos aparecer uma trintena de bandidos: estávamos completamente rodeados.

Cada um dos nossos empunhou uma arma, e bem que tomados improvisadamente, meus acompanhantes, como que eram velhos soldados acostumados ao fogo, não se deixaram intimidar, e ficaram em guarda.

Eu mesma, dando o exemplo, empunhei uma pistola, e conhecendo bem quão desvantajosa era nossa situação, gritei:

— Adiante!

E dava com a espora em meu cavalo, que se lançou a toda carreira para a planície. Mas tínhamos que nos ver com montanheses que saltavam de rocha em rocha como verdadeiros demônios dos abismos, que até saltando, faziam fogo, mantendo nossos flancos a posição tomada. Então, nosso plano tinha sido previsto. Em um ponto onde o caminho se alargava e a montanha se aplainava um pouco, aguardava um jovem à cabeça de dez homens a cavalo. Quando nos viram, puseram ao galope suas montarias, e nos assaltaram de frente, enquanto aqueles que nos perseguiam baixavam saltando em grande quantidade, e barraram de tal modo nossa retirada, rodeando-nos por toda parte.

A situação era grave; entretanto, acostumada desde menina às cenas de guerra, pude apreciá-la sem que me escapasse uma só circunstância. Todos aqueles homens, vestidos de peles de carneiro, levavam imensos chapéus redondos, coroados de flores naturais ao modo dos húngaros. Cada um deles tinha um comprido fuzil turco, que agitavam vivamente logo depois de ter disparado, dando gritos selvagens, e na cintura levava um sabre curvo e duas pistolas. Seu chefe era um jovem de apenas vinte e dois anos, de tez pálida, de olhos negros e cabelos encrespados que lhe caíam sobre as costas. Vestia a casaca moldava guarnecida de pele e ajustada ao corpo por uma bandagem com listas de ouro e seda. Em sua mão resplandecia um sabre curvo, e em sua cintura reluziam quatro pistolas.

Durante a luta dava gritos roucos e inarticulados que pareciam não pertencer à fala humana, e, entretanto. eram uma eficaz expressão de seus desejos, pois a aqueles gritos obedeciam todos seus homens, ora deitava-se de barriga para baixo, para se esquivar a nossas descargas, ora levantando-se para disparar, fazendo cair aqueles de nós que ainda estavam de pé, matando aos feridos, fazendo, enfim, da luta uma matança sangrenta.

Eu tinha visto cair um depois do outro dois terços de meus defensores. Quatro estavam ainda ilesos e se apertavam a meu redor, não pedindo uma graça que tinham a certeza de não conseguir, e pensando só em vender a vida o mais caro possível.

Então o jovem chefe deu um grito mais expressivo que os anteriores, estendendo a ponta de seu sabre para nós. Na verdade, aquela ordem significava que devia rodear-se nosso último grupo com um cerco de fogo e nos fuzilar a todos juntos, pois de um golpe vimos nos apontar todos aqueles largos mosquetes.

Compreendi que tinha chegado a hora final. Elevei os olhos e as mãos ao céu, murmurando uma última prece, e aguardei a morte. Nesse instante vi, não descer, mas precipitar-se de uma rocha para outra, um jovem que parou sobre uma pedra que dominava a cena, semelhante a uma estátua em um pedestal, e, estendendo a mão para o campo de batalha, pronunciou esta só palavra:

 —Basta!

  Todos os olhos se voltaram para essa voz, e cada um pareceu obedecer ao novo amo. Só um bandido apontou de novo seu fuzil e fez o disparo. Um de nossos homens deu um grito: a bala lhe tinha quebrado o braço esquerdo. Voltou-se para lançar-se sobre o que lhe feriu, mas ainda não tinha dado quatro passos no seu cavalo, quando um relâmpago brilhou por cima de nós e o bandido rebelde caiu ferido por uma bala na cabeça...

Tantas e tão diversas emoções tinham acabado com minhas forças. Desmaiei.

Quando recuperei os sentidos, achei-me deitada sobre a erva, com a cabeça apoiada nos joelhos de um homem, de quem via só a mão branca e coberta de anéis me rodeando o corpo, enquanto parava diante de mim, de braços cruzados e a espada sob a axila, o jovem chefe moldavo que dirigiu o assalto contra nós.

— Kostaki — dizia em francês e com gesto autoritário o que me sustentava —, que seus homens se retirem imediatamente. Deixe aos meus cuidados esta jovem.

— Irmão, irmão — respondeu aquele a quem eram dirigidas tais palavras, e que parecia conter-se com esforço — cuidado para não cansar minha paciência. Eu te deixo

o castelo, me deixe o bosque. No castelo você é o amo, mas aqui eu sou todo-poderoso. Aqui me bastaria uma só palavra para te obrigar a me obedecer.

— Kostaki, eu sou o mais velho. O que quer dizer que sou amo em todas partes, assim no bosque como no castelo, lá e aqui. Como em você, corre-me pelas veias o sangue dos Brankovan, sangue real que tem o hábito de mandar, e eu mando.

Mande em seus servidores, Gregoriska, não em meus soldados.

— Seus soldados são bandidos, Kostaki... bandidos que farei enforcar nas ameias de nossas torres se não me obedecerem imediatamente.

—Bem, tente lhes dar uma ordem, então.

Senti então que quem me sustentava retirava seu joelho, e colocava suavemente minha cabeça sobre uma pedra.

Segui-o ansiosa com o olhar e pude examinar a aquele jovem que caiu, por assim dizê-lo, do céu em meio da luta, e que eu tinha visto, estando deprimida, enquanto

aparecia na hora certa.

  Era um jovem de vinte e quatro anos, alto e com dois grandes olhos azul-celestes e resplandecentes como o relâmpago, nos quais se lia uma extraordinária decisão e firmeza. Os longos cabelos loiros, indício da estirpe eslava, caíam-lhe sobre as costas como os do Arcanjo Miguel, circundando duas faces coradas e frescas. Seus lábios realçados por um sorriso desdenhoso, deixavam ver uma fileira de pérolas. Vestia uma espécie de túnica de peludo negro, calções rodeados às pernas e botas bordadas. Na cabeça tinha um gorro ornado de uma pluma de águia, na cintura levava uma faca de caça, e ao ombro uma pequena carabina de dois canos, cuja precisão tinha aprendido a apreciar um dos bandidos.

Estendeu a mão, e com esse gesto imperioso pareceu impor-se até a seu irmão. Pronunciou algumas palavras em língua moldava, as quais pareceram causar profunda impressão sobre os bandidos. Então, falou na mesma língua o jovem chefe, e me pareceu que seu discurso estava cheio de ameaças e de imprecações. Diante daquele comprido e veemente discurso o irmão maior respondeu com uma só palavra. Os bandidos se submeteram: fez um gesto, e os bandidos se submeteram; fez um gesto, e os bandidos se reuniram detrás de nós.

— Bem! Seja, pois, Gregoriska — disse Kostaki voltando a falar em francês. — Esta mulher não irá à caverna, mas não por isso será menos minha. Encontrei-a, é linda,

conquistei-a eu e eu a quero para mim.

Assim dizendo, lançou-se para mim e me levantou entre seus braços.

— Esta mulher será levada ao castelo e entregue a minha mãe, eu não a abandonarei — disse meu protetor.

— Meu cavalo! — gritou Kostaki em língua moldava.

Vários bandidos se apressaram a obedecer, conduziram a seu senhor a cavalgadura pedida... Gregoriska olhou em torno, agarrou as rédeas de um cavalo sem dono, e saltou

à cadeira sem tocar os estribos. Kostaki, que me tinha ainda apertada entre seus braços, montou quase tão agilmente como seu irmão, e partiu a todo galope. O cavalo de Gregoriska pareceu ter recebido o mesmo impulso e foi ficar pego ao flanco e ao cangote do corcel de Kostaki. Estranho de ver-se eram aqueles dois cavalheiros que voavam o um junto ao outro, taciturnos, silenciosos, sem perder-se de vista um só instante, mesmo que aparentassem não se olhar, e se entregavam por inteiro a suas montarias, cuja impetuosa carreira os levava através de bosques, rochas e precipícios.

Tinha a cabeça baixa, e isto me permitia ver os belos olhos de Gregoriska fixos em mim. Kostaki o advertiu, levantou-me a cabeça, e vi mais que seu tétrico olhar me devorando. Desci as pálpebras, mas em vão: através de seu véu, via ainda aquele olhar fulminante que me penetrava até as vísceras e me ferroava o coração. Então me aconteceu uma estranha alucinação. Parecia-me ser Leonora, da balada de Bürger, levada pelo cavaleiro fantasma, e quando senti que me fechavam, abri os olhos amedrontada, estava persuadida de ver ao redor meu só cruzes podres e tumbas abertas. Vi algo um pouco mais alegre, porém. Era o pátio interno de um castelo moldavo construído no século XIV.

Kostaki me deixou escorregar ao chão, descendo quase em seguida depois que eu; mas, por rápido que tivesse sido seu ato, Gregoriska lhe tinha precedido. Como disse, no castelo ele era o amo. Ao ver chegar os dois jovens e a estrangeira que levavam com eles, acudiram os servidores. Embora dividissem suas diligências entre Kostaki e Gregoriska, parecia claro que os maiores olhares, o respeitomais profundo eram para o segundo.

Aproximaram-se duas mulheres, Gregoriska lhes deu uma ordem em moldavo, e com a mão me indicou que as seguisse. O olhar que acompanhava aquele gesto era tão respeitoso que eu não vacilei em lhe obedecer. Cinco minutos depois me encontrava em um aposento que, mesmo que pudesse parecer nu e triste a uma pessoa mais sofisticada, era, entretanto, evidentemente o mais bonito do castelo.

Uma grande sala quadrada, com uma espécie de divã verde, assento de dia, leito de noite. Havia também ali cinco ou seis poltronas de carvalho, um imenso cofre, e em um ângulo, um trono semelhante a uma grande cadeira de coro.

Não terei que falar de cortinas nas janelas e no leito. Ao lado da escada que levava para ali, erguiam-se, dentro de nichos, três estátuas dos Brankovan de tamanho superior ao natural. Logo mais trouxeram nossas bagagens, entre as quais se encontravam também minhas malas. As mulheres me ofereceram seus serviços. Não obstante, reparando a desordem que o acontecido causou em mim, conservei minha roupa de amazona, a qual, mais que qualquer outra, acordava com o modo de vestir de minhas hóspedes.

Logo que tinha feito as poucas mudanças necessárias em minhas roupas, quando ouvi bater levemente na porta.

— Entre — disse em francês, sendo esta língua para nós os poloneses, como sabem, quase uma segunda língua materna.

Gregoriska entrou.

— Ah! Senhora, quanto me agrada que fale francês.

— E eu também — respondi — estou contente de saber esta língua, porque pude, graças a isso, apreciar toda a generosidade de sua conduta comigo. Nessa língua me defendeu dos intuitos de seu irmão, e nessa língua lhe ofereço meu sincero agradecimento.

— Eu que lhe agradeço, senhora. Era coisa muito natural que me preocupasse com uma mulher que se encontrava em sua situação. Andava de caça pelos Montes quando chegaram a meu ouvido algumas detonações anormais e contínuas; compreendi que se tratava de um assalto a mão armada, e parti ao encontro do fogo, como dizemos nós. Graças a Deus, cheguei a tempo, mas seria talvez muito atrevido se lhe perguntasse, senhora, por qual motivo uma mulher de alta linhagem, como é você, viu-se reduzida a aventurar-se em nossos Montes?

— Sou polonesa — respondi. — Meus dois irmãos sucumbiram, não há muito, na guerra da Rússia. Meu pai, deixei enquanto se preparava a defender seu castelo, sem dúvida reuniu-se a meus irmãos, a esta hora, e eu, fugindo por ordem de meu pai de todos aqueles estragos, ia em busca de refúgio no monastério de Sabastru, onde minha mãe, em sua juventude e em circunstâncias semelhantes, tinha encontrado asilo seguro.

— É inimizade dos russos, tão melhor — disse o jovem- este título lhe será de poderosa ajuda no castelo, e nós necessitaremos de todas nossas forças para sustentar a luta que se prepara. Mas acima de tudo, senhora, porque já sei quem é, deve saber também quem somos: o nome dos Brankovan não lhe é desconhecido, certo, senhora?

Eu me inclinei.

— Minha mãe é a última princesa deste nome, a última descendente do ilustre chefe mandado matar pelos Cantimir, os vis cortesãos de Pedro I. Casou em primeiras núpcias com meu pai, Serban Waivady, príncipe também, mas de estirpe menos ilustre. Meu pai tinha sido educado em Viena, e ali pôde apreciar as vantagens da civilização.

Decidiu fazer de mim uma européia. Partimos para a França, Itália, Espanha e Alemanha. Minha mãe — não é da conta de um filho, sei, lhe narrar isso, mas, já que por nossa salvação é necessário que nos conheçamos bem, reconhecerá justos os motivos desta revelação — minha mãe, digo, que durante as primeiras viagens de meu pai, enquanto era eu ainda menino, tinha tido um relacionamento adúltero com um chefe de parciais (que com tal nome, adicionou sorrindo Gregoriska, chamam-se neste país aos homens por quem se foi agredido), certo conde Giordaki Koproli. Era um médico grego e meio moldavo. Ela escreveu a meu pai lhe confessando tudo e lhe pedindo o divórcio, apoiando sua demanda em que não queria ela, uma Brankovan, continuar sendo por mais tempo mulher de um homem que se tornava dia a dia mais estrangeiro em sua pátria.

“Ah! Meu pai não teve necessidade de dar seu consentimento a essa petição, que poderá parecer estranha, mas entre nós é coisa muito natural. Ele tinha morrido de um aneurisma que desde muito tempo o atormentava, e eu recebi a carta de minha mãe. A mim agora não ficava outra coisa senão fazer votos sinceros pela felicidade de minha mãe, e lhe escrevi uma carta, em que lhe comunicava estes meus votos junto com a notícia de sua viuvez. Naquela carta lhe pedia também permissão para poder continuar minhas viagens, que foi concedido. Tinha eu a firme intenção de me estabelecer na França ou Alemanha para não me encontrar cara a cara com um homem que me aborrecia, e que não podia amar, quero dizer o marido de minha mãe; quando vim aqui que, de improviso, devia saber que o conde Giordaki Koproli tinha sido assassinado, segundo diziam, pelos velhos cossacos de meu pai. Amava eu muito a minha mãe para não me apressar a retornar à pátria, compreendia seu isolamento e a necessidade que devia ter de encontrar-se com ela em tais circunstâncias as pessoas que podiam lhe ser queridas.

“Mesmo que ela nunca fosse muito carinhosa comigo, era seu filho. Uma manhã cheguei inesperadamente ao castelo de meus pais. Ali encontrei um jovem, a quem a princípio tomei por um estrangeiro, mas logo soube que era meu irmão. Era Kostaki, o filho do adultério, legitimado por um segundo matrimônio; Kostaki, a indomável criatura que viu, para quem são leis só suas paixões, que nada tem por sagrado aqui embaixo fora sua mãe, a quem obedece como o tigre obedece ao braço que o domou, mas rugindo por sempre, na vaga esperança de poder me devorar um dia. No interior do castelo, no lar dos Brakovan e dos Waivady, eu sou ainda o amo. Mas fora deste recinto, lá fora, nos campos, ele se converte no selvagem filho dos bosques e dos Montes, que quer dobrar tudo sob sua férrea vontade. Como hoje ele e seus homens fizeram para ceder, não sei; talvez por antigo costume, ou por um resto de respeito que me têm. Mas não queria arriscar outra prova. Permaneça aqui, não saia deste quarto, do pátio, do castelo em suma, e respondo por tudo; se der um passo fora do castelo, não posso lhe prometer outra coisa que me fazer matar para a defender.

— Não poderei então — disse eu —, segundo o desejo de meu pai, continuar a viagem para o convento de Sabastru?

—Se insistir, eu te acompanharei, mas ficarei na metade do caminho, e você... você certamente não alcançará a meta de sua viagem.

—Mas o que fazer, então?

— Fique aqui, aguarde, observe, reflita e aproveite as circunstâncias. Suponho ter se cansado, e que só seu valor poderá tirá-la do apuro, só sua calma salvá-la.

Minha mãe, a despeito da preferência que concede a Kostaki, filho de seu amor, é boa e generosa. Por outra parte, é uma Brankovan, vale dizer uma verdadeira princesa.

Vai vê-la: ela te defenderá das brutais investidas de Kostaki. Ponha-se sob o amparo dela, é uma mulher gentil. E em realidade (adicionou ele com expressão indefinível),

quem poderia olhá-la e não gostar da senhorita? Agora, venha à sala de jantar, onde minha mãe a espera. Não demonstre desagrado nem desconfiança: fale polonês, aqui ninguém conhece esta língua. Eu traduzirei a minha mãe suas palavras, e fique tranquila, que só direi aquilo que seja conveniente dizer. Sobretudo, nenhuma palavra do que lhe revelei, ninguém deve suspeitar que estamos de acordo. Você não sabe ainda de quanta astúcia e dissimulação é capaz o mais sincero de entre nós. Venha.

Segui-o pela escada iluminada de tochas de resina ardendo, postas dentro de mãos de ferro que se sobressaíam do muro.

Era evidente que aquela insólita iluminação tinha sido disposta para mim. Chegamos ao salão. Apenas Gregoriska abriu a porta daquela sala, e pronunciado na soleira uma palavra em língua moldava, que depois soube significava “a estrangeira”, veio a nosso encontro uma mulher de alta estatura. Era a princesa Brankovan. Tinha cabelos brancos entrelaçados ao redor da cabeça, a qual estava coberta de um gorro de zibelina, ornado de um penacho, signo de sua origem principesca. Vestia uma espécie de túnica de brocado, o peito semeado de pedras preciosas, sobrepostas a uma larga pala de estofo turco, guarnecida de pele igual à do gorro. Tinha na mão um rosário de contas de âmbar, que fazia correr rapidamente entre os dedos. Junto a ela estava Kostaki, vestido com o esplêndido e majestoso traje magiar, no qual me pareceu ainda mais estranho. Seu traje estava composto de uma sobreveste de veludo negro, de larga mangas, que lhe caía até debaixo do joelho, calções de cachemira vermelha, e os longos cabelos de cor negra-azulada lhe caíam sobre o pescoço nu, rodeado somente pela orla branca de uma fina camisa de seda. Saudou-me rudemente, e pronunciou em moldavo algumas palavras para mim ininteligíveis.

— Pode falar em francês, irmão — disse Gregoriska —, a senhorita é polonesa e compreende esta língua.

Então Kostaki disse em francês algumas palavras quase tão incompreensíveis para mim como as que pronunciou em moldavo, mas a mãe, estendendo o braço, interrompeu aos dois irmãos.

Aparecia claro que intimava os seus filhos, para que esperassem que só ela me recebesse. Começou então em língua moldava um discurso de cumprimento, ao qual a mobilidade de suas feições dava um sentido fácil de explicar-se. Indicou-me a mesa, ofereceu-me uma cadeira perto dela, apontou com um gesto a casa toda, como dizendo que estava a minha disposição, e, sentando-se antes dos outros com benévola dignidade, fez o sinal da cruz e pronunciou uma prece. Então cada um ocupou seu lugar próprio, estabelecido pela etiqueta, Gregoriska perto de mim. Como estrangeira, eu tinha determinado que Kostaki tocasse o posto de honra junto a sua mãe Smeranda. Assim se chamava a condessa.

Também Gregoriska tinha mudado de roupa. Usava igualmente a túnica magiar e os calções de cachemira, mas aquela de cor granada e estes eram turcos. Tinha no pescoço uma esplêndida condecoração pendurada, o nisciam do sultão Mahmud.

Os outros comensais da casa jantavam na mesma mesa, cada um no lugar que lhe correspondia segundo o grau que ocupava entre os amigos ou os servidores. O jantar foi triste: Kostaki não me dirigiu nunca a palavra, embora seu irmão tivesse sempre a atenção de me falar em francês. A mãe me oferecia de tudo com suas próprias mãos

com esse gesto solene que lhe era natural; Gregoriska havia dito a verdade: era uma verdadeira princesa.

Logo depois do jantar, Gregoriska se aproximou de sua mãe, e lhe explicou em língua moldava o desejo que eu devia ter de estar sozinha, e quão necessário me seria o repouso depois das emoções daquela jornada. Smeranda fez um gesto de aprovação, estendeu-me a mão, beijou-me na fronte, como se eu fosse sua filha, e me desejou boa noite.

Gregoriska não se enganou: eu ansiava ardentemente aquele instante de solidão. Agradeci por isso à princesa, quem me conduziu até a porta, onde me esperavam as duas mulheres que antes já me acompanharam em meu quarto. Depois de dar boa-noite à mãe e aos dois filhos, voltei para meu aposento, de onde saíra uma hora antes.

O sofá estava transformado em leito. Outras mudanças não havia. Agradeci às mulheres: fiz-lhes compreender que me despiria sozinha, e elas saíram em seguida com mil testemunhos de respeito que queriam significar ter ordens de me obedecer em tudo e por tudo.

Fiquei sozinha naquela imensa câmara, que minha vela podia iluminar apenas em parte. Era um singular jogo de luzes, uma espécie de luta entre o resplendor trêmulo de meu círio e os raios da lua que passavam através da janela sem cortinados. Além da porta pela que entrei, e que caía sobre a escada, havia outras duas na câmara, mas seus grossos ferrolhos, que se fechavam por dentro, bastavam para me tranqüilizar. Olhei a porta de entrada; também ela tinha meios de defesa. Abri a janela: dava sobre um abismo. Compreendi que Gregoriska tinha escolhido aquela câmara calculadamente. De volta por fim a meu sofá, encontrei sobre uma mesinha posta junto à cabeceira um cartão dobrado. Abri-a e li em polonês:

“Durma tranquila: nada tem que temer enquanto permaneça no interior do castelo. Siga o meu conselho”, e como o cansaço vencia sobre as preocupações que me deixavam desanimada, deitei-me e em seguida dormi.

Desde aquele momento ficava fixada minha permanência no castelo e tinha princípio o drama que vou lhes contar.

*

Os dois irmãos se apaixonaram por mim, cada um segundo sua índole. Kostaki me confessou de improviso, no dia seguinte, que me amava, e declarou que seria dele e não de outro, e que me mataria antes que eu cedesse a quem quer que fosse.

Gregoriska não me disse nada, mas se mostrou cheio de amor e de considerações comigo. Para me agradar pôs em prática todos os meios de sua refinada educação, todas as lembranças de uma juventude transcorrida na mais nobres Cortes da Europa. Ah! Não era coisa tão difícil pois já o primeiro som de sua voz me tinha acariciado a alma, e já seu primeiro olhar me tinha serenado o coração. Ao cabo de três meses, Kostaki me tinha repetido cem vezes que me amava, e eu o odiava. Gregoriska ainda não me havia dito uma palavra de amor e eu sentia que quando ele desejasse, eu seria toda sua.

Kostaki tinha renunciado a suas incursões. Encerrado sempre no castelo, tinha cedido momentaneamente o mando a um lugar-tenente, quem de quando em quando vinha a lhe pedir ordens, e em seguida desaparecia. Também Smeranda tinha concebido por mim uma amizade apaixonada, cujas expressões me causavam temor. Protegia ela visivelmente a Kostaki, e parecia ciumenta de mim mais ainda do que ele. Mas como não falava polonês nem francês, e eu não compreendia o moldavo, ela não tinha modo de insistir diante mim em favor de seu filho predileto. Havia, entretanto, aprendido a dizer em francês umas palavras que repetia sempre, quando pousava seus lábios em minha fronte:

  — Kostaki ama Edvige!...

Um dia recebi uma notícia horrível que encheu minha desventura. Os quatro homens sobreviventes do combate tinham sido postos em liberdade e retornado a Polônia, prometendo que um deles, antes que passassem três meses, voltaria para me dar notícias de meu pai. Em efeito, uma manhã se apresentou de novo um deles. Nosso castelo tinha sido tomado, incendiado, destruído, e meu pai fora morto defendendo-o. Agora, estava sozinha no mundo. Kostaki redobrou suas insinuações, e Smeranda suas ternuras; mas desta vez aduzi como pretexto meu duelo pela morte de meu pai. Kostaki insistiu dizendo que quanto mais só me encontrava, tão mais necessidade tinha de apoio, e sua mãe insistiu mais que ele.

Gregoriska me tinha falado do poder que os moldavos têm sobre si mesmos, quando não querem que outros leiam em seu coração. Ele era um vivo exemplo disso. Estava muito seguro de seu amor, e, entretanto, se alguém me tivesse perguntado em que prova se fundava tal certeza, me teria sido impossível dizê-lo: ninguém no castelo tinha visto nunca que sua mão tocasse a minha, ou que seus olhos procurassem meus. Só o ciúmes podiam tornar claro a Kostaki a rivalidade do irmão, como só o amor que eu alimentava por Gregoriska podia me fazer claro seu amor. Entretanto, confesso-o, inquietava-me muito aquele poder de Gregoriska sobre si mesmo. Eu tinha fé nele, mas não bastava; precisava ser convencida... quando uma noite, de volta em meu quarto, ouvi bater levemente em uma das duas portas que se fechavam por dentro.

Pelo modo de bater adivinhei que era uma chamada amiga. Aproximei-me, perguntando quem estava ali.

—Gregoriska — respondeu uma voz, cujo acento não podia me enganar.

— O que querem de mim? — perguntei-lhe trêmula.

—Se tiver fé em mim — disse Gregoriska —, se acredita num homem e honra, permite-me uma pergunta?

— Qual?

—Apague a luz como se te tivesse deitado, e daqui em meia hora, me abra esta porta.

— Volte dentro de meia hora... — foi minha única resposta.

Apaguei a luz e aguardei. O coração me palpitava com violência, pois compreendia que se tratava de um fato importante. Transcorreu a meia hora: ouvi bater mais levemente ainda que a primeira vez.

Durante o intervalo tinha aberto os ferrolhos e abri a porta. Gregoriska entrou, e sem que me dissesse, fechei a porta atrás dele e joguei os ferrolhos. Ele permaneceu um instante mudo e imóvel, me impondo silencio com o gesto. Logo, quando esteve seguro de que nenhum perigo nos ameaçava no momento, levou-me ao centro da vasta câmara, e sentindo, por meu tremor, que não teria podido me sustentar de pé, buscou-me uma cadeira. Sentei-me ou melhor, me deixei cair sobre o assento.

— Meu Deus! — disse-lhe — o que há de novo, ou por que tantas precauções?

— Porque minha vida, que não contaria para nada, e acaso também a sua, dependem da conversação que teremos.

Amedrontada, aferrei-lhe uma mão. Ele a levou aos lábios, me olhando como se pedisse desculpas por tanta audácia. Desci eu os olhos, era um tácito consentimento.

 —Eu te amo —disse-me com aquela voz melodiosa, como um canto.  —E você? Também me ama?

— Sim —respondi-lhe.

— E consentiria em ser minha mulher?

Levou a mão à frente com profunda expressão de felicidade.

— Sim.

— Então, não recusará me seguir?

— Seguirei com você para qualquer lugar.

— Pois compreenderá bem que não podemos ser felizes a não ser fugindo deste lugar.

— Claro que sim! Vamos fugir... — exclamei.

— Silêncio — disse ele estremecendo. — Silêncio!

— Tem razão.

E me aproximei, assim, trêmula.

— Escute o que tenho feito — continuou Gregoriska —, escute porque estive tanto tempo sem lhe confessar que a amava. Queria, quando estivesse seguro de seu amor, que ninguém pudesse opor-se a nossa união. Eu sou rico, querida Edvige, imensamente rico, mas como o são os senhores moldavos: rico em terras, em ganhos, em servidores. Agora bem, vendi por um milhão, terras, rebanhos e camponeses ao monastério de Hango. Deram-me trezentos mil francos em muitas pedras preciosas, cem mil francos em ouro, o resto em letras de mudança sobre Viena. Estará bem para você um milhão?

Apertei-lhe a mão.

—Me bastaria só seu amor, Gregoriska.

— Bem! Escute... amanhã vou ao monastério de Hango para tomar minhas últimas disposições com o superior. Ele tem cavalos preparados que nos esperarão das nove da manhã em adiante ocultos a cem passos de castelo. Depois do jantar, subirei de novo como hoje a sua câmara; como hoje apagará a luz; como hoje entrarei eu em seu aposento. Mas amanhã, em vez de sair sozinho, você me seguirá, sairemos pela porta que dá sobre os campos, encontraremos os cavalos, montaremos, e depois de amanhã pela manhã teremos percorrido trinta léguas.

— Oh! Por que não será já depois de amanhã!

— Querida Edvige!

Gregoriska me apertou sobre o peito, e nossos lábios se encontraram. Oh, havia dito ele, eu tinha aberto a porta de meu quarto a um homem de honra; mas compreendeu bem que se não lhe pertencia em corpo lhe pertencia em alma.

Transcorreu a noite sem que pudesse fechar os olhos. Via-me fugir com Gregoriska, sentia-me transportada por ele como já o tinha sido por Kostaki: só que aquela carreira terrível, fúnebre, permutava-se agora em um apuro suave e delicioso, ao que a velocidade do movimento adicionava deleite, pois também o movimento veloz tem um deleite próprio...

Nasceu o dia. Desci. Pareceu-me que o gesto com que me saudou Kostaki era ainda mais tétrico que de costume. Seu sorriso era irônico e ameaçador. Smeranda não me pareceu mudada. Depois, Gregoriska organizou seus cavalos. Parecia que Kostaki não dava nem a mínima atenção naquela ordem. Por volta das onze Gregoriska nos saudou, anunciando que estaria de volta de noite, e rogando a sua mãe que não o esperasse para jantar: depois, voltou-se para mim e me pediu desculpas.

Saiu. O olhar de seu irmão o seguiu até quando deixou a câmara, e nesse momento lhe brotou dos olhos um tal relâmpago de ódio que me estremeci. Podem imaginar-se com que inquietação passei aquele dia. A ninguém tinha contado nossos intentos, com muita dificuldade falei com Deus disso em minhas preces, e me parecia que todos os conheciam, que cada olhar posto em mim pudesse penetrar e ler no íntimo de meu coração... O jantar foi um suplício, áspero e taciturno, Kostaki, por costume, falava raramente: desta vez não disse mais que duas ou três palavras em moldavo a sua mãe, e sempre com tal acento que fazia estremecer. Quando me levantei para subir a meu aposento, Smeranda, como de ordinário, abraçou-me, e ao me abraçar repetiu aquela frase que desde oito dias não lhe saía da boca: “Kostaki ama Edvige!“

Esta frase me seguiu como uma ameaça até meu quarto, e até ali me parecia que uma voz fatal me sussurrasse ao ouvido: Kostaki ama Edvige! Agora o amor de Kostaki, Gregoriska dissera, equivalia à morte. Por volta das sete da noite vi Kostaki atravessar o pátio.

Voltou-se para ver-me, mas me afastei para que não pudesse me descobrir. Estava inquieta, pois por quanto podia eu ver desde minha janela, parecia-me que ele ia diretamente para a cavalariça. Arrisquei-me a correr os ferrolhos de uma das portas internas de meu quarto e passar à câmara vizinha, de onde podia ver tudo o que ele estava fazendo. Dirigia-se, mesmo, para a cavalariça, e quando chegou, tirou ele mesmo seu cavalo favorito, selando-o de sua própria mão com o cuidado de um homem que dá a maior importância a cada detalhe. Vestia o mesmo traje que quando me aparecesse a primeira vez, mas não levava outra arma que o sabre. Quando teve selado o cavalo, olhou outra vez para a janela de meu quarto. Não me havendo visto, saltou sobre a sela, fez-se abrir a mesma porta pela que saíra e devia voltar seu irmão, e se afastou a todo galope em direção do monastério de Hango.

Me apertou então terrivelmente o coração; um fatal pressentimento me dizia que Kostaki ia ao encontro de seu irmão. Estive na janela até quando pude distinguir o caminho que, a um quarto de légua de distância do castelo, fazia uma curva à esquerda e se perdia no começo de um bosque. Mas a noite se tornava cada vez mais fechada, e logo não pude distinguir mais o caminho.

Finalmente, a inquietação que me atormentava renovou, precisamente por excesso, minhas forças, e, pois, as primeiras notícias, de um ou de outro irmão, deviam me chegar, na sala inferior, desci.

Olhei acima de tudo Smeranda. Na tranquilidade de seu rosto adverti que não tinha nenhuma apreensão; dava ordens para a acostumado jantar, e os talheres dos irmãos estavam nos lugares habituais. Não me atrevi a interrogar a ninguém. Por outra parte, a quem tivesse podido me dirigir? No castelo ninguém, exceto Kostaki e Gregoriska, falavam as duas línguas que eu sabia. Sobressaltava-me ao mínimo rumor. Por costume, íamos à mesa às nove.

*

Tinha descido à sala às oito e meia, e seguia com o olhar a agulha dos minutos, cujo avanço era quase visível sobre o amplo quadrante do relógio. A viajante agulha transitou a distância que nos separava do quarto de hora.

O quarto bateu, e as vibrações ressoaram profundas e tristes; em seguida, a agulha continuou seu girar silencioso, e a vi percorrer de novo a distância com a regularidade e a lentidão da ponta de um compasso. Alguns minutos antes de dar as nove me pareceu-me ouvir o esperneio de um cavalo no pátio. Ouviu-o também Smeranda, e voltou o rosto para a janela: mas a noite era muito escura para poder distinguir objeto algum. Oh! Se eu fosse mais cuidadosa naquele momento, quão disposta teria adivinhado o que acontecia meu coração...

Ouviu-se o espernear de um só cavalo, e era coisa muito natural, pois estava eu bem segura de que teria retornado um só cavaleiro. Mas qual? Ressoaram alguns passos no hall; passos lentos, como os de um homem que caminha hesitando: cada um deles me parecia apertar o coração. A porta se abriu, e na escuridão vi delinear-se uma sombra.

A sombra se deteve um instante na porta; meu coração ficou em suspense. A sombra avançou, e à medida que entrava no círculo da luz, recuperava eu o fôlego.

Reconheci Gregoriska. Alguns momentos mais, e o coração me quebrava. Reconheci Gregoriska, mas estava pálido como um cadáver. Com apenas um olhar se podia adivinhar que tinha acontecido algo terrível.

— É você, Kostaki? — perguntou Smeranda.

— Não, minha mãe —respondeu Gregoriska com voz surda.

—Ah, enfim! —disse ela — E desde quando a sua mãe tem que lhe esperar?

— Minha mãe —disse Gregoriska olhando o relógio —, são nove horas.

E efetivamente nesse mesmo momento soaram as nove.

— É verdade — disse Smeranda. — Onde está seu irmão?

Em minha mente apresentou o pensamento de que Deus tinha feito a mesma pergunta a Caim. Gregoriska não respondeu.

— Ninguém viu até agora Kostaki? — perguntou Smeranda.

O vatar, ou seja o mordomo, foi informar-se.

— Por volta das sete — disse ele de volta — o conde esteve nas cavalariças, selou com própria mão seu cavalo, e partiu pelo caminho de Hango.

Nesse instante meus olhos se encontraram com os de Gregoriska. Não sei se foi realidade ou alucinação, mas me pareceu notar uma gota de sangue em meio de sua frente.

Levei lentamente o dedo à frente indicando o ponto onde acreditava eu ver aquela mancha, Gregoriska me compreendeu: tirou o lenço e se limpou.

— Sim, sim — murmurou Smeranda —, terá encontrado algum lobo ou urso, e se terá entretido em persegui-lo. Aqui está por que um filho faz esperar a sua mãe. Onde o deixou, Gregoriska?

— Minha mãe — respondeu este com voz comovida mas firme — meu irmão e eu não saímos juntos.

— Bem — disse Smeranda. — Vamos à mesa, cada um fique em seu lugar, e logo fechem as portas; quem está fora, dormirá lá fora.

*

As duas primeiras partes destas ordens foram estritamente executadas. Smeranda ficou em seu lugar, Gregoriska se sentou à sua direita, eu à sua esquerda. Depois os servidores saíram para cumprir a terceira parte das ordens, quer dizer, para fechar as portas do castelo. Nesse momento mesmo se escutou um grande estrépito no pátio, e um servidor entrou espantado dizendo:

— Princesa, entrou neste instante ao pátio o cavalo do conde Kostaki, só e inteiramente coberto de sangue.

— Oh! — murmurou Smeranda levantando-se pálida e ameaçadora. — De tal modo voltou uma noite ao castelo o cavalo de seu pai.

Dirigiu um olhar a Gregoriska: não estava pálido já, estava lívido. O cavalo do conde Koproli, em efeito, tinha retornado uma noite ao castelo todo manchado de sangue, e uma hora depois os servidores encontraram e trouxeram o corpo do amo coberto de feridas. Smeranda tomou uma tocha de mãos de um criado, aproximou-se da porta e abrindo-a, desceu ao pátio. O cavalo, espantado, era retido por três ou quatro serrviçais que faziam toda classe de esforços para tranqüilizá-lo. Smeranda se aproximou

do animal, examinou o sangue que cobria a sela.

— Kostaki foi morto — disse ela — em duelo e por um só inimigo. Procurem seu corpo, meus filhos, mais tarde procuraremos o homicida.

Assim como o cavalo tinha entrado pela porta de Hango, todos os servidores se precipitaram fora por ela, e se viram suas tochas perder-se na campina e entrar no profundo do bosque, como em uma formosa noite de estio se veem cintilar as vaga-lumes na planície da Niza ou de Pisa.

Smeranda, como se tivesse estado certa de que a busca não duraria muito, aguardou erguida na porta. Nenhuma lágrima umedecia as faces daquela mãe desolada, entretanto se via que o desespero rugia tempestuosa no profundo de seu coração... Gregoriska estava detrás dela, e eu perto de Gregoriska.

Ao abandonar a sala, pareceu querer me oferecer seu braço, mas não se atreveu a fazê-lo. Desde aí em perto de um quarto de hora se viu aparecer na curva do caminho uma tocha, logo uma segunda, uma terceira, e finalmente se distinguiram todas. Só que agora, em vez de dispersar-se estavam agrupadas em torno de um centro comum.

Esse centro era, como bem logo se pôde ver, parelhas com um homem estendido sobre elas.

O fúnebre cortejo avançava lentamente, mas ao cabo de dez minutos quem o levava tiraram o chapéu instintivamente a cabeça, e taciturnos entraram no pátio, onde foi depositado o corpo. Então, com um majestoso gesto, Smeranda ordenou que lhe dessem passagem, e aproximando-se do cadáver pôs um joelho em terra ante ele, apartou

os cabelos que lhe formavam um véu sobre o rosto, e esteve contemplando-o longamente, sem derramar uma lágrima. Abriu-lhe logo a roupa moldava e afastou camisa ensanguentada.

A ferida se achava na parte mão direita do peito. Devia ter sido feita com uma folha reta e de dois fios. Recordei ter visto essa manhã mesma no flanco de Gregoriska a faca de caça que servia de baioneta a sua carabina. Procurei com os olhos a arma: não estava já ali.

Smeranda se fez levar água, molhou nela seu lenço e lavou a chaga. Um sangue puro e morno ainda avermelhou os lábios da ferida. O espetáculo que tinha sob os olhos era a um tempo atroz e sublime. Aquela vasta sala defumada pelas tochas de resina, aqueles rostos bárbaros, aqueles olhos cintilantes de ferocidade, aquelas roupagens singulares, aquela mãe que, à vista do sangue, calculava quanto tempo fazia que a morte levara seu filho, aquele profundo silêncio interrompido só pelos soluços dos bandidos cujo chefe era Kostaki, todo isso, repito, tinha em si algo de atroz e de sublime. Smeranda aproximou seus lábios à frente de seu filho, e se levantou; em seguida, tornando-se às costas as largas tranças de brancos cabelos que lhe tinham desunido:

— Gregoriska! — disse.

  Gregoriska estremeceu, sacudiu a cabeça e saindo de sua atonia:

— Minha mãe — respondeu.

— Venha aqui, meu filho, e me escute.

Gregoriska obedeceu, tremendo, mas obedeceu.

À medida que se aproximava do corpo de Kostaki, o sangue brotava da ferida mais abundante e mais vermelha. Felizmente Smeranda não olhava mais para aquele lado,

pois à vista daquele sangue não teria tido já necessidade de procurar o assassino.

— Gregoriska — disse ela —, bem sei que Kostaki e você não se olhavam com bons olhos, bem sei que você é um Waivady por parte de seu pai, e ele um Koproli por parte

do dele, mas por parte de mãe são ambos do sangue dos Brankovan. Sei que você é um homem de cidade ocidental e ele um filho das montanhas orientais; mas pelo sei

o que os levou a ambos, são irmãos. Pois bem! Gregoriska, quero saber se meu filho será levado a jazer junto à tumba de seu pai sem que tenha sido pronunciado o

juramento, se eu enfim poderei chorar tranqüila, como mulher, sabendo que você castigará o homicida.

— Me diga, senhora, o nome do homicida, e ordena; juro que dentro de uma hora, se você o exigir, terá deixado de viver.

— Jure sob pena de minha maldição, entende, meu filho? Jure que o assassino morrerá, que não deixará pedra sobre pedra de sua casa: que sua mãe, seus filhos, seus

irmãos, sua mulher ou sua prometida perecerão por sua mão? Jure, e, ao jurá-lo, invoque sobre você a cólera celeste se faltar à sacra promessa. Se faltar a esta

sacra promessa, padecerá a miséria, a abominação dos amigos, a maldição de sua mãe.

Gregoriska estendeu a mão sobre o cadáver, e disse:

— Juro que o assassino morrerá — disse.

Aquele singular juramento, cujo verdadeiro sentido eu sozinha e o morto talvez podíamos compreender, vi ou acreditei ver cumprir um horrendo prodígio. Os olhos do

cadáver se abriram, fixaram-se sobre mim mais vivos que nunca, e, como se aquele olhar tivesse sido evidente, senti me penetrar até o coração um ferro candente.

Não resisti tanto dor, e desmaiei.

*

Quando recuperei os sentidos me encontrei deitada sobre o leito de meu quarto: uma das duas mulheres velava perto de mim. Perguntei onde estava Smeranda; foi respondido

que velava junto ao corpo de seu filho. Perguntei onde estava Gregoriska: me disse que no monastério do Hango.

Agora não era preciso fugir: não tinha morrido Kostaki? Não se devia já falar de bodas, eu podia me casar com o fratricida? Transcorreram assim três dias e três noites em meio de estranhos sonhos. Na vigília e no sonho via sempre aqueles dois olhos vivos nesse rosto de morto: era uma visão horrenda. Kostaki devia ser sepultado ao terceiro dia.

*

Pela manhã foi-me emprestado de parte de Smeranda um vestido completo de viúva. Vesti isso e desci. A casa parecia vazia, todos estavam na capela. Encaminhei-me para ela, e ao tempo que transpunha sua soleira, veio a meu encontro Smeranda a quem não tinha visto há três dias.

Disseram-me que era a imagem da Dor. Com lento movimento como o de uma estátua, pousou sobre minha frente seus lábios, e com voz que parecia sair já da tumba, pronunciou as habituais palavras: Kostaki te ama!... Não se podem imaginar o efeito que produziram em mim aquelas palavras. Esse protesto de amor expressa em presente em vez de em passado, que dizia te ama, e não te amava; esse amor de além-túmulo que vinha me buscar na vida, fez sobre meu coração uma impressão terrível. Ao mesmo tempo se apoderava de mim um estranho sentimento, tal como se fosse verdadeiramente a mulher daquele que tinha morrido, não a prometida do vivo. Aquele ataúde atraía meu pesar, dolorosamente, como a serpente atrai ao pássaro por ela fascinado.

Procurei com os olhos Gregoriska; vi-o pálido e erguido contra uma coluna: olhava para o alto. Não sei dizer se me viu. Os monges do convento de Hango rodeavam o corpo cantando salmos do rito grego, às vezes harmoniosos, com freqüência monótonos. Também eu quis orar, mas a prece expirava em meus lábios; minha mente estava tão confusa que me parecia antes presenciar um consistório de demônios que uma reunião de monges. Quando foi tirado o corpo dali, quis segui-lo, mas me faltaram forças. Senti as pernas moles, e me apoiei na porta. Então Smeranda se aproximou e fez um gesto a Gregoriska. Este se aproximou. Smeranda me falou em moldavo:

— Minha mãe me ordena lhe repetir palavra por palavra o que vai dizer — expressou-me Gregoriska.

Smeranda falou de novo; quando teve terminado:

— Heis aqui as palavras de minha mãe — disse ele — “Chore por meu filho, Edvige, se o amava, certo? Agradeço-lhe as lágrimas e seu amor; de agora em diante tem uma pátria, uma mãe, uma família. Derramemos as muitas lágrimas devidas aos mortos, logo sejamos de novo dignas ambas daquele que já não é... eu sua mãe, você sua mulher! Adeus, volte para seu quarto; eu acompanharei o meu filho até sua última morada. Quando retornar, encerrar-me-ei em minha casa com minha dor, e me voltará a ver só quando o tiver vencido. Fique tranquila, matarei esta dor, porque não quero que me mate.

A estas palavras da Smeranda, traduzidas por Gregoriska, não pude responder a não ser com um gemido. Subi a meu quarto: o fúnebre cortejo se afastou, e o vi desaparecer no ângulo do caminho. O convento de Hango estava a só meia légua de distância do castelo em linha reta; mas os obstáculos faziam dar muitas voltas ao caminho, de modo que se empregavam duas horas em percorrer aquele espaço. Era o mês de novembro. As jornadas se tornaram frias e breves, e às cinco já era noite escura. Por volta das sete vi reaparecer as tochas; o cortejo fúnebre tinha retornado. O cadáver repousava na tumba de seus pais; tudo estava concluído.

Disse-lhes já em que singular pesadelo vivia, presa logo do fatal sucesso que inundasse a todos no duelo, e sobretudo depois que vi reabrir-se e fixar-se sobre mim os olhos fechados do morto. A noite que seguiu, oprimida pelas emoções experimentadas durante o dia, estava ainda mais triste. Escutava soar todas as horas do relógio do castelo, e à medida que o tempo fugitivo me aproximava do momento em que tinha morrido Kostaki, sentia-me cada vez mais desconsolada. Soaram as nove menos um quarto. Então se apoderou de mim uma estranha sensação. Corria-me por todo o corpo um terror, um estremecimento que me gelava; logo uma espécie de sonho invencível entorpecia meus sentidos, oprimia-me o peito, e me velava os olhos. Estendi o braço e fui cair de costas sobre o leito. Entretanto não tinha perdido totalmente os sentidos como para que não pudesse ouvir uns passos aproximando-se de minha porta, depois me pareceu abri-la, em seguida não vi nem escutei mais nada. Só senti uma viva dor no pescoço. Logo depois, caí em profunda letargia.

*

Despertei a meia-noite; meu abajur ardia ainda; tentei me levantar, mas estava tão fraca que tive que repetir a tentativa duas vezes. Finalmente consegui superar minha debilidade, e como acordada, sentia no pescoço a mesma dor que experimentara no sonho, arrastei-me, me apoiando no muro, até o espelho, e olhei.

Algo que se assemelhava a picada de um alfinete marcava a artéria de meu pescoço. Acreditei que algum inseto me tivesse picado durante o sonho, e como me sentia abatida pela extenuação, deitei-me de novo e dormi. À manhã despertei como de costume; mas então senti uma tal debilidade como senti só uma vez em minha vida, à manhã seguinte de um dia em que fora sangrada. Olhei-me no espelho, e me surpreendi de minha extraordinária palidez. A jornada transcorreu triste e escura; experimentava eu uma coisa singular; quando me encontrava em um lugar sentia necessidade de ficar ali: qualquer mudança de posição me fatigava.

Chegada a noite, trouxeram-me o abajur; as minhas serviçais, conforme podia eu compreender por seus gestos, ofereceram-se a ficar comigo. Agradeci e saíram. À mesma hora que a noite precedente experimentei os mesmos sintomas. Quis me levantar então e pedir ajuda; mas não pude chegar à saída. Ouvi vagamente dar as nove menos quarto; os passos ressonaram, abriu-se a porta, mas eu não via nem escutava nada, e, como a noite anterior, caí de costas sobre o leito. Como no dia anterior experimentei uma dor no mesmo lugar. Como no dia anterior despertei a meia-noite; mas mais pálida e mais fraco ainda. Ao dia seguinte se renovou o horrível pesadelo.

Estava decidida a descer aos aposentos de Smeranda por mais fraca que me sentisse, quando entrou no quarto uma de minhas servas e pronunciou o nome de Gregoriska.

O jovem a seguia. Tentei me levantar para o receber, mas voltei a cair em minha poltrona. Ele deu um grito, e quis lançar-se para mim, mas tive a força de estender o braço para ele.

— O que faz aqui? — perguntei-lhe.

— Ah! — disse ele — venho lhe dizer adeus! Dizer-lhe que abandono este mundo que me é insuportável sem seu amor e sua presença e anunciar que me retiro ao monastério de Hango.

— Gregoriska — respondi-lhe — pode estar privado de minha presença, mas não de meu amor. Eu o amo, sempre amarei, e minha maior tristeza é que este amor seja doravante quase um delito.

— Então, posso esperar que vai pedir-me que fique, Edvige?

— Sim, mas não o poderei fazer ainda — repliquei eu com um sorriso triste.

— Por que não? Mas na verdade a vejo muito abatida. Diga-me, o que tem? Por que está tão pálida?

— Porque... Deus tem certamente piedade de mim, e Ele deve estar me chamando.

Gregoriska se aproximou, tomou-me a mão que não tive força de sustentar, me olhando fixo no rosto:

— Essa palidez não é natural, Edvige — disse — qual é a causa?

— Se lhe dissesse isso, Gregoriska, ia achar que estou louca.

— Não, não, fale, Edvige, suplico-lhe. Estamos em um país que não se parece com nenhum outro país, em uma família que não se assemelha a nenhuma outra família. Diga, conte-me tudo, por favor.

Contei-lhe tudo: a estranha alucinação que me possuía à hora em que Kostaki devia ter morrido, esse terror, essa letargia, esse frio glacial, essa prostração que me fazia cair de costas sobre o leito, esse ruído de passos que eu parecia ouvir, essa porta que acreditava abrir-se, e finalmente essa aguda dor no pescoço, seguida de uma palidez e de uma debilidade sempre crescentes. Acreditava eu que meu relato pareceria a Gregoriska um começo de loucura, e o terminei com certo acanhamento, quando notei, pelo contrário, que ele me prestava grande atenção.

Quando terminei de falar, Gregoriska refletiu um instante.

— De maneira — perguntou ele — que você vai dormir, cada noite, às nove menos um quarto?

— Sim, por muitos que sejam os esforços que faça para resistir ao sonho.

— E a essa mesma hora você acredita ver abrir-se a porta?

— Sim, embora jogue o ferrolho.

— E então experimenta uma aguda dor no pescoço?

— Sim, embora seja apenas visível o sinal da ferida.

— Posso ver?

Dobrei a cabeça para trás. Ele Examinou a cicatriz.

— Edvige — disse Gregoriska depois de um momento de reflexão—, você confia em mim?

— Ainda me pergunta? — respondi.

— Crê em minha palavra?

— Como creio no Evangelho.

— Bem, Edvige, por minha fé, juro-lhe que não tem oito dias de vida se não aceitar fazer, hoje mesmo, o que vou lhe dizer.

— E se concordar?

— Se concordar, talvez vai se salvar.

— Talvez? — ele se calou. — Aconteça o que acontecer, Gregoriska — continuei dizendo — farei o que me disser para fazer.

— Escute então — disse ele — e acima de tudo não se espante. Em seu país, como na Hungria e em nossa Romênia, existe uma tradição.

Tremi porque essa tradição já tinha voltado para minha memória.

— Ah! Sabe o que quero dizer?

— Sim — respondi —, na Polônia vi algumas pessoas padecerem da horrenda coisa.

— Quer dizer, do vampiro, não é verdade?

— Sim, menina ainda, aconteceu-me ver desenterrar no cemitério de uma aldeia pertencente a meu pai, quarenta pessoas mortas em quinze dias, sem que se tivesse podido

em nenhuma ocasião saber causa de sua morte. Dezessete desses cadáveres expuseram todos os sinais de vampirismo, quer dizer foram encontrados frescos como se estivessem

estado vivos. Os outros eram suas vítimas.

— E o que se fez para libertar a região disso?

— Foram-lhes cravadas estacas nos corações, e então os queimaram.

— Sim, é o que se costuma fazer, mas para nós isso não basta. Para a libertar de seu fantasma, antes quero conhecê-lo, e por Deus! Hei de conhecê-lo. Sim, e se for preciso, lutarei corpo a corpo com ele, seja quem for.

— Oh, Gregoriska! — exclamei espantada.

Disse:

— Seja quem for, repito-o. Mas para levar a bom fim esta terrível aventura, é necessário que faça tudo o que lhe exigirei.

— Farei.

— Esteja preparada às sete. Desça à capela, mas desça sozinha; é necessário que vença a sua debilidade, Edvige. Ali receberemos a bênção nupcial. Consinta isso,

minha amada: para velar por você. Então subiremos de novo a este quarto, e então veremos.

— Gregoriska — exclamei —; se for ele, vai matar você!

—Não tema, amada Edvige. Apenas consita.

— Sabe bem que farei tudo o que quiser, Gregoriska.

— Então, até mais à noite.

— Sim, faça o que achar mais oportuno, e vou fazer o melhor que eu puder. Adeus.

Ele se foi. Um quarto de hora depois, vi um cavalheiro precipitar-se a toda carreira pelo caminho do monastério. Era ele.

Apenas o perdi de vista, caí de joelhos e orei, orei como já não se reza em nossas terras sem fé, e aguardei às sete, oferecendo a Deus e aos Santos o holocausto

de meus pensamentos; não me levantei a não ser ao soar as sete horas. Estava fraca como uma moribunda, pálida como uma morta. Joguei sobre a cabeça um grande véu

negro, desci a escada, me apoiando no muro, e me dirigi à capela sem encontrar ninguém.

Gregoriska me esperava com o pai Basílio, prior do monastério de Hango. Rodeava uma espada Santa, relíquia de um antigo cruzado que assistiu à tomada de Constantinopla com Ville-Hardouin e Baldouin de Flandres.

— Edvige — disse ele batendo com a mão na sua espada —, com a ajuda de Deus, esta romperá o encantamento que ameaça sua vida. Se aproxime, pois, resolutamente. Este santo homem, que já recebeu minha confissão, receberá nossos juramentos.

Começou a cerimônia. Talvez nunca outra foi mais singela e a um tempo mais solene. Ninguém ajudava o monge, ele mesmo nos pôs sobre a cabeça as coroas nupciais.

Vestidos ambos de luto, giramos em torno do altar com um círio na mão; então o monge, depois de pronunciar as palavras sagradas, adicionou:

— Vão-se agora, meus filhos, e o Senhor lhes dê força e valor para lutar contra o inimigo do gênero humano. Armados da inocência de vocês e defendidos por Sua justiça,

vencerão o demônio. Vão, e abençoados sejam.

Beijamos os Livros Santos e saímos da capela. Então pela primeira vez me apoiei no braço da Gregoriska, e me pareceu que ao contato daquele braço forte, daquele nobre coração, a vida voltava para minhas veias. Estava segura do triunfo, porque Gregoriska estava comigo. Subimos ao meu quarto. Soavam as badaladas das oito e meia.

— Edvige — disse-me então Gregoriska —, não temos tempo a perder. Quer dormir, como de costume, para que tudo aconteça durante seu sonho, ou permanecer acordada e vê-lo?

— Junto com você não temo nada, quero permanecer acordada e ver tudo.

Gregoriska extraiu de seu peito um raminho abençoado, úmido ainda de água benta, e me deu:

— Tome então — disse —; deite-se em seu leito, recite as preces da Virgem e aguarde sem temor. Deus está conosco. Cuide acima de tudo de não deixar cair o raminho, pois com ele poderá mandar até no inferno. Não me chame, não dê nenhum grito, reze, confie e aguarde.

Deitei-me. Cruzei as mãos sobre o seio, e pus sobre ele o raminho benta. Gregoriska se ocultou atrás do trono de que já falei. Eu contava os minutos, e com certeza meu marido fazia o mesmo.

Soaram os três quartos. Vibrava ainda o tinido do relógio, quando me senti presa do mesmo entorpecimento, do mesmo terror e do mesmo frio glacial dos dias precedentes.

Aproximei de meus lábios o ramo bendito, e aquela primeira sensação se desvaneceu. Ouvi então muito claro o ruído daquele fenômeno que, lento e cuidadoso, subia os degraus da escada e se aproximava da porta. Logo a porta se abriu, sem ruído, como que empurrada por sobrenatural força, e então...

A voz se apagou pela metade, quase sufocada na garganta da narradora. E então —continuou fazendo um esforço — vi Kostaki, pálido como me surgira nas montanhas, os longos cabelos negros, caindo sobre as costas, gotejavam sangue. Vestia-se como de costume, mas tinha o peito descoberto e deixava ver sua sangrem ferida. Tudo estava morto, tudo era cadáver... carne, roupas, porte... somente os olhos, aqueles terríveis olhos, estavam vivos.

Ante aquela aparição, sinto que me fogem as palavras! Em vez de sentir aumentar-me o medo, senti crescer a minha coragem. Deus me enviava isso para decidir minha situação e me defender do inferno.

Ao primeiro passo que o espectro deu para meu leito, cravei-lhe audaciosamente os olhos no rosto e lhe apresentei o ramo bendito. O espectro tentou avançar, mas um poder mais forte que ele o reteve no lugar. Parou.

— Ah... — murmurou — ela não está dormindo, sabe tudo.

Pronunciou ele estas palavras em língua moldava, e, entretanto, as compreendi eu como se tivessem sido pronunciadas minha própria língua.

Estávamos assim, um frente ao outro, o fantasma e eu, sem que eu pudesse afastar meus olhares dos seus, quando com o canto dos olhos vi Gregoriska sair detrás do

baldaquino, semelhante ao anjo exterminador e com a espada no punho. Fez o sinal da cruz com a mão esquerda, e avançou lentamente com a espada erguida para o fantasma.

Este, ao ver o irmão, desembainhou também o sabre, soltando uma horrível gargalhada. Mas apenas seu sabre tocou o ferro bendito, o braço lhe caiu inerte junto ao corpo. Kostaki exalou um suspiro de raiva e desespero.

— O que quer de mim? — perguntou ao irmão.

— Em nome do Deus verdadeiro e vivente — disse Gregoriska — eu ordeno que me responda.

— Pergunte — disse o espectro chiando os dentes.

— Peguei você em uma emboscada, quando estava vivo?

— Não.

— Assaltei-o?

— Não.

— Feri-o?

— Não.

— Jogou-se você mesmo sobre minha espada e você mesmo correu ao encontro da morte. Então, ante Deus e os homens não sou culpado do delito de fratricídio. Então, você não recebeu uma missão divina, mas sim infernal. E saiu de sua tumba não como uma sombra santa, mas sim como um espectro maldito, e voltará para sua tumba.

— Com ela, eu volto, sim! — exclamou Kostaki fazendo um supremo esforço para apoderar-se de mim.

— Voltará lá sozinho! — exclamou por sua vez Gregoriska. — Esta mulher me pertence.

E ao pronunciar tais palavras tocou com a ponta do ferro bendito a chaga viva.

Kostaki soltou um grito como se lhe houvessem metido uma espada de fogo e, levando uma mão ao peito, deu um passo atrás. Ao mesmo tempo, Gregoriska, com um movimento

que parecia coordenado com o do irmão, deu um passo adiante; então, com os olhos fixos nos olhos do morto, com a espada contra o peito de seu irmão, começou uma

marcha lenta, terrível, solene. Era algo semelhante à passagem de dom Juan e o comendador.

O espectro retrocedia sob a pressão da sacra espada, sob a vontade irresistível do campeão de Deus, que o seguia passo a passo, sem pronunciar uma palavra, ambos

os ofegantes, ambos os rostos lívidos, o vivo avançando contra o morto e obrigando-o a abandonar o castelo, sua anterior morada, para voltar para a tumba, sua morada futura... Asseguro-o, por minha fé, era coisa horrenda de ver-se! E, entretanto, eu mesma, movida por uma força superior, invisível, desconhecida, sem saber o que fazia, levantei-me e os segui.

Descemos a escada, iluminados só pelas ardentes pupilas de Kostaki. Atravessamos a galeria e o pátio, e logo transpusemos a porta, sempre com o mesmo passo lento, o espectro retrocedendo, Gregoriska com o braço erguido, eu detrás deles.

Esta marcha fantástica durou uma hora, pois era necessário voltar o cadáver para sua tumba, mas em vez de seguir o caminho acostumado, Kostaki e Gregoriska atravessaram o terreno em linha reta, desviando-se dos obstáculos, que para eles já não existiam; ante eles o chão se aplainava, os riachos secavam, as árvores se afastavam, as rochas se abriam. O mesmo milagre se operava para mim: só que o céu me parecia todo coberto de um negro véu, as luas e as estrelas tinham desaparecido e em meio das trevas só via resplandecer os olhos chamejantes do vampiro.

Chegamos de tal modo a Hango e passamos através da sebe viva que servia da cerca ao cemitério. Apenas entramos, distingui entre as sombras a tumba de Kostaki, junto

à de seu pai, não sabia que estava ali e, entretanto, a reconheci. Nada me era desconhecido naquela noite.

Gregoriska parou próximo da fossa aberta.

— Kostaki — disse ele. — Está tudo terminado para você, e uma voz do céu me avisa que pode conceder o perdão se você se arrepender, promete retornar à tumba, não sair mais dela e consagrar a Deus o culto que consagrou ao inferno.

— Não! — respondeu Kostaki.

— Arrepende-se? — perguntou Gregoriska.

— Não!

— Pela última vez, arrepende-se?

— Não!

— Bem! Invoque então a ajuda de Satanás, como invoco eu a de Deus, e veremos quem sairá desta vez ainda vitorioso.

Ressoaram simultaneamente dois gritos, os ferros se cruzaram despedindo centelhas, e a luta durou um minuto que me pareceu um século. Kostaki caiu, vi elevar-se a terrível espada de seu irmão, introduzir-se no seu corpo, e cravar esse corpo sobre a terra recém removida. Um último grito que nada tinha de humano se elevou pelo ar.

Acorri: Gregoriska estava em pé, mas vacilante. Ajudei-o, apoiando-o com meus braços.

— Está ferido? — perguntei-lhe ansiosamente.

— Não — respondeu-me —, mas em tal duelo, querida Edvige, a luta, não a ferida, é o que mata. Lutei com a morte, e a ela pertenço.

— Meu querido — exclamei — se afaste daqui e voltemos à vida.

— Não, esta é minha tumba, Edvige, mas não percamos tempo. Toma um pouco desta terra impregnada de seu sangue e coloque-a na mordida que ele lhe fez; é o único meio

que pode preservá-la no futuro de seu horrendo amor.

Obedeci tremendo. Inclinei-me para recolher aquela terra sangrenta, e ao me dobrar vi o cadáver ao chão: a espada bendita lhe atravessara o coração, e um sangue

escuro lhe brotava abundante da ferida, como se tivesse morrido naquele momento.

Amassei um pouco de terra com o sangue, e apliquei na minha ferida o espantoso talismã.

— Agora, minha adorada Edvige — disse Gregoriska com voz sumida — escute bem meu último conselho. Abandone o país assim que possível. Só a distância é segura para

você. O pai Basilio recebeu hoje minha suprema vontade e a cumprirá. Edvige, um beijo! O último, o único beijo! Edvige, vou morrer...

E assim dizendo, Gregoriska caiu junto ao irmão.

*

Em qualquer outra circunstância, em meio daquele cemitério, perto daquela tumba aberta, com aqueles dois cadáveres jazendo um junto ao outro, eu teria enlouquecido.

Mas Deus me tinha inspirado uma força igual aos acontecimentos, dos que Ele me fizera não só testemunha, mas também atriz.

Enquanto olhava ao meu redor em busca de ajuda, vi abrir-se a porta do monastério e avançarem dois monges conduzidos pelo pai Basilio, levando círios ardentes e cantando as preces de defuntos. O pai Basilio tinha chegado fazia pouco ao convento, e prevendo o acontecido, dirigia-se ao cemitério com toda a congregação. Encontrou-me viva perto dos dois mortos.

Uma última convulsão tinha retorcido o rosto do Kostaki. Gregoriska em compensação, estava tranquilo e quase sorridente.

Foi sepultado, como desejara, junto ao irmão, o cristão junto ao maldito. Smeranda, quando teve notícia da nova desdita, quis me ver, foi me buscar no convento de Hango, e soube de meus lábios tudo quanto tinha acontecido naquela tremenda noite.

Referi-lhe todos os detalhes da fantástica história, mas ela me escutou, como já me escutasse Gregoriska, sem mostrar estupor nem espanto.

— Edvige — respondeu-me ela depois de um instante de silêncio — por muito estranho que seja o que me contou, disse só a verdade. A estirpe dos Brankovan está maldita

até a terceira e quarta geração, porque um Brankovan matou um sacerdote. O término da maldição chegou, pois você, embora esposa, é virgem, e em mim se extingue a

linhagem. Se meu filho lhe deixou uma boa herança, toma-a. Depois de minha morte, salvo os pios legados que tenho a intenção de fazer, receberá o resto de meus bens.

E agora siga o conselho de seu marido. Volte o mais rápido que puder para aquelas terras onde Deus não permite que se cumpram tão horrendos prodígios. Não necessito de ninguém para chorar comigo por meus filhos. Minha dor quer solidão. Adeus, não se preocupe comigo. Minha sorte futura pertence só a mim e a Deus.

E logo depois de me beijar na fronte como de costume, deixou-me e foi encerrar-se no castelo de Brankovan.

Oito dias depois parti para a França. Como esperava Gregoriska, minhas noites não foram turvadas mais pelo terrível fantasma.

Restabeleceu-se minha saúde, e daquela aventura não ficou outra lembrança, exceto esta palidez mortal que costuma acompanhar até o fim dos seus dias qualquer ser humano que tenha sofrido o beijo de um vampiro.

 

Fonte: Projeto Livro para Todos, Are e É da Letra. Reprodução e publicação autorizadas na fonte. 


 

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