ÓLEO DE CÃO - Conto Clássico de Horror - Ambrose Bierce
ÓLEO DE CÃO
Ambrose Bierce
(1842 – 1914?)
Tradução de Paulo Soriano
Cínico, cáustico e
irônico, Ambrose Bierce (1842 — 1914?) é um grande mestre das narrativas
de terror norte-americanas. “Óleo de Cão” é um conto cruel: o pai
sacrifica cães para preparar, em seus ebulientes caldeirões, um lucrativo óleo
medicinal de eficácia duvidosa; a mãe elimina recém-nascidos indesejados. Por
acaso, uma criança — o filho do “respeitável casal” — une, acidentalmente, o
útil ao agradável, mas precipita uma tragédia familiar (e, sobretudo,
comercial). Uma horrenda narrativa, na qual Bierce destila todo o seu sarcasmo.
Chamo-me
Boffer Bings. Nasci de pais honestos num dos mais humildes estilos de vida. Meu pai era fabricante de óleo de cão e minha mãe tinha um pequeno gabinete, à
sombra da igreja da vila, onde eliminava as criancinhas indesejadas. Na minha
infância, inculcaram-me os hábitos da indústria. Eu não somente ajudava o meu
pai procurando cães para os seus caldeirões, como era frequentemente
encarregado por minha mãe para me desfazer dos despojos de seu trabalho no
gabinete. Na execução dessa tarefa, muitas vezes eu precisava empregar toda a
minha natural inteligência, pois todos os agentes da lei da vizinhança
opunham-se aos negócios de minha mãe. Eles não tinham sido eleitos pela
oposição e o assunto nunca tivera conotação política: simplesmente era assim. O
negócio do meu pai — fabricar óleo de cão — era naturalmente menos impopular,
embora os donos dos cães desaparecidos olhassem para ele, às vezes, com
suspeita, o que se refletia, em certa medida, em mim. Meu pai tinha, como
parceiros silenciosos, os médicos da vila. Estes raramente escreviam uma
receita que não contivesse o que eles se compraziam em designar “Ol. Can.” É,
realmente, o medicamento mais valioso já descoberto. Mas a maioria das pessoas
não estão dispostas a fazer sacrifícios pessoais pelos que sofrem, e era
evidente que muitos dos cães mais gordos da cidade haviam sido proibidos de
brincar comigo, um fato que afligiu a minha sensibilidade juvenil e, certa
feita, quase me impeliu a embarcar como pirata.
Rememorando
aqueles dias, não posso, às vezes, deixar de lamentar-me de que, conduzindo
indiretamente os meus queridos pais à morte, eu fui o autor das desgraças que
afetaram profundamente o meu futuro.
Certa
noite, ao passar à frente da fábrica de óleo de meu pai, vindo do gabinete de
minha mãe, levando comigo o corpo de uma criancinha exposta, vi um policial que
parecia vigiar atentamente os meus movimentos. Malgrado muito jovem, eu já
aprendera que a atividade de um policial, qualquer que seja a sua natureza,
somente era desencadeada pelas causas mais reprováveis. Assim, eu o evitei,
esgueirando-me por uma porta lateral da fábrica de azeite, que casualmente se
encontrava entreaberta. Fechei-a de um golpe e fiquei sozinho com o meu morto.
Meu pai já se havia recolhido. A única luz naquele ambiente vinha da fornalha,
que reluzia um profundo e rico carmesim sob os caldeirões, lançando rubros
reflexos nas paredes. Dentro do caldeirão, o óleo ainda se revolvia em
indolente ebulição, empurrando para a superfície um pedaço de cão. Sentei-me,
esperando que o policial fosse embora, com o corpo nu da criancinha sobre os
meus joelhos. Ternamente, acariciei os seus cabelos curtos e sedosos. Ah, como
era bela a criancinha! Já nessa tenra idade eu amava profundamente as crianças
pequenas e, enquanto olhava aquele querubim, quase desejava, em meu coração,
que aquele pequeno ferimento vermelho em seu peito — obra de minha querida mãe
— tão tivesse sido mortal.
Era
meu costume lançar as criancinhas no rio, que a natureza sabiamente nos
proporcionara para esse fim, mas, naquela noite, com medo da polícia, não me
atrevi a sair da fábrica de óleo. “Afinal de contas — disse a mim mesmo —, não
creio que importará muito se eu a puser no caldeirão. Meu pai nunca
distinguiria os seus ossos dos de um filhote de cão, e as poucas mortes que
podem resultar da administração de um outro tipo de óleo no incomparável ‘Ol.
Can.’ não teriam grande influência numa população que cresce tão rapidamente”.
Resumindo: dei o primeiro passo no crime, e atraí para mim sofrimentos
indizíveis, lançando a criancinha no caldeirão.
No
dia seguinte, para a minha surpresa, o meu pai, esfregando as mãos com
satisfação, informou a mim e à minha mãe que obtivera um azeite de uma
qualidade jamais vista, conforme assim afirmavam os médicos, para os quais ele
havia levado amostras. Acrescentou que não tinha ideia de como obtivera tal
resultado: os cães haviam sido preparados, em todos os aspectos, como de
costume, e eles eram de uma raça comum. Julguei que seria o meu dever
esclarecer os fatos, mas conteria a minha língua se eu pudesse prever as
consequências daquela revelação. Lamentando a anterior ignorância sobre as
vantagens resultantes da combinação de suas atividades, os meus pais tomaram
imediatamente as medidas adequadas à reparação daquele erro. Minha mãe
transferiu seu gabinete para uma ala do edifício da fábrica e cessaram os meus
deveres relativos aos seus negócios: já não mais precisavam de mim para dar fim
aos cadáveres dos pequenos expostos e nem havia a necessidade de que eu
atraísse os cães para a morte — meu pai os descartou completamente, embora eles
tivessem ainda um lugar de honra no nome do óleo. Lançado assim tão
repentinamente na ociosidade, era de se esperar, naturalmente, que eu me
tornasse um garoto vicioso e dissoluto, mas isto não aconteceu. A sagrada
influência de minha querida mãe sempre me protegeu das tentações que afligem a
juventude e o meu pai era diácono em uma igreja. Ai de mim que, por minha
culpa, aquelas tão estimadas pessoas teriam um tão terrível fim!
Ao
encontrar um duplo proveito para os seus negócios, minha mãe se dedicou a eles
com renovada assiduidade. Não apenas eliminava, por encomenda, as crianças
supérfluas e indesejadas, como saía pelas estradas e atalhos em busca de
crianças mais crescidas e, mesmo, de adultos que conseguia atrair à fábrica de
óleo. Meu pai, também apaixonado pela qualidade superior do azeite produzido,
enchia os caldeirões com diligência e zelo. Em suma, a conversão de seus vizinhos
em óleo de cão tornou-se a única paixão de suas vidas. Uma ambição absorvente e
esmagadora se apoderou de suas almas e ocupou em parte a esperança que tinham
de alcançar o Paraíso que, a seu turno, também os inspirava.
E
tão empreendedores eram agora que foi realizada uma assembleia pública, na qual
restaram aprovadas resoluções que os censuravam severamente. O presidente
declarou que um novo ataque à população seria rechaçado com espírito de
hostilidade. Os meu pobres pais saíram da reunião com o coração partido,
desesperados e, creio, não em perfeito juízo. De toda sorte, julguei prudente
não os acompanhar à fábrica esta noite e fui dormir fora, na estrebaria.
Por
volta da meia-noite, um misterioso impulso fez com que eu me levantasse e
espreitasse por uma janela do salão do forno, onde eu sabia que meu pai estaria
dormindo. O fogo ardia vivamente, como se esperasse uma abundante colheita no
dia seguinte. Um dos imensos caldeirões fervia lentamente, com um misterioso
aspecto de autocontenção, como se aguardasse o instante de deflagrar toda a sua
energia. Meu pai não estava deitado. Havia se levantado com roupas de dormir e
estava preparando um nó corrediço com uma corda vigorosa. Pelos olhares que ele
lançava à porta do quarto de minha mãe, pude deduzir muito bem os propósitos
que perpassavam a sua mente. Imobilizado e mudo pelo terror, nada pude fazer
para alertá-lo ou impedi-lo. De repente, a porta do quarto da minha mãe se
abriu, silenciosamente, e os dois, aparentemente surpresos, se enfrentaram. Ela
também usava roupas de dormir e tinha na mão direita a ferramenta de seu
ofício: um longo punhal de lâmina delgada.
Ela
também não fora capaz de renegar o único proveito que a hostil atitude dos
vizinhos e a minha ausência lhe permitiam. Por uns instantes, fitaram-se com os
olhos abrasados, e, depois, lançaram-se um contra o outro com uma fúria
indescritível. Lutaram por todo o quarto, o homem maldizendo a mulher, esta
gritando, e ambos pelejando como demônios: ela, para feri-lo com o punhal; ele,
tentando estrangulá-la com as suas grandes mãos nuas. Não sei por quanto tempo
tive o infortúnio de observar esse desagradável exemplo de infelicidade
doméstica, mas, por fim, depois de um esforço mais vigoroso que o ordinário, os
contendores repentinamente se apartaram.
O
peito de meu pai e a arma de minha mãe exibiam provas de contato. Por um
instante, eles se miraram com imensa hostilidade. Depois, meu pobre pai,
ferido, sentindo sobre ele a mão da morte, avançou e, ignorando qualquer
resistência, tomou nos braços a minha querida mãe. Arrastou-a até a borda do
caldeirão fervente, reuniu todas as suas últimas energias e saltou com ela. Num
instante, ambos desapareceram, somando o seu azeite ao da comissão de cidadãos
que lhes havia trazido, na véspera, uma intimação para a assembleia pública.
Convencido
de que estes infelizes acontecimentos me obstruíam todos os caminhos a uma
carreira honrosa naquela vila, mudei-me para a famosa cidade de Otumwee, onde
escrevi estas memórias com o coração cheio de remorsos pelo ato insensato que
provocou um tão funesto desastre comercial.
Ótimo texto. Ainda não tinha lido.
ResponderExcluirUm texto magistral, Maycon. Bierce era de uma inteligência fantástica. Estonteante.
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